O Brasil vive um ‘vazio’ jurídico que pode afetar milhares de investidores de criptoativos. Hoje, não existe lei específica sobre herança digital, e isso coloca em risco a sucessão de Bitcoins e outras criptomoedas.
Desse modo, sem regras claras, esses bens podem simplesmente desaparecer no universo das exchanges ou wallets de autocustódia, sem nunca chegar às mãos dos herdeiros legítimos, ou então, um parente mais próximo que tenha acesso a wallets, senhas ou computador, pode acabar ‘se apossando’ de tudo, deixando os demais herdeiros sem nada.
Segundo especialistas, o cenário atual depende da iniciativa das famílias, ou seja, caso o usuário tenha milhões em Bitcoin e criptomoedas guardados se a família não souber disso eles podem ficar ‘perdidos’ para sempre.
Dessa forma, na ausência de um testamento digital, os bens virtuais de uma pessoa falecida ficam à deriva, aguardando a provocação do Judiciário. Nesse processo, prevalece a subjetividade, o que abre espaço para decisões conflitantes e até mesmo para a violação da privacidade do titular.
A advogada Isabela Pompilio, sócia de TozziniFreire Advogados, afirma que a lacuna legislativa representa um risco real.
“Sem uma baliza normativa, as decisões judiciais podem divergir sobre quais bens digitais entram no inventário. O maior problema é que não existe um registro oficial desses ativos, como ocorre com imóveis e veículos. Assim, a sucessão fica sujeita a disputas e incertezas”, explicou.
Superior Tribunal de Justiça se manifesta
O debate chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Recurso Especial nº 2.124.424.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, sugeriu a criação de um incidente processual para identificar bens digitais e a figura do inventariante digital. A proposta busca estabelecer um caminho comum para reconhecer e transferir ativos digitais, garantindo proteção à intimidade do falecido.
No entanto, mesmo essa solução abre brechas. A advogada alerta para a possibilidade de falhas ou fraudes.
“Se apenas o inventariante tiver acesso exclusivo às chaves e contas digitais, como garantir que a lista apresentada seja fidedigna? Sem transparência, os herdeiros podem ficar sem meios de questionar a partilha”, completou Pompilio.
A complexidade aumenta quando se trata de criptoativos em autocustódia, que exigem o conhecimento das chaves privadas. Nesses casos, sem o acesso, a herança simplesmente não se concretiza.
“Se o titular não deixar instruções claras, os ativos ficam bloqueados para sempre”, destacou Marília Milani, head de resolução de disputas do CBA Advogados.
Milani lembra que a custódia impacta diretamente o processo sucessório.
“Se os criptoativos estiverem em exchanges, o representante do espólio pode solicitar judicialmente informações e transferências, como ocorre com bancos. Já na autocustódia, tudo depende das chaves privadas. Sem elas, não há como transferir os ativos, mesmo com ordem judicial”, afirmou.
Enquanto não surge uma legislação específica, alguns players do mercado desenvolvem soluções próprias para sucessão de ativos digitais.
Contudo, especialistas insistem que a melhor medida continua sendo o testamento. Nele, o investidor pode indicar de forma clara quais ativos deseja transmitir e como deve ser feito o acesso.
O projeto de atualização do Código Civil prevê dispositivos sobre herança digital, mas ainda está em tramitação. Até lá, a ausência de normas deixa famílias e tribunais em situação delicada.
Como conclui Pompilio, “o futuro exige uma legislação transparente, que diferencie bens transmissíveis e intransmissíveis, garantindo contraditório e segurança para os herdeiros”.