As recentes falhas de segurança no sistema do Pix evidenciaram vulnerabilidades na infraestrutura de pagamentos do Banco Central (BC) que, segundo Matheus Moura, CEO da Avenia, criam oportunidades para a adoção de stablecoins do real como meio de pagamento.
A busca por aplicações e casos de uso reais é um desafio estrutural que diferencia as stablecoins do real em relação às líderes do mercado global (USDT) e (USDC). Enquanto as stablecoins atreladas ao dólar são amplamente utilizadas como instrumento de proteção patrimonial e investimento financeiro, especialmente em países com inflação crônica e instabilidade econômica, as brasileiras precisam mostrar-se mais eficientes que as soluções do mercado tradicional.
Foi exatamente esse tipo de desafio que os fundadores da Avenia enfrentaram ao criar o BRLA, em 2023. Inicialmente concebido para viabilizar transferências de reais para o exterior, contornando a burocracia do sistema financeiro tradicional, o projeto avançou quando ficou claro que seu sucesso dependeria da capacidade de criar soluções inovadoras – e não apenas replicar o modelo das stablecoins de dólar.
Pouco mais de dois anos depois, o BRLA se consolidou como uma das principais stablecoins do ecossistema de criptomoedas brasileiro. Com mais de R$ 4 bilhões transacionados desde o início de suas operações, a Avenia movimenta atualmente um volume médio de R$ 150 milhões por mês.
Mesmo enfrentando concorrentes de peso, como o BRZ, da Transfero, e o recém-lançado BRL1, de um consórcio formado pelas exchanges Mercado Bitcoin (MB), Foxbit e Bitso, o BRLA concentra o maior número de endereços ativos semanalmente e lidera em volume de swaps e total de transações semanais, segundo dados da Iporanga Ventures.
Em entrevista exclusiva ao Cointelegraph Brasil, Matheus Moura, CEO e cofundador da Avenia, detalhou a gênese da companhia e seu modelo de negócios, além de compartilhar detalhes técnicos sobre a emissão e a gestão das reservas do BRLA.
Matheus explica que as reservas do BRLA são 100% garantidas por títulos do Tesouro SELIC, mas os rendimentos associados, por si só, não são a principal fonte de receita da Avenia.
Ao contrário dos emissores de stablecoins atreladas ao dólar, como a Tether e a Circle, cuja principal fonte de receita vem do rendimento de suas reservas, aproximadamente 90% da receita da Avenia provém de serviços transacionais.
Atualmente, a infraestrutura da Avenia viabiliza pagamentos internacionais para brasileiros em viagens no exterior, permitindo-lhes usar um cartão de débito com saldo em reais, e facilita transações para estrangeiros no Brasil via Pix, sem a necessidade de uma conta bancária local. Além disso, oferece serviços de transferências e pagamentos transfronteiriços.
Por fim, na entrevista a seguir, Matheus reafirma a importância do Drex e da tokenização de ativos reais (RWA) para a ampla adoção das stablecoins no ecossistema brasileiro, detalha os planos de expansão da Avenia na América Latina, e as perspectivas para a regulamentação dos criptoativos no Brasil.
Transição do mercado tradicional para as criptomoedas
Cointelegraph Brasil: Ao migrar das TradFi para o mercado cripto, por que os sócios da Avenia decidiram criar uma stablecoin atrelada ao real?
Matheus Moura: A Avenia foi fundada por mim e outros quatro sócios, todos com experiências prévias no mercado tradicional. Foi apenas em 2021 que conseguimos alinhar nossas agendas para desenvolver um projeto baseado na nossa tese sobre o potencial das criptomoedas.
Nós começamos desenhando um produto que era uma conta em dólar para o brasileiro, baseada em USDC, no final de 2021. Naquela época, não tínhamos a regulamentação que temos hoje. A gente percebeu que o tema, do ponto de vista regulatório, era um pouco complicado e decidimos não avançar. Viemos de indústrias reguladas, então somos um pouco mais “caxias” do que a média do mercado, então resolvemos montar uma gestora quantitativa para fazer arbitragem em cripto. Montamos essa gestora e no Brasil, tinha um fundo em Cayman, uma gestora no Brasil regulada e um fundo brasileiro também. Captamos 30 milhões e começamos a fazer investimentos. Fizemos isso durante 2022, até que, no final do ano, a lei 14.478 foi publicada. Decidimos fechar a gestora, devolvemos o dinheiro aos investidores — muitos deles se tornaram anjos aqui na Avenia — e montamos a empresa. Inicialmente como emissora do BRLA, que é a nossa stablecoin do real.
A nossa tese era que a gente fazia 1.000 exchanges no mundo inteiro sem nem pensar que estava mandando dinheiro de um país para outro, era muito simples. Mas quando um investidor brasileiro queria mandar dinheiro para Cayman, era uma coisa muito complicada. Pensamos: “Pix, balcões e blockchain podem mudar o jeito que pagamentos globais são feitos, e o primeiro passo é ter uma stablecoin do real. Depois, a gente constrói a partir daí.”
CTB: Como funciona o processo de mintagem e resgate do BRLA e como é feita a gestão das reservas que garantem a paridade da stablecoin com o real?
Matheus Moura: Como emissora, a Avenia recebe os reais do cliente em uma conta bancária, transfere esses reais para uma outra conta, para garantir o que chamamos de “lastro” ou “reserva”, e emite um ativo digital, que é o BRLA, que faz jus àquele lastro.
Você sabe que 1 BRLA vale 1 real, porque tem 1 real depositado para cada ativo que é emitido. Nós não trabalhamos com o que se chama de “pré-mint” (emissão prévia), que consiste em “mintar” os tokens sem lastro antes de receber os reais que servem como garantia. Na Avenia, a mintagem só é feita quando a gente recebe o recurso do cliente. Automaticamente, o dinheiro é encaminhado para os nossos bancos de reservas, onde o capital é investido em Tesouro Selic, que é o ativo de menor risco no Brasil.
Tudo isso, apesar de parecer um processo demorado, acontece em questão de segundos. O cliente faz o depósito e em instantes já recebe o token. E o mesmo processo inverso acontece no momento do resgate: o cliente solicita o resgate, autoriza a Avenia a capturar os tokens correspondentes ao valor a ser resgatado, os tokens são queimados, o dinheiro sai de nossas contas de reserva e são transferidos para os clientes na conta desejada.
Os pilares de uma stablecoin são a confiabilidade da paridade 1:1 – o cliente tem que ter a possibilidade de fazer o resgate em reais na proporção de 1:1 sempre que desejar – e a confiabilidade do lastro: o lastro precisa realmente equivaler à quantidade de tokens em circulação na proporção de 1:1.
Hoje, a Avenia conta com uma firma de auditoria que analisa as reservas e a qualidade do lastro do BRLA mensalmente. As reservas ficam 100% em Títulos do Tesouro Selic, pois na nossa visão é o que mais faz sentido em termos de risco para os nossos clientes.
CTB: Um relatório recente da Iporanga Ventures destaca que, no longo prazo, a receita dos emissores de stablecoins pode vir do rendimento sobre reservas, como é o caso da Tether, emissora do USDT, mas que as stablecoins do real são mais transacionais. Qual o modelo de negócios adotado pela Avenia?
Matheus Moura: As pessoas compram stablecoins do dólar simplesmente pelo fato de estarem se expondo ao dólar como investimento. No caso do real, dificilmente ele é o produto em si. Ninguém investe em reais. As pessoas mantêm stablecoins de real para poder acessar um aplicativo, ou se precisam de reais para fazer um investimento. No caso de empresas, se você tem obrigações em reais, provavelmente você vai segurar reais. Então, as stablecoins do real acabam não sendo um produto em si. Você precisa usá-las como tecnologia e como um recurso para criar um produto em cima delas. Essa é a principal diferença em relação às stablecoins do dólar.
Hoje, a Avenia é ao mesmo tempo a emissora do BRLA e uma empresa de infraestrutura financeira que usa stablecoins como alicerce. Na parte de emissão, somos remunerados pelo rendimento das nossas reservas, mas isso não corresponde à maior parte da nossa receita. É um percentual pequeno. A maior parte vem da atividade de nossa infraestrutura de serviços financeiros, como pagamentos, recebimentos e conversão de moeda.
CTB: Depois de conquistar espaço no mercado brasileiro, com o BRLA tornando-se uma das principais stablecoins atreladas ao real em volume negociado, a Avenia passou por um rebranding, para focar em uma expansão regional na América Latina. Em quais países há demanda por stablecoins locais na região? O custo de conformidade regulatória compensa?
Matheus Moura: Nossos clientes são majoritariamente empresas globais. Em meados do ano passado, alguns clientes nos perguntavam: “Vocês têm planos de ir para a Argentina? Vocês têm planos de ir para o México?”. Toda semana tinha um cliente pedindo para usar a mesma solução que a Avenia oferece no Brasil em outros países. Ou seja, existe uma demanda muito relevante dos nossos próprios clientes. Com o tempo, nós entendemos que isso não só é positivo para eles, mas para nós também. Aumenta o volume de negócio, melhora o meu relacionamento com esses clientes. Então, começamos a estudar os mercados latino-americanos e concluímos que há um potencial muito grande para a Avenia se tornar um player regional, e não apenas local. Daí veio a ideia do rebranding também, já que “BRLA” está bastante associado ao Brasil.
O nome Avenia ou Avenue, em inglês, remete ao conceito de avenida: a infraestrutura física que os carros utilizam para ir de um lugar para o outro. Nós queremos ser a infraestrutura que habilita o fluxo desses serviços financeiros.
A Avenia já possui um fluxo de transações relevante entre Brasil e Argentina, e isso favorece essa expansão. A ideia é que ainda este ano seja lançada tanto a nossa infraestrutura de conversão e de pagamentos quanto a nossa stablecoin atrelada ao peso argentino. Também estamos no processo de obtenção das primeiras licenças no México e na Colômbia.
Casos de uso do BRLA e stablecoins do real como alternativa o Pix
CTB: O que a experiência com o BRLA ensinou a vocês sobre os potenciais casos de uso de stablecoins atreladas a moedas como o real ou o peso argentino. Para que elas servem de fato, uma vez que se tratam de moedas que têm pouca demanda no ecossistema cripto?
Matheus Moura: Hoje, alguns casos que habilitamos são de brasileiros que querem ter um cartão de débito emitido no exterior para usar quando estiverem viajando. Essas companhias e emissoras de cartão aceitam o BRLA como depósito. Então, o brasileiro não precisa transformar os reais em dólares para fazer um pagamento no exterior com esse cartão de débito. Ele pode usar o BRLA para fazer pagamentos denominados em reais, normalmente. No momento do débito, é feita uma conversão automática para o USDC e o débito na carteira do cliente. Já existem empresas que já aceitam o BRLA, e fazem essa conversão em outro momento.
Também é um instrumento muito útil para estrangeiros acessarem o real. Vamos supor que uma empresa estrangeira tem que fazer um pagamento de R$ 1 milhão no Brasil. Você acha que o câmbio está bom, mas não tem conta bancária no Brasil nem uma operação aqui. O que você faz? Você compra o BRLA, trava o seu câmbio no momento do pagamento, e faz uma transmissão desse BRLA para o beneficiário final, que recebe Pix na conta dele.
A Avenia também facilita o uso do Pix para estrangeiros no Brasil. Por exemplo, eles podem pagar contas de Uber, restaurantes ou hotéis por meio de aplicativos de pagamento. Para o usuário, funciona como se ele tivesse pagando com Pix, mas, na prática, a Avenia fornece toda essa infraestrutura com o BRLA para habilitar os pagamentos na ponta. Isso também inclui pagamentos de empresas, como patrocínios, despesas de marketing e produção de eventos no Brasil.
CTB: É possível vislumbrar um futuro em que stablecoins de real possam competir com o Pix como meio de pagamento, especialmente após os casos recentes que evidenciaram as vulnerabilidades do sistema de pagamento do Banco Central?
Matheus Moura: Os casos recentes de hack do Pix ocorreram em nível de mensageria – ou seja, na camada de comunicação entre as instituições. Isso, em um ambiente de blockchain, oferece um nível de segurança quase intransponível. Obviamente, existem outros riscos, mas, neste caso, a barra de segurança seria muito maior.
Minha visão sobre o tema é que, para o pagamento local com stablecoins ganhar mais adesão, talvez precisássemos avançar mais algumas casas com o Drex. Ele traria mais legitimidade e unificaria a interface com outros sistemas de pagamentos.
Hoje, se a Avenia quiser oferecer pagamentos com o BRLA, nós precisamos conectar nossa infraestrutura a de todas as adquirentes, como a Stone ou a PagSeguro.
O Drex cria um ambiente em que o BRLA poderia estar integrado a todos os processadores do Pix ao mesmo tempo. Tecnicamente, isso ajudaria muito, e, obviamente, em termos de reputação e legitimidade também. Eu acho que o obstáculo é grande, mas é algo a se considerar. A probabilidade de esse cenário se materializar aumentou.
CTB: Vocês vislumbram oportunidades para oferecer rendimentos para os detentores do BRLA com uma solução proprietária ou por meio da integração com protocolos DeFi?
Matheus Moura: Eu acho que faz bastante sentido, sinceramente. Do mesmo jeito que pensamos na infraestrutura do câmbio, existe a infraestrutura das contas poupança em cripto. Então, como criar essa mesma infraestrutura paralela on-chain, seja via smart contracts ou por API? É algo que analisamos.
Para fazer em escala, ainda existem questões regulatórias que precisam ser pacificadas. Na minha visão, isso vai acontecer. É bom para o consumidor e, consequentemente, deveria ser de interesse do regulador que a gente possa distribuir esse rendimento.
Então, temos a intenção de construir isso em nível de infraestrutura para permitir que muitos outros aplicativos consigam fazer o mesmo com seus clientes.
Existe uma experiência em andamento com o PicNic, que é uma carteira autocustodial. Mediante a aprovação dos usuários, nós conseguimos fazer essa distribuição de rendimento através de novas emissões de BRLA, proveniente dos rendimentos das nossas reservas. É um rendimento 100% sustentável. Sinceramente, esse produto tem crescido em um ritmo mais rápido do que eu esperava, porque ainda há soluções a serem implementadas para melhorá-lo. A adesão dos usuários nos incentiva a seguir adiante e oferecer coisas novas nessa frente.
Tokenização de ativos reais e regulamentação
CTB: A Iporanga Ventures cita a tokenização de ativos reais como uma oportunidade chave para o crescimento das stablecoins do real. Quais as principais oportunidades e desafios que vocês enxergam para o BRLA e para o mercado de stablecoins com o avanço da tokenização?
Matheus Moura: Uma stablecoin do real é necessária para toda essa infraestrutura de tokenização que está sendo construída. Nós estamos próximos dos principais players de tokenização e temos feito coisas com eles. Eu acho que também é bom do ponto de vista do cliente, que terá acesso a ativos aos quais antes não tinha, facilidade na negociação e mercados secundários mais bem desenvolvidos.
Os investimentos financeiros são um módulo específico em que haverá muita disrupção, proveniente tanto da tokenização quanto da utilização dessa tokenização para a infraestrutura, para permitir que novas plataformas de investimento sejam criadas. Tudo isso, querendo ou não, terá uma stablecoin do real como alicerce.
CTB: O relatório da Iporanga destaca a baixa liquidez como um dos principais gargalos para a adoção de stablecoins de real. Quais são as iniciativas da Avenia para aumentar a liquidez do BRLA, combater a fragmentação entre emissores e atrair formadores de mercado?
Matheus Moura: A solução é criar mais casos de uso reais, como temos criado. Isso é o que gera volume, tornando o mercado mais atrativo para market makers e arbitradores. O BRLA, hoje, tem um volume de transações em DeFi que já é muito relevante. Muito mais relevante do que outras stablecoins, exatamente porque tem uma variedade de casos de uso. Isso aumenta a atratividade para os market makers e começa a criar um ciclo virtuoso de liquidez e de volume de negociação.
CTB: O foco do Banco Central na regulação das stablecoins está concentrado no mercado de criptomoedas atreladas ao dólar e em sua utilização no mercado de câmbio. Quais as expectativas da Avenia para as futuras regras específicas para stablecoins de real?
Matheus Moura: Hoje o mercado está focado em regular as exchanges, incluindo questões de custódia e atividades de pagamento.
O Banco Central acerta ao propor uma abordagem regulatória que aumenta a barra de responsabilidade, de reporte e de controles. Para o player sério, a regulação flexibiliza a utilização da infraestrutura financeira. Ela pode reportar câmbio em nome próprio, acertar contas de pagamento e se conectar de forma mais direta ao Pix.
Sempre há discussões sobre pequenos detalhes, que às vezes nem foram intencionais. Alguns termos foram colocados de uma forma enviesada, muitas vezes por falta de entendimento sobre questões mais técnicas. Mas também é positivo que o Banco Central está super aberto para ouvir a indústria e ter conversas para mudar. Nossa visão é que isso vai impulsionar muito o mercado, vai trazer mais competitividade para os players de blockchain frente às instituições tradicionais, além de muita legitimidade.
Sobre a emissão de stablecoins do real, ainda não houve muita discussão. Ela tem acontecido de forma mais informal, mas não tivemos nenhuma publicação relevante do Banco Central sobre o tema.
A gente acredita que o Banco Central vai vir com algo muito dentro do esperado, uma combinação do MiCA, da União Europeia, com as leis de Singapura e com o GENIUS Act dos EUA. A questão do repasse dos rendimento das reservas aos detentores de stablecoins pode ser solucionada.
Do ponto de vista da competição, também seria bom regulamentar a questão do lastro: o que se pode fazer com as reservas. Hoje, a Avenia mantém o lastro em Tesouro Selic, mas isso não é regulado.
Estou otimista com os avanços regulatórios aqui no Brasil. Nós da Avenia estamos sempre abertos a conversar e fazer qualquer ajuste de rota para ajudar o regulador.