Crédito, Getty Images
- Author, Giulia Granchi e Leandro Prazeres
- Role, Enviados da BBC News Brasil a Nova York
O governo brasileiro, que enfrenta tensão máxima com os EUA, confirmou o encontro nos bastidores, mas diz que nenhuma outra conversa foi confirmada ainda.
Já analistas ouvidos pela BBC News Brasil veem o aceno de Trump como positivo, ao mesmo tempo em que lembram que o americano costuma ter comportamento errático até mesmo com aliados e que é preciso ter cautela.
Desde que assumiu a Casa Branca, Trump impôs tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, em vigor desde 1º de agosto, citando como um dos motivos a investigação e posterior julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, seu aliado, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Foi nesta esteira que o governo americano também anunciou sanção ao ministro do STF Alexandre de Moraes no âmbito da Lei Global Magnitsky — um dos instrumentos mais severos da legislação americana, que prevê punições a estrangeiros acusados de violações graves de direitos humanos ou corrupção.
A condenação de Bolsonaro a 27 anos de prisão, em 11 de setembro, intensificou a disputa: Trump criticou o julgamento, anunciou restrições de vistos a ministros da Corte, e Lula respondeu em artigo publicado no jornal americano The New York Times defendendo a democracia brasileira.
O clima de tensão escalou ainda mais na véspera da Assembleia Geral. Na segunda-feira (22/9), Washington anunciou uma nova rodada de sanções contra o Brasil.
O Departamento de Estado incluiu a advogada Viviane Barci de Moraes, esposa do ministro Alexandre de Moraes, entre as pessoas punidas com a Lei Magnitsky.
Também foi alvo a empresa Lex – Instituto de Estudos Jurídicos, administrada por Viviane e pelos filhos do casal. Em outra frente, os EUA revogaram o visto do advogado-geral da União, Jorge Messias, ampliando o cerco a autoridades brasileiras.
Foi nesse ambiente que se deu a cena inesperada. Antes do discurso de Trump, os dois líderes se encontraram rapidamente nos corredores da ONU. Segundo relato do próprio presidente americano, houve abraços e uma breve troca de palavras.
“Nós o vimos, eu o vi. Ele me viu e nos abraçamos. E então eu disse: ‘Você acredita que vou falar em apenas dois minutos?’ Na verdade, combinamos de nos encontrar na semana que vem. Não tivemos muito tempo para conversar, uns vinte segundos e pouco, pensando bem”, disse Trump.
Segundo o o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, a fala de Trump pode dar um passo a um novo padrão de relacionamento entre os dois países.
“Foi a primeira vez em que Donald Trump mencionou publicamente o nome de Lula — salvo melhor juízo — e isso ocorreu em um ambiente de grande visibilidade. Além disso, a referência foi mais elogiosa do que crítica, mais positiva do que negativa.”
“Mas é claro que isso não desfaz todo o problema diplomático que Trump construiu diligentemente desde que assumiu a Casa Branca. Há um acúmulo de tensões que precisará ser processado.”
O que esperar do encontro oficial entre Lula e Trump
Para Oliver Stuenkel, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisador do Carnegie Endowment for International Peace, a cena de cordialidade entre os dois presidentes mostra o valor de momentos como a Assembleia Geral da ONU, que colocam líderes em contato direto.
“É impossível saber o que vai sair dessa negociação. Mas o simples fato de abrir um diálogo já é relevante. Permite estabelecer uma relação pessoal entre os dois e identificar onde há espaço para compromissos, seja no campo comercial, seja na disputa em torno das sanções contra autoridades brasileiras”, afirma.
O professor de Relações Internacionais da FAAP Lucas Leite vê o aceno com cautela. Segundo Leite, Donald Trump pauta suas relações “de maneira personalista, fora dos padrões tradicionais da diplomacia internacional.”
“Duvido que qualquer negociação envolvendo Trump siga os padrões normais da diplomacia ou respeite regras multilaterais. É mais provável que haja algum tipo de discussão bilateral sobre tarifas, especialmente em setores que pressionam o governo americano para reduzi-las”, afirma.
Segundo ele, o gesto público tem também um componente estratégico. “Se o Brasil fosse irrelevante, Trump não teria citado Lula nominalmente em seu discurso, tampouco falado do encontro em termos tão simpáticos. O tom não foi de ameaça ou sanção maior, mas sim de tentativa de trazer o Brasil de volta para uma suposta área de influência americana e evitar que o país se afaste em direção a outros parceiros, como a China.”
Para Paulo Velasco, professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a fala de Trump contém um aceno ao Lula, no sentido de abrir espaço para uma potencial conversa.
“Mas, na verdade, é uma fala perigosa, porque, mesmo dizendo que Lula é uma boa pessoa, essas bobagens assim, vazias de conteúdo significativo, ele joga a batata quente para o Brasil, mencionando que houve um combinado de se encontrarem na próxima semana, se o Lula quiser”, diz Velasco.
Na eventualidade de não acontecer esse encontro — e segundo Velasco, é possível que não aconteça, porque reuniões assim, ainda mais com “um líder imprevisível como Trump, em um momento tão tenso de relações, não podem ser planejadas com uma semana de antecedência” — o Brasil pode ser responsabilizado por não ter topado o diálogo, apesar do aceno feito pelo presidente americano.
Segundo o professor, isso colocaria o país em situação ruim, parecendo que estaria rejeitando o diálogo com os Estados Unidos.
Outro aspecto “perigoso”, na avaliação do especialista, é que o Brasil chegaria à mesa sem ter muito a oferecer aos Estados Unidos.
“Não poderia ceder em pontos que Trump espera, como mudanças no resultado do julgamento de Bolsonaro ou interferência em empresas de tecnologia, como constava na carta enviada ao presidente brasileiro. O Brasil não se colocará numa postura subserviente.”
Segundo Velasco, qualquer cenário é arriscado: se o encontro não ocorrer, o Brasil pode ser culpado por não dialogar; se acontecer e houver algum acerto, Trump poderá vendê-lo como vitória, alegando que o país cedeu e se curvou.
Em relação a tópicos a serem abordados, na visão de Dawisson Belém Lopes, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o comércio exterior tende a ser o terreno mais fácil de negociação.
“Alguns ajustes podem ser feitos, até porque o Brasil não é o único alvo da guerra tarifária americana. Tarifas tão altas sobre produtos brasileiros acabam gerando inflação de alimentos nos próprios Estados Unidos, o que pode levar a uma revisão parcial da pauta”, avalia.
As questões políticas, no entanto, seriam mais difíceis de alterar. “Não há chance de recuo nem do Executivo, nem do Judiciário, nem da Procuradoria-Geral da República. Lula não se deixará seduzir por palavras que, até prova em contrário, são apenas palavras. Ainda assim, faz bem em se colocar à disposição para dialogar — algo que fez a vida inteira”, diz Lopes.
Já Anthony Pereira, diretor do Centro Latino-Americano e Caribenho Kimberly Green, da Universidade Internacional da Flórida, chama atenção para o efeito simbólico da aproximação.
“Se o gesto de Trump for sincero, isso significa que os líderes vão se encontrar e pode haver alguma negociação sobre tarifas e sobre a aplicação da Lei Magnitsky. Além disso, coloca Lula numa posição mais forte, porque, ao contrário do presidente brasileiro, Trump é impopular não só em seu próprio país, mas também globalmente”, analisa.
O discurso dos dois presidentes na ONU
Em seu discurso na ONU, Lula criticou “sanções arbitrárias e intervenções unilaterais”, sem citar diretamente os Estados Unidos.
Ele destacou que o Brasil respondeu a todos os que ameaçam o regime democrático do país.
“Diante dos olhos do mundo, demos um recado a todos os candidatos a autocratas e àqueles que os apoiam: nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis. Seguiremos como nação independente e como povo livre de qualquer tipo de tutela”, disse o brasileiro, que antes tinha feito uma referência à condenação de Jair Bolsonaro por pelo STF.
O presidente também tratou de conflitos internacionais, incluindo Palestina, Ucrânia, Venezuela e Haiti, defendendo soluções negociadas e alertando para o uso desproporcional da força.
Além disso, destacou a importância de reduzir desigualdades, combater a fome e enfrentar a crise climática, reforçando compromissos do Brasil na redução do desmatamento e na preparação para a COP30, e propôs reformas multilaterais na ONU e na Organização Mundial do Comércio(OMC), defendendo o valor do multilateralismo.
Falando depois de Lula, Donald Trump assumiu um tom radicalmente diferente. O presidente americano criticou a ONU como ineficaz, questionou se a organização serve a algum propósito e apresentou-se como único capaz de resolver os problemas globais.
Ele assumiu crédito por supostos avanços em conflitos internacionais, enquanto a ONU teria falhado, e criticou energias renováveis e a agenda climática, chamando as mudanças climáticas de “a maior mentira da história”.
Trump também atacou adversários, aliados da Otan e governos de países que compram petróleo russo, e fez referências diretas a questões humanitárias em Gaza, exigindo a liberação de reféns sem detalhar soluções.
Para Oliver Stuenkel, o contraste entre os discursos evidencia diferentes públicos e objetivos.
“Quem escreve um discurso na ONU tem duas audiências em mente: a comunidade internacional e a população doméstica. No caso do Trump, ele falou em grande parte com o eleitorado americano. Já Lula fez um discurso sobre grandes desafios globais, posicionando o Brasil diante de conflitos como Ucrânia e Gaza, defendendo o multilateralismo e a reforma da ONU”, avalia.
Segundo Stuenkel, embora a fala de Lula tenha sido “mais típica” para um líder internacional, ressaltando a posição brasileira em debates centrais da comunidade global, o discurso de Trump — “fora do comum e muito chocante” — acabou ofuscando parte da repercussão.
Ainda assim, o Brasil segue sendo um país “popular na ONU”, engajado em iniciativas como a conferência do clima, mas enfrenta atritos, especialmente com a Europa, por sua postura em relação à guerra na Ucrânia.