Se Milei é o queridinho de Wall Street, Kicillof é seu nêmesis. Enquanto Milei é obcecado por cortar o déficit orçamentário, desmontar regulações e domar a inflação, Kicillof — agora governador da província de Buenos Aires — é lembrado como o ex-ministro que interveio na economia, deu calote na dívida soberana e interferiu em decisões de empresas privadas.
Depois de deixar o governo de Cristina Kirchner em 2015, Kicillof, outrora uma estrela em ascensão, havia desaparecido gradualmente do cenário presidencial — até a noite do último domingo (7).
Após os peronistas liderados por Kicillof derrotarem o partido de Milei na disputa provincial por quase 14 pontos percentuais, os títulos argentinos despencaram até 10% nas negociações da manhã de segunda-feira (8), as ações dos bancos locais desabaram e o peso oficial caiu 4%. O risco-país da Argentina saltou para acima de 1.100 pontos-base antes de recuar um pouco, partindo dos 906 da sexta-feira anterior, segundo dados compilados pelo JPMorgan.
O “risco Kicillof” surge em meio à fragilidade econômica e financeira da Argentina. O governo Milei luta para aprovar no Congresso projetos-chave para reduzir o déficit fiscal, enquanto um escândalo de corrupção mina a confiança em uma gestão que chegou ao poder com um discurso anticorrupção.
Ao mesmo tempo, a prisão domiciliar e a inelegibilidade vitalícia de Cristina Kirchner abrem espaço para que Kicillof assuma as rédeas de um peronismo fragmentado nos últimos dois anos.
Milei e Kicillof têm, em certos aspectos, semelhanças. Ambos são figuras extravagantes, de estilo performático, que gostam de dominar as manchetes. Os dois economistas cultivam até o mesmo visual inspirado em Elvis Presley: costeletas grossas que descem abaixo das orelhas.
Ainda assim, o mau desempenho de Milei e a ascensão de Kicillof como favorito da oposição sinalizam “um caminho mais íngreme para o governo” na corrida até as eleições legislativas de outubro, disseram os economistas do JPMorgan Diego Pereira e Lucila Barbeito em relatório a investidores.
“Um período prolongado de prêmios de risco político elevados provavelmente pesará sobre a atividade econômica”, acrescentaram.
Segundo Jimena Zuniga e Adriana Dupita, analista de economia e vice-chefe de economia de mercados emergentes da Bloomberg Economics, Milei prometeu corrigir erros políticos, mas até agora mostrou pouca disposição de mudar de rumo.
“O novo núcleo de decisão política anunciado na segunda-feira decepcionou. Inclui a irmã de Milei, Karina — sua mão direita no governo, agora sob escrutínio por causa do escândalo de corrupção — e Martín Menem, um deputado ligado à estratégia política que terminou no fiasco de domingo”, completaram em uma análise.
A votação nacional de meio de mandato, em 26 de outubro, definirá a representatividade de Milei no Congresso, fator crucial para o presidente avançar com reformas estruturais em pensões e legislação trabalhista. O resultado de domingo levou analistas e investidores a revisarem suas previsões, incluindo a possibilidade de um retorno do peronismo ao poder.
Durante a gestão de Kicillof como ministro da Economia, a Argentina foi censurada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) por manipular dados econômicos. O hoje governador também deu calote em títulos soberanos, endureceu o controle cambial e ampliou os congelamentos de preços. Em contraste, Milei suspendeu muitas das restrições cambiais herdadas dos aliados de Kicillof, encerrou os congelamentos de preços e cumpriu todos os pagamentos da dívida com investidores.
Kicillof foi ainda o protagonista da controversa expropriação da petroleira YPF em 2012, que resultou em um processo de US$ 16 bilhões que o país ainda enfrenta nos tribunais dos EUA.
“Os investidores estrangeiros estão claramente desenhando um cenário no qual Kicillof concorra à presidência, e não se sentem confortáveis com sua postura intervencionista”, disse Juan Carlos Barboza, chefe de pesquisa do Banco Mariva. “Ele não cria um ambiente atraente para investimentos, sem se apoiar em desequilíbrios como déficit fiscal e inflação.”
O retorno de Kicillof como potencial candidato limita o risco-país da Argentina — o prêmio pago em relação aos títulos do Tesouro dos EUA — pode cair no curto prazo, acrescentou Barboza.
Embora seus laços com Kirchner tenham esfriado, Sergio Massa, que disputou a presidência contra Milei em 2023, parabenizou o governador após a votação, ampliando seu apoio dentro das fileiras peronistas.
“Axel foi o grande vencedor: todos os seus aliados políticos se alinharam para beijar sua mão, como no filme ‘O Poderoso Chefão’, na noite de domingo”, disse Fernando Marull, sócio da consultoria FM&A. “Um plano econômico de Axel significaria ativos mais desvalorizados, maior risco-país, um câmbio paralelo mais largo, mais emissão monetária e déficits fiscais maiores.”
O governo Milei encara um campo minado de desafios no momento em que precisa recuperar o acesso aos mercados globais para cobrir mais de US$ 4 bilhões em compromissos que vencem em janeiro.
“Na ausência de uma reversão improvável das expectativas, recuperar o acesso ao mercado para rolar os pagamentos da dívida de janeiro será muito difícil”, afirmou Juan Solá, chefe de estratégia para América Latina do BancTrust & Co., em relatório a investidores.
Vale lembrar que a eleição presidencial de 2027 ainda está distante, mas Milei tem pouco menos de sete semanas para tentar reverter o sentimento do eleitorado a seu favor nas eleições para o Congresso.
Para investidores que viveram o colapso de mercado motivado pelas eleições de 2019, o ex-presidente do Banco Central Guido Sandleris vê diferenças importantes hoje, como o equilíbrio fiscal de Milei. O número reduzido de investidores estrangeiros em instrumentos em pesos também significa “menos combustível para uma corrida cambial”, segundo Sandleris.
“A vitória do kirchnerismo no domingo não implica de forma alguma sua consagração definitiva”, disse Sandleris, hoje professor da Johns Hopkins SAIS e da Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires. “O governo Milei ainda tem dois anos pela frente e muita coisa pode acontecer.”