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terça-feira, outubro 7, 2025

A domesticação da psicanálise – Revista Cult

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O maior inimigo da psicanálise é ela mesma. É apenas tendo consciência disso que ela pode ser fiel a si, fiel a seu impulso gerador. Pois a história da psicanálise é, desde seu início, a história de uma luta contínua contra sua acomodação em uma prática terapêutica dos males de adaptação burgueses. Como vários já perceberam, há uma luta de classes a atravessa-la. Essa acomodação sempre volta e não poderia ser diferente em nosso presente, quando a psicanálise é convocada para mais uma vez ocupar espaços no debate da cultura, promover a “escuta” em um mundo onde querem nos empurrar as lágrimas da pretensa “ausência de diálogo” que marcaria nossa época. Mas convocada também para, porque não falar as coisas às claras, garantir rendimentos possíveis em uma era de fim do emprego e de precarização generalizada.

A experiência da pandemia e a consciência cada vez mais aguda da crise psíquica na qual o neoliberalismo nos empurrou fez com que a voz da psicanálise falasse alto mais uma vez. Ela pode ser escutada radicalizando seu viés crítico ou prometendo uma última integração possível a uma sociedade totalmente desintegrada. Seria interessante perguntar como tais escolhas são feitas.

Freud costumava dizer que a função da psicanálise era permitir aos sujeitos trabalharem e amarem. Bem, uma ideia dessa natureza pode ser compreendida, ao menos, de duas formas completamente diferentes. Em uma de suas versões, o progresso analítico se confundiria com certa forma de restauração. Os anos em análise permitiriam a um sujeito regressar a seu trabalho, recuperar sua capacidade de amar. Mas, bem, temos sempre o direito de perguntar o que pode realmente significar “regressar” ao trabalho a não ser melhor se adaptar à precariedade e aos regimes de alienação que marcam de forma indelével o trabalho no interior das sociedades capitalistas. Em uma sociedade na qual trabalhadoras e trabalhadores não decidem o que fazer, como fazer e para quem fazer, na qual a máxima espoliação é vendida sob o nome pomposo de “empreendedorismo”, readaptar sujeitos ao mundo do trabalho é só colaborar com a perpetuação de seu sofrimento. Como se tivéssemos pessoas acometidas de sofrimentos produzidos pela vida social e tratássemos tais sofrimentos como se fossem “psíquicos”, “psicológicos”, individualizando suas causas e a abordagem de nossa clínica. Melhor seria que o mal-estar produzido pelo mundo do trabalho pudesse se tornar uma arma contra uma ordem social alienante. Como costumava dizer o Coletivo Socialista de Pacientes (SPK): “A pedra que alguém atira contra as centrais de comando do capital e a pedra no rim da qual um outro sofre são intercambiáveis. Protejamo-nos das pedras nos rins!”

Por outro lado, o que pode significar “recuperar” sua capacidade de amar em uma sociedade como a nossa, na qual as formas de sujeição social são, primeiramente, formas de sujeição de nossos afetos e sensibilidade? A sociedade é reproduzida, em sua violência e estereotipia, não apenas quando submetemos nosso tempo às exigências de um trabalho vazio e alienado, quando obedecemos um poder que nos amedronta, mas principalmente quando aprendemos a organizar nossos afetos a partir de palavras que trazem uma enorme carga de pressupostos teológicos, econômicos e disciplinares como: felicidade, solidão, abandono, amor, traição, separação, entre tantas outras. É através dessa pedagogia dos afetos que aprendemos a investir libidinalmente nas normas sociais. Pode parecer que estamos a criar a singularidade de nossas vidas quando descrevemos nossas dores usando tais palavras. Na verdade, estamos contando nossas histórias a partir de ideais sociais bastante rígidos e gerais.

Para ter uma ideia de quão carregado de pressupostos são tais palavras que usamos de forma desproblematizada, seria possível imaginar existir alguma diferença entre amor e sexo se não fossemos marcados por um horizonte teológico que naturaliza distinções entre razão e sensibilidade, entre vontade livre e impulsos corporais, entre liberdade e libido? Uma teologia que marca a corporeidade com o selo da animalitas e a contenção com o selo da humanitas? Ou seja, sempre que dividimos nossas formas de afeto entre amor e sexo demonstramos como continuamos sendo cristãos extremamente fieis. Ainda vamos à igreja mesmo que deixemos de frequentar fisicamente uma. Demonstramos quão incapazes somos de sair de um horizonte histórico contingente.

Da mesma forma, faria sentido em sofrer por alguma “traição” se não acreditássemos em “contratos”, em “promessas de uso”, se não imaginássemos que a maioridade implica capacidade de estabelecer contratos entre indivíduos possuidores (de seus próprios corpos, de seus desejos, etc.)? Mas de onde tiramos essa noção de contrato a não ser da lógica econômica do proprietário, para ser mais preciso, da extensão da lógica econômica do proprietário às nossas relações intersubjetivas? Não seria então o caso de lembrarmos que, em várias circunstâncias, dizer é fazer, e se quisermos mudar certas formas do que fazemos devemos começar por modificar nossa maneira de dize-las?  Essa talvez tenha sido a maior contribuição da psicanálise: nos levar a falar de nós mesmos de outra forma.

Se a psicanálise se restringiu a falar de apenas dois afetos, a saber, a angústia e o desamparo, era porque ela entendia que eles eram o saldo inescapável dessa pedagogia que procuram nos empurrar como a gramática natural de nossas vidas. O saldo da maneira como fomos socialmente constituídos era um sentimento contínuo de desamparo e de angústia. Desamparo de quem se sente desprovido de ajuda do Outro. O que significa algo muito preciso: a gramática que a ordem social nos forneceu nos divide, nos cliva e faz uma parte de nós recusar as palavras que nos oferecem para narrarmos a nós mesmos, implodir as relações nas quais nos encontramos, não encontrar tradução em nenhum “saber fazer” sobre o amor e outros hematomas. Por isso, o desamparo nunca foi algo que a psicanálise procurou curar. Antes, foi algo que ela procurou afirmar como condição para nos livrarmos das fantasias de encontrarmos uma garantia existencial no olhar da ordem social que nos constituiu.

Por isso, há uma segunda maneira de compreender a frase de Freud sobre a função da psicanálise permitir ao sujeito trabalhar e amar. Ao invés de restaurar uma capacidade pretensamente perdida, trata-se de transformar um impossível, fazer desse impossível não o signo da impotência de um sujeito, mas impotência de uma ordem social que precisa se confrontar ao impossível que ela mesmo cria. Lacan, ao vincular o desejo à falta, não estava repetindo o gesto de Platão, para quem desejar significava necessariamente sentir a falta de algo que precisamos mas do qual não possuímos. Há um giro copernicano a ser feito aqui, pois não se trata de essencializar a falta como uma característica ontológica do sujeito, e sim de desvela-la como “falta no Outro”.  Isso significa: lembrar como as formas de inscrever nosso desejo na sociedade da qual fazemos parte nos deixa sempre “em falta”. Por isso, nosso desejo não tem o que fazer com as palavras que procuram domesticar nossa existência. Por isso, estamos sempre à procura de outra sociedade.

Isso significa entender que não temos nada o que fazer com o trabalho e o amor que se impõe a nós. Nossa função é reforçar o estranhamento em relação a tais normatividade sociais. Mas fica muito difícil ter essa experiência quando vemos legiões de psicanalistas e congêneres a fazerem rodar a ladainha infinita das dores de amor e sua arte, dos sentimentos de abandono, de solidão, das procuras pela sua própria felicidade, dos sentimentos de traição, das promessas de melhorar seus desempenhos na vida profissional, entre tantos outros. Uma pessoa menos crente poderia se perguntar se a psicanálise brasileira não entrou em uma fase “música sertaneja”, já que parece referendar a repetição do mesmo horizonte de preocupações e queixas presente nos grandes sucessos do pré-candidato à presidente Gustavo Lima e seus amigos. Na verdade, há de se perguntar se o sucesso atual da psicanálise não tem, mais uma vez, levado à sua domesticação.

As formas sociais de servidão não passam apenas pela voz dos que enunciam a disciplina, usam a coerção para fazer valer a norma. Elas passam principalmente pelo exército da boa vontade daqueles que estão aqui para te ajudar, que prometem escuta, cuidado e apoio. Nesses casos, não há ajuda melhor do que eliminar os que julgam poderem se colocar como gestores dos males da inadequação social. Mais honesto seria uma atitude como a de Felix Guattari, que convidava analistas a pararem a fala de suas e seus pacientes quando elas e eles repetiam os padrões tradicionais do complexo de Édipo. Bem, há muitas maneiras de “parar” uma fala. Evidenciar a ausência de resposta é uma delas. Lembrar, como dizia Guimarães Rosa, que um léxico só não basta é outra. De toda forma, por mais que a colocação de Guattari seja metafórica, fica ao menos a consciência da análise ser esse espaço no qual pode circular a experiência de um inominável que perpassa nossos conflitos e afetos. Porque eles são uma mensagem dirigida a uma possibilidade que ainda não se realizou. Uma possibilidade que, se realmente escutada, pode auxiliar a derrubar a gramática que nos coloniza e nos faz sofrer.

Nesse sentido, diante dos afetos que a cultura tenta naturalizar em nós o silêncio é uma intervenção eticamente necessária. Calar-se diante de algo que é dito de forma tão compulsiva, como possível emplastro da redenção para todos os males pessoais, políticos, sociais, existenciais que seria o caso de começar por desconfiar que sensato era Sócrates que dizia nada saber das coisas do amor. Pois um dos mais claros sinais de esclarecimento é não esperar que te ensinem o que não é objeto de um saber.

Por fim, seria o caso de lembrar que a história brasileira da psicanálise é uma história tensa, para dizer o mínimo. As primeiras sociedades de psicanálise eram compostas pelos rebentos urbanos de famílias tradicionais. Isso fez dela uma prática cara e classista por muito tempo. Mesmo a prática de cobrar preços variáveis para atender certas pessoas de classes desfavorecidas apenas repetia a lógica clássica do “favor” que moldou as relações interclasses no Brasil. Muitas das análises da realidade brasileira que saiam da pena de psicanalistas eram versões atualizadas da tese conservadora de uma sociedade marcada pelo “déficit da lei paterna”. Outras inverteram os sinais e apareceram por volta dos anos noventa falando exatamente da necessidade de saber se adaptar a um mundo “continuamente cambiante”, “sem referências definidas”, fazendo uma versão terapia dos elogios sociológicos à “sociedades de risco” e à “sociedade da iniciativa”. Não é de se estranhar que algo dessa história retorne agora.

Ao lado dessa história, no entanto, e de forma heroica mas minoritária, havia uma psicanálise que procurava criar clínicas populares (como as experiências de Helio Pellegrino), que se integrou a lutas por políticas públicas de saúde mental, que se associou às vanguardas literárias e que entrou nas universidades prometendo aprofundar as estratégias do pensamento crítico. Uma psicanálise que prometeu sustentar a crítica implacável do que nos tornarmos e do que não queremos mais ser. É essa parte da história que merece continuidade.

 



[Fonte Original]

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