Em agosto deste ano, as organizações indígenas no Brasil, lideradas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), lançaram o documento “NDC Indígena”, que apresenta demandas dos Povos Indígenas para as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC) brasileiras. A proposta representa uma inflexão necessária no debate climático. Ela desloca o foco das soluções tecnocráticas para o reconhecimento de que a proteção das florestas e dos modos de vida associados a elas é, em si, uma ação climática de primeira ordem.
No Brasil, a mitigação das mudanças climáticas é indissociável da questão florestal. Quase 75% das emissões de gases do efeito estufa (GEE) no Brasil provém do desmatamento e da agropecuária. Impedir que as florestas queimem é uma das principais contribuições que o Brasil pode oferecer para o clima do planeta. Diante deste cenário, povos indígenas e comunidades tradicionais têm se fortalecido como principais guardiões das florestas e atores centrais da conservação.
O caso das Terras Indígenas (TI) é paradigmático: apesar de ocuparem quase 14% do território nacional, elas perderam apenas 1,2% da vegetação nativa nos últimos 40 anos, apresentando assim as menores taxas de desmatamento no país e concentrando parte expressiva das chamadas “emissões evitadas”. A demarcação de Terras Indígenas e o fortalecimento da proteção territorial na Amazônia não são, assim, apenas uma pauta de justiça histórica, mas uma condição prática para o cumprimento das metas de redução de emissões.
Incorporar as NDC Indígenas às políticas oficiais significa reconhecer que a floresta viva e a diversidade sociocultural são pilares inseparáveis de qualquer estratégia de descarbonização. No cotidiano da relação com as florestas, os povos indígenas demonstram que o cuidado com o território, a continuidade cultural e a gestão comunitária dos recursos naturais são formas concretas de mitigação e construção de resiliência às mudanças do clima.
Uma vez que as práticas de conhecimento e modos de vida tradicionais são ativos na conservação da floresta, a permanência dessas populações em seus territórios é uma estratégia fundamental e urgente para a mitigação da mudança climática. Ameaçada pela própria mudança no clima, que se soma a pressões históricas como desmatamento, invasões, projetos de infraestrutura e garimpo, tal permanência exige uma abordagem integrada, que garanta a implementação de ações estruturantes focadas no reconhecimento de direitos territoriais, o que inclui as demarcações de TI, e que devem ser acompanhadas por ações efetivas para proteção territorial.
Nesse contexto, as NDC indígenas emergem como um marco na integração entre justiça climática, direitos territoriais e ciência tradicional. Inspiradas nas metas oficiais do Acordo de Paris, elas propõem um caminho próprio, desenhado a partir das comunidades e sua cosmologia, e aponta que fortalecer direitos e proteger territórios é também reduzir emissões. Organizada em sete eixos, a estratégia coloca no centro a demarcação e proteção dos territórios indígenas.
A proposta também inclui uma abordagem de adaptação dos territórios indígenas às mudanças climáticas baseada nos modos de vida e na governança tradicionais; uma transição justa, que rejeite a exploração de combustíveis fósseis e mineração em territórios indígenas; e o financiamento climático direto como garantia de que os recursos necessários cheguem às comunidades. Ganham destaque também a defesa da justiça climática, com plena participação indígena nas decisões; a valorização do conhecimento tradicional, e a relação entre clima, biodiversidade, desertificação e oceanos, reforçando uma perspectiva integrada para soluções climáticas eficazes.
Em consonância com a palavra de ordem “A resposta somos nós”, a proposta insiste na constatação de que as soluções para a crise climática existem e encontram um solo fértil nos territórios indígenas. Não apenas porque as Terras Indígenas delimitam grandes porções de floresta, mas principalmente porque a floresta só resiste em sua forma atual como resultado da relação que os povos indígenas e outras comunidades tradicionais mantêm com ela.
Ao colocar a floresta em pé no centro do debate sobre soberania e futuro, o movimento indígena aponta para a transformação da política climática em um projeto de vida e resistência. As NDC indígenas sinalizam que o Brasil só poderá avançar de forma consistente rumo à neutralidade de carbono se reconhecer, na prática, que os povos indígenas são agentes centrais da política climática, uma que vez que são guardiões de uma peça-chave para o equilíbrio do planeta.
- Eric Macedo é antropólogo e pesquisador do programa Desenvolvimento Local do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces).
- Kena Chaves é geógrafa e coordenadora do programa Desenvolvimento Local do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces).
(*) Disclaimer: Este artigo reflete a opinião do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso destas informações.