A América Latina vive uma transformação silenciosa e irreversível: as stablecoins (moedas digitais lastreadas 1:1 por ativos como o dólar americano, o euro, o real, entre outros) estão assumindo, com velocidade e escala, funções que antes eram exclusivas do dinheiro tradicional: transacionar, proteger valor e acessar liquidez.
Esse avanço tem uma razão clara: as stablecoins vêm ganhando espaço porque entregam o que o sistema tradicional muitas vezes não consegue — estabilidade em economias voláteis, agilidade nas transações, baixo custo para remessas internacionais e base para uma nova arquitetura financeira mais direta, interoperável e acessível.
Globalmente, o envio de remessas por meios tradicionais custa, em média, 6,49% do montante enviado, segundo o Remittance Prices Worldwide Database. Em contraste, redes como Stellar, Celo e Polygon operando com stablecoins como USDC, reportaram custos inferiores a US$ 1 por transação.
Além da economia, as stablecoins se destacam pela velocidade e eficiência nas transferências, especialmente em operações transfronteiriças. De acordo com a Circle (empresa de infraestrutura financeira para o mundo cripto, emissora de uma das stablecoins mais utilizadas globalmente – a USDC), as transações com a stablecoin USDC em redes como Solana, Ethereum e Avalanche são liquidadas entre 5 segundos e 1 minuto, enquanto o sistema bancário tradicional pode levar até três dias úteis para concluir uma TED ou remessa internacional.
O use de stablecoins na América Latina
As stablecoins já fazem parte do dia a dia de milhões de pessoas em países onde a inflação corroeu a confiança na moeda local, onde o acesso ao sistema bancário é limitado e enviar dinheiro para o exterior continua caro e lento. Nesse cenário, esses ativos digitais surgem como uma alternativa eficiente e acessível e que está disponível 24/7.
Dados de 2024, publicados pela Chainalysis, mostram que a participação da Argentina no volume de transações de stablecoins é de 61,8%, ligeiramente acima do Brasil (59,8%) e bem acima da média global (44,7%). E, apesar da tendência regional, os dados mostram que o uso das stablecoins se manifesta de formas diferentes em cada país.
Na Argentina, as transações de varejo com stablecoins (até US$ 10 mil) estão crescendo mais rápido do que qualquer outro tipo de ativo digital. Um sinal claro de que os argentinos recorrem às stables para se proteger da hiperinflação e da desvalorização cambial.
No Brasil, 90% das operações declaradas à Receita Federal com cripto envolvem stablecoins lastreadas em dólar. Apenas em julho de 2025, o país movimentou R$ 9,3 bilhões em stablecoins (USDT/BRL), com uma média diária de quase R$ 300 milhões, segundo dados da Biscoint. O ritmo elevado, com picos acima de 90 milhões movimentados em um único dia, reforça o papel do dólar digital como instrumento de uso cotidiano na economia brasileira.
Leia também: Brasil é o 5º país com maior adoção de criptomoedas no mundo, diz Chainalysis
Em 2025, na Guatemala, o maior banco do país integrou USDC para remessas com uma taxa fixa de US$ 0,99.
No México, a questão vai além da proteção cambial: de acordo com o World Bank, 63% da população adulta ainda não têm conta bancária. As stablecoins têm desempenhado um papel crescente na inclusão financeira, levando o país ao Top 20 global de adoção cripto, ao lado de Brasil (#9), México (#13), Venezuela (#14) e Argentina (#15).
Esses dados apontam para uma realidade que não pode mais ser ignorada: as stablecoins estão redefinindo o papel do dinheiro na América Latina. E outro dado que reforça essa afirmação é que, segundo o World Economic Forum, as stablecoins movimentaram globalmente mais de US$ 27 trilhões em 2024, superando o volume anual combinado da Visa e da Mastercard. Essa liquidez já circula por blockchains, plataformas nativas e redes descentralizadas, um reflexo direto de que a nova infraestrutura do dinheiro está em operação, com novos protocolos, canais e protagonistas.
Casos de uso
Há alguns anos, vemos anúncios de grandes empresas que estão integrando stablecoins a suas operações para responder à crescente demanda por estabilidade, liquidez e eficiência – especialmente em países marcados por inflação elevada e busca por proteção em moedas fortes.
O PayPal lançou o PYUSD, hoje usado para liquidação de remessas internas; a Mastercard e a Fiserv firmaram parceria para viabilizar pagamentos com stablecoins por meio do FIUSD; no setor bancário tradicional, o JPMorgan, com o JPM Coin, e o Citi, com o Citi Token Services, mostram que as stablecoins já fazem parte de um novo padrão financeiro; na unidade B2B da Ripio, mais de 80% do volume transacionado ocorre em stablecoins, entre elas o Meli Dólar, moeda digital do Mercado Pago disponível no Brasil, México e Chile.
Considerando esses dados, volto a afirmar que estes ativos estão redefinindo o papel do dinheiro na América Latina. As stablecoins se consolidaram como uma resposta prática à realidade econômica da região. O que antes exigia uma conta em dólar no exterior, longas filas para remessas ou poupança em espécie, agora acontece direto do celular, em tempo real, por meio de aplicativos.
A diferença está no estágio de adoção da tecnologia. Enquanto mercados desenvolvidos começam a formalizar suas estruturas legais, como os Estados Unidos com o GENIUS Act – primeiro marco federal voltado a stablecoins, sancionado em julho de 2025 e responsável por estabelecer exigências de lastro total, transparência e limitações de risco sistêmico –, na América Latina, elas já operam em escala.
Leia também: Trump sanciona GENIUS Act e inicia integração das criptomoedas com a economia dos EUA
Por aqui, o uso nasceu da urgência (proteger valor, enviar dinheiro, acessar liquidez) e não da espera por diretrizes oficiais. O resultado é um ecossistema financeiro mais inclusivo e dinâmico, moldado pela demanda real das pessoas e empresas.
O futuro caminha para stablecoins lastreadas em moedas locais, integração com protocolos DeFi, uso institucional em larga escala, rendimento on-chain e conexões com moedas digitais de bancos centrais (como o Drex, no Brasil). Essas novas tendências apontam para a consolidação de um novo padrão monetário na região.
E o mais significativo é que a infraestrutura por trás desse movimento não está sendo importada, mas está sendo construída localmente. É preciso reconhecer essa urgência para garantir que pessoas e empresas na América Latina possam acessar o ecossistema cripto com praticidade e segurança.
Sobre o autor
Sebastián Serrano é CEO e cofundador da Ripio.