Há algo de ritualístico em renumerar Batman. A cada raro “#1”, sendo este apenas o quarto na história da série principal, a DC não só reorganiza prateleiras: recalibra expectativas, reposiciona o herói no imaginário e, idealmente, apresenta um ponto de entrada que honre a tradição e respire novidade. A dupla Matt Fraction e Jorge Jiménez, com Tomeu Morey nas cores e Clayton Cowles nas letras, chega com esse peso nos ombros e escolhe uma via deliberadamente “super-heróica”: Batman volta ao volante, com gadgets reluzentes, um Batmóvel musculoso e um uniforme azul-cinza que acende a página como um farol em Gotham, flertando, pelo menos por enquanto, com uma vertente mais positiva do personagem.
Este primeiro capítulo é mais de “voltar ao básico”, com uma edição praticamente autocontida. A trama de estreia é direta: Killer Croc está em fuga após alterações fisiológicas que o tornaram mais primal e paradoxalmente mais infantilizado; a polícia de Gotham, agora sob o comando de Vandal Savage (sim, ele mesmo), arma um aparato “anti-ameaças” privatizado; e Bruce paira sobre a cidade, resolvendo incidentes, testando brinquedos, mediando uma conversa com Croc e, nos interstícios, lidando com a ausência que nunca cessa: Alfred. Fraction introduz uma solução que é ao mesmo tempo consoladora e bizarra, com uma presença “alfrediana” mediada pela tecnologia. Ainda não sei como me sinto com isso, mas se o autor não buscar substituir o mordomo com essa IA, ao mesmo passo que não desfaça a morte do personagem (como acontece sempre), talvez dê certo… veremos.
O mérito aqui é o tom. Em vez de pendular para o niilismo, a revista busca um Batman funcional, quase operário: alguém que aceitou que o mundo cai todos os dias e que seu trabalho é levantá-lo, tijolo por tijolo. Isso abre espaço para uma empatia curiosa nas cenas com Croc e para o contraste com a militarização de Gotham sob Savage, que recoloca o herói como contrapeso ético a sistemas que naturalizam a violência. Eu sei que quase todo mundo prefere o Batman Dark (eu mesmo adoro diversas histórias dele nesse sentido), mas vejo com bons olhos esse Morcegão mais “Bravos e Destemidos”.
O título assume que o trauma recente (perdas, falências, fraturas) não evaporou, mas também não precisa ditar cada quadro, com uma narrativa que, felizmente, evita muitas ligações e explicações. O que surge é um Bruce ligeiramente mais apático na superfície, mas disposto a ser melhor, como na cena que conversa com a nova versão do Croc. O conflito aqui se manifesta quando a própria cidade grita por soluções fáceis (choques táticos, “lei e ordem” performática) e Batman insiste no método paciente, investigativo, feito de decisões difíceis. É um “otimismo pragmático” que lembra o melhor do personagem, que não é o poço de esperança que é o Superman, mas tampouco só o inquisidor sombrio.
Há, claro, quem veja nessa abertura um risco de déjà-vu. A discussão “Batman é tão doente quanto os vilões?” vem e volta há décadas. A diferença nesse início é a simplicidade e a economia: Fraction não transforma isso em tese, não apresenta nada muito “pesado”; usa como ferramenta de ritmo, para pontuar escolhas e sublinhar a solidão funcional de Bruce. O grande problema é que, por conta dessa abordagem, essa edição de estreia tem uma carona de história protocolar, sem uma ameaça, sem urgência. Gosto de pensar que é mais uma questão de caráter introdutório de um capítulo “piloto” e que Fraction tem muito o que fazer em sua run em termos de tramas mais impactantes e envolventes.
Agora falando da arte, Jorge Jiménez está em fase exuberante. Sua página prioriza legibilidade e espetáculo sem travar a narrativa. A anatomia dinâmica e o senso de velocidade, sobretudo nas perseguições e nos saltos entre prédios, dão corpo ao “Batman em movimento”. O novo traje azul-cinza é um acerto estético e semântico: conversa com tradições (Neal Adams) e, ao mesmo tempo, sinaliza uma mudança de temperatura. O símbolo maior no peito, as linhas limpas e o brilho controlado por Morey compõem um Batman que “fura” a noite em vez de se dissolver nela. Confesso que sinto falta da pegada gótica e sombria em Gotham, mas estou de mente aberta para a proposta da equipe.
Como capítulo 1, a revista escolhe apresentar premissas e texturas, não um quebra-cabeça intrincado. Isso tem ganhos: a leitura convida recém-chegados, dá “cara” à fase e evita amarras excessivas a cronologias recentes. Mas também deixa frestas. Falta um tempero nessa estreia, tudo é bem “seguro” ainda, sem algo para deixar a narrativa de fato curiosa. A falta de uma presença antagonista é sentida, com a comissão de Savage, a privatização da força, o cerco ao vigilante, ficando, por enquanto, nos bastidores (e não sei se esse adversário é o suficiente para contar uma boa história).
Ainda assim, estou interessado no futuro. Renumerar Batman só faz sentido quando se propõe uma reorganização de prioridades. A de Fraction é cristalina: recentralizar o personagem como um super-herói clássico, com uma pegada mais pé no chão. Gosto da ideia de trocar a grandiloquência por uma confiança no ícone: Bruce em azul-cinza, gadgets afiando a cena, tramas investigativas, Gotham como organismo e um drama moral caro ao protagonista. Tudo ainda é mais faísca do que fogo, mas é natural com a impressão de uma única edição, que já tem uma proposta clara e um começo coeso.
Batman (2025) #1 – EUA, 03 de setembro de 2025
Roteiro: Matt Fraction
Arte: Jorge Jiménez
Cores: Tomeu Morey
Letras: Clayton Cowles
Editoria: Jessica Berbey, Rob Levin
Editora: DC Comics
Data original de publicação: 03 de setembro de 2025
Páginas: 48