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sábado, setembro 20, 2025

Crítica | Assorted Crisis Events – Vol. 1 – Plano Crítico

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Assorted Crisis Events emerge como uma das antologias mais instigantes de ficção científica contemporânea. Desde a estreia, o projeto criado por Deniz Camp (responsável pelo também excelente Absolute Caçador de Marte), com arte de Eric Zawadzki, cores de Jordie Bellaire e letras de Hassan Otsmane-Elhaou, já anunciava uma proposta ambiciosa: mundos onde o tempo se torna instável, realidades se fundem e desordens temporais invadem o cotidiano. Em suma, a série parte de uma ideia simples e brilhante: “o tempo está em crise”. Este primeiro volume reúne cinco edições que confirmam essas promessas fascinantes, ao mesmo passo que realçam como a premissa é só o chamariz para histórias reais, comentários sociais e dramas humanos dilacerantes. Cada edição apresenta uma narrativa distinta, com protagonistas diferentes, mas todas imersas em crises relacionadas ao tempo, memória, rendição e identidade. A antologia funciona como um caleidoscópio: quem olha um pedaço vê reflexos do todo, e quem percorre todas as edições percebe ecos, rupturas e tensão crescente.

Antes de abordar cada edição, é importante destacar como a crise do tempo não é só metáfora ou então apenas um elemento sci-fi simples; a crise é cenário. As ruas se misturam entre hoje e milênios: cavaleiros cruzam com executivos, debutantes vitorianas entram em lojas de celular, soldados de guerras futuras tiram licença ao lado de homens das cavernas. Mas, como toda boa ficção científica, o espetáculo nunca é o fim, é o enquadramento para histórias de gente comum, esmagadas pelo mundo. É também o tipo de premissa que pede desenho elástico (Zawadzki tem um domínio raro de forma, gesto e escala), cor com gramática própria (Bellaire conduz a transição de épocas com temperatura cromática) e uma voz gráfica que organiza o caos (Otsmane-Elhaou vira “segundo narrador”, com um daqueles poucos trabalhos que letristas podem se divertir além do básico). O resultado, no conjunto dos cinco capítulos do primeiro volume, é um livro que conversa com Além da Imaginação, mas pisando sempre no chão do agora: trabalho precarizado, migração, mudanças climáticas, finitude e memória.

No primeiro número, Ignition, somos apresentados a Ashley, que vive em meio a uma realidade dilacerada: o tempo está fragmentado, pinturas de outras eras, alertas de fenômenos temporais e cenas surreais se misturando ao ordinário. O ponto de vista modesto (o pequeno concerto de um relógio, a logística banal de um dia de trabalho) ajudam a dar dimensão para temas como inércia, rotina e solidão na trama de Ashley; um drama intimista em contraste com o surreal (gosto também do tom irônico no meio do drama, em especial a tiradas à Hollywood). A arte visual impressiona na capacidade de inserir o bizarro no banal, com robôs, cavaleiros e anacronismos surgindo em segundo plano, como ruídos que não devem desviar o olhar de Ashley. Ignition estabelece o tom da série: belo, estranho e carregado de tristeza.

O segundo capítulo, We Eat, We Live in Cities, We Die, mergulha em outro tipo de crise: a do esforço e da sobrevivência de imigrantes mexicanos nos EUA, bem como da nossa fome insaciável. Nosso protagonista se chama Jesús, um homem que trabalha num frigorífico, atravessa jornadas exaustivas, convive com dor econômica e expectativas quebradas. O mundo desordenado continua presente, com alucinações ou distorções do tempo insinuando-se entre as carnes, o sangue e o ambiente industrial, mas aqui a tensão está no trauma passado de geração em geração, no capitalismo mordaz na figura de um Velociraptor, na crítica social que faz o leitor querer revirar o estômago e na triste realidade cíclica desse cenário, algo bem construído na narrativa visual, que acompanha esse peso: os layouts se enchem de repetições de tempo e memórias, com o corpo e o caminho do protagonista visivelmente marcados pelo esforço, pela culpa, pelo cansaço moral e pela transformação no próprio pai. 

Em Two Hearths, a terceira edição, a antologia se expande: duas cidades irmãs, distintas porém espelhadas, enfrentam catástrofes temporais e climáticas antes de se perderem numa queda moral quando os habitantes de uma das cidades buscam refúgio na outra, entre suas contrapartes. A história é meio atropelada, mas condensa tópicos pertinentes sobre comunidade, egoísmo e as nossas diferenças não tão diferentes, com a estrutura da história sendo um belo espelho: páginas que “rimam” em composição e movimento, decisões que se repetem com variações morais e uma discussão que fica cada vez mais sombria à medida que tudo pega fogo. É mais um capítulo reflexivo, com ótimas “brincadeiras” do texto em torno das perspectivas dos personagens e como pequenas (ou grandes) mudanças alteram todo o curso das coisas. Ao final da edição, também me peguei pensando bastante em privilégio. 

Time Flies, o quarto capítulo, acerta no tom de urgência emocional: envelhecer décadas em poucas páginas, ver o corpo mudar, ver o reflexo envelhecer, tato e memória se deteriorarem. É um capítulo que fala com o que todo adulto pensa, sobre como o tempo passa rápido, sobre como entramos numa espiral de decisões que às vezes não queremos tomar e principalmente do quão triste é quando não nos damos conta de que temos que viver antes de sobreviver. Temas de inércia e rotina voltam aqui, mas é um texto mais ácido do que a edição inicial, com um personagem menos carismático e um drama mais profundo sobre a nossa vulnerabilidade à materialidade do tempo. Aqui, a arte se detém no rosto, nas mãos que tremem, nas rugas, no enfraquecimento, com as páginas emulando a ideia de envelhecer. O mundo externo vira cenário, mas a crise é interna. A cor empalidece, sombras crescentes tomam os quadros, e o leitor sente que não se trata apenas de imaginar envelhecimento, mas de confrontar o que perdemos no passado que não vivemos plenamente. É praticamente uma história de terror sobre a anatomia do tempo.

O quinto número, Strange Loops!, fecha o volume com uma das ideias mais instigantes da antologia: repetir um instante infinitamente, viver variações, pequenas mudanças e releituras do mesmo decurso, como se estivesse numa versão deturpada de Feitiço do Tempo. Anna está presa num loop de sessenta segundos repetidos por eras; aquilo que pareceria tortura vira zona de experiência. A narrativa encontra lirismo na repetição: como transformamos o momento que nos é dado? O que podemos fazer quando o instante se torna eternidade parcial? Muito aqui também fala sobre trauma e a forma como ficamos presos a situações traumáticas do passado. Visualmente, o uso de repetições, layouts circulares ou espelhados, e mudanças sutis na cor e no contraste permitem que o leitor perceba evolução no que parece repetição (a forma circular de contar a história é uma viagem visual absolutamente fantástica e imersiva no vórtice da protagonista). O capítulo fecha esse primeiro bloco com melancolia, mas também com uma espécie de paz resignada: não porque tudo se resolve, mas porque viver consiste também em aceitar tempo quebrado.

Juntas, as cinco edições funcionam menos como simples contos soltos e mais como movimentos de uma sinfonia temática sobre o tempo, sobre o humano frente ao desmoronar do relógio, sobre memória, identidade e responsabilidade. Há escolhas narrativas que poderiam ser mais claras, já que em algumas edições, pesa o enigma por não sabermos exatamente se aquilo que vemos é real ou alucinação, se o dano é externo ou interno; mas eu compro facilmente o lado simbólico. Até penso que esse vácuo, essa imprecisão, é parte do que torna o título potente. Minha crítica negativa real acaba sendo em relação ao formato, com contos que às vezes são condensados demais ou que se resolvem muito rápido, mas nada necessariamente grave também.

Em suma, Assorted Crisis Events é, para mim, uma das antologias mais bem-sucedidas dos últimos tempos de ficção especulativa. Não entrega respostas fáceis, mas dá perguntas necessárias. Não cria heróis monumentais, mas pessoas em crise, o que, em muitos casos, é suficiente para iluminar o extraordinário que sempre foi invisível no ordinário. É uma HQ que desafia o leitor: exige paciência, atenção, vontade de escavar camadas, não de devorar ação. E sai do papel deixando a sensação de que o tempo que vivemos, seja acelerado ou fragmentado, pode se tornar ficção possível, se olharmos de perto.

Assorted Crisis Events – Vol. 1 | EUA, 2025
Contendo: Assorted Crisis Events #1 a 5
Roteiro: Deniz Camp
Arte: Eric Zawadzki
Cores: Jordie Bellaire
Letras: Hassan Otsmane-Elhaou
Editora: Image Comics
Páginas: 208



[Fonte Original]

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