Qualquer Coisa Mortal é uma tentativa de retomada editorial mais escrupulosa para a revista Monstro do Pântano, saindo da complicada fase capitaneada por Doug Wheeler e entrando na elogiada Era de Nancy A. Collins. A escritora herdou uma publicação em franco declínio, tendo como missão recuperar o público que se dispersara nas histórias cósmicas e desconexas do passado recente do Pantanoso, envolvendo O Cinza e os Elementais. Para isso, Collins abandonou as aventuras interdimensionais em favor de um retorno às origens góticas e regionais do Musguento, mas essa guinada, embora conceitualmente válida, trouxe dilemas narrativos e mostrou certa dificuldade da autora em equilibrar a grandiosidade mitológica do personagem com a intimidade doméstica que pretendia focar e explorar.
Esta tensão entre as propostas narrativas fica evidente na forma como Collins maneja sua principal linha dramática: as histórias do folclore cajun da Louisiana. Aqui, temos uma experiência de “gótico sulista” que incorpora lendas como o Rougarou, histórias de Loup Garoux (lobisomens) e narrativas sobre cultura, comportamento e pensamento popular na região. A edição #111 mostra tanto os acertos quanto os problemas dessa abordagem, ao dedicar páginas inteiras à reconstrução das tradições orais cajuns através do músico fictício Augustine “Ya-Ya” Dupin. Embora Collins consiga, mais do que qualquer escritor anterior, fazer o Monstro do Pântano parecer genuinamente entrelaçado à cultura regional das populações pantaneiras, o resultado quase soa didático e forçado demais, criando uma leve sensação de artificialidade, ainda mais quando contrastado com os piratas lovecraftianos que serão os principais vilões do arco.
A consciência social que vemos no Annual #6 e nas edições seguintes seguem essa mesma linha de caráter urbano, embora eu ache que a autora conseguiu um resultado ótimo em Les Perdu / Os Perdidos, explorando dilemas e tragédias sociais com personagens queer, ativistas e negros, confrontando diretamente homofobia, racismo, violência contra a mulher, maus tratos a crianças, abuso sexual e corrupção religiosa. A história de Les Perdu apresenta uma criatura gerada pelo pântano (influenciado pelo Verde, claro) após os assassinatos de vítimas de crimes de ódio, uma trama que funciona como alegoria sobre como a violência cria monstros a longo prazo. O contexto da época — Collins escrevia enquanto David Duke concorria seriamente ao governo da Louisiana — justifica a urgência política do quadrinho, embora muitas aberturas dramáticas não tenham boas compensações ou estejam aqui somente como citação isolada na vida presente do protagonista.
O ponto mais problemático dessa cadência é a candidatura do Monstro do Pântano ao governo estadual (mesmo que tenha sido uma piada e não tenha sido criada por ele), uma sátira política através da qual o texto critica a teatralidade política americana e denuncia o tipo fascista de indivíduo que a autodenominada “maior democracia do mundo” permite concorrer às eleições… ou quanto o ódio e o preconceito entranhado nessa sociedade é visto e corroborado por figuras ativas de seu alto escalão econômico, militar, cultural e político. A premissa (um monstro vegetal como candidato a governador) poderia funcionar como um absurdo brechtiano, mas Collins a desenvolve com tamanha seriedade que o resultado oscila desconfortavelmente entre farsa e melodrama, ao mostrar a natureza bizarra da política louisianesa de 1991. É uma pena que o comentário irônico sobre demagogia e manipulação eleitoral acabe soando, no arco, como uma piada interna que se estende demais e não é utilizada para nada.
Também temos problemas semelhantes na história principal, envolvendo os piratas espectrais de Dark Conrad e o retorno de John Constantine. A retomada (citada várias vezes) de sua participação no ritual que possibilitou a concepção de Tefé (filha do Monstro do Pântano e Abby) estabelece conexões que serão exploradas posteriormente, mas no contexto imediato, serve apenas para criar tensão dramática num enredo com ótimos momentos visuais, mas que parece não sair da constituição geral de “ok“. O conflito com Dark Conrad e seus Old Ones lovecraftianos é uma tentativa de trabalhar com elementos sobrenaturais grandiosos somados à tal abordagem intimista que Collins tinha em mente, mas que termina relativamente decepcionante. A resolução, através da força bruta do Pantanoso, mostra um caminho grandioso demais para a proposta pretendida nesse momento, exigindo um tipo de contato com o Verde que a autora procurou não fazer em momento algum no desenvolvimento da história, dando um certo sabor de Deus Ex Machina ao encerramento.
Qualquer Coisa Mortal é um experimento interessante. Aqui, mesmo falhando em criar uma narrativa inteiramente coesa e satisfatória, Nancy A. Collins faz uma base simples e diferente (por ser quase totalmente secular) em um título que já tinha visto muitas camadas complexas. Esse “retorno às raízes regionais“, mediado por consciência política e por críticas sociais, tem uma forte preocupação contextualizadora, trazendo até mesmo uma história de Natal mitológica e uma promessa de mais problemas sociais com a presença do avatar do Verde nas aventuras seguintes. Apesar de decepcionar um pouco, é um começo melhor e mais promissor do que o que vínhamos tendo no título entre o final dos anos 1980 e início da década de 90.
Monstro do Pântano: Qualquer Coisa Mortal (EUA, agosto de 1991 – janeiro de 1992)
Contendo: Swamp Thing Vol.2 110 a 115 + Annual 6
Roteiro: Nancy A. Collins
Arte: Bill Jaaska, Tom Mandrake, Tom Yeates
Arte-final: Rick Bryant, Kim DeMulder, Shawn McManus, Shepherd Hendrix
Cores: Tatjana Wood
Letras: John Costanza, Albert DeGuzman
Capas: John Higgins
Editoria: Stuart Moore
24 a 26 páginas (edições mensais) e 53 páginas (anual).