Todo ficcionista, no fundo, escreve sobre suas obsessões — e as de Ryan Murphy são os efeitos da homolesbotransfobia na formação de sujeitos geniais e generosos (os que a superam a duras penas e por meio da identificação coletiva com sua comunidade, esta mesma constituída pela LGBTfobia) e daqueles que se tornam pessoas horríveis em diferentes níveis: dos mitômanos e mentirosos compulsivos — com seus corpos artificiais, seus procedimentos estéticos e suas vidas de luxo e glamour mentirosas nas mídias sociais, onde destilam inveja e veneno tentando se mostrar superiores “às inimigas” que deveriam ser amigas — até os psicopatas e serial killers como Ed Gein (interpretado por Charlie Hunnam) e Andrew Cunanan (The Assassination of Gianni Versace), passando pelos gays e lésbicas fascistas e políticos hipócritas que, mesmo depois de assumidos, seguem agentes da opressão e do ódio à própria comunidade.
Há também, nas obsessões de Murphy, o fascínio da massa estadunidense pela violência e pela brutalidade — com seus serial killers e perpetradores de massacres —, algo que a indústria cinematográfica explora economicamente e, ao mesmo tempo, estimula. Monstro: A História de Ed Gein (Netflix, 2025) sugere isso ao abordar a decepção de Alfred Hitchcock (interpretado por Tom Hollander) com o tipo de apetite que seu Psicose (1960) despertou: a normalização do horror. A série traça os nexos entre Psicose e os filmes de terror cujos protagonistas são serial killers campeões de bilheteria — O massacre da serra elétrica e O silêncio dos inocentes —, e também entre esses produtos culturais e os massacres e assassinatos em série reais.
Neste artigo, detenho-me na primeira das obsessões de Murphy — ainda que, nesta temporada da série, ele atue apenas como produtor executivo, dando sequência às suas criações anteriores —, e em como ele coloca a figura da mãe castradora como central em Monstro. O roteiro se concentra no papel dessa mãe na introjeção da misoginia, da homofobia e da transfobia, na origem de neuroses, disforias de gênero, distúrbios mentais e perversões sexuais medonhas.
A mãe religiosa — Augusta Gein, interpretada magistralmente por Laurie Metcalf — aparece como um superego-útero, que pare desde neuróticos e neuróticas até psicóticos monstros, passando por cineastas geniais porém homofóbicos e transfóbicos, e por políticos sádicos como Mussolini, Hitler e Nixon. É o fantasma da não continuação da linhagem, da prole, que a assombra desde o momento em que identifica a sexo-divergência do filho ou filha — e isso se dá na mais tenra infância: a mãe é sempre a primeira a saber e a última a acreditar.
Ela carrega algo específico da homofobia feminina — distinta da masculina. No caso do filho gay ou da filha trans, vê inconscientemente a supressão de dois pênis, portanto de duas fontes de seu gozo. No caso da filha lésbica ou do filho trans, repudia — também em níveis inconscientes — a renúncia ao prazer dado pelo falo, numa confusão comum entre orientação sexual e identidade de gênero.
A série dá relevo ao papel do “segredo” no sofrimento psíquico de gays e lésbicas — e a como esse segredo pode ser explorado até mesmo por artistas. Hitchcock, por exemplo, escolhe Anthony Perkins (que interpretou Norman Bates, inspirado em Gein) precisamente por saber de sua homossexualidade no armário. Perkins, aliás, é evocado na série como espelho melancólico da repressão e da culpa.
Há um momento em que Augusta Gein diz claramente: “Eu deveria ter lhe castrado.” Essa frase condensa o ponto em que a ficção toca o mito.
Aqui ressoam dois conceitos fundamentais da psicanálise. O primeiro é o complexo de castração, desenvolvido por Sigmund Freud em textos como On the Sexual Theories of Children (1908), Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy (1909) e nas New Introductory Lectures on Psychoanalysis (1933), onde a figura da mãe fálica se apresenta como depositária do poder de privar ou conceder o falo — matriz da fantasia da “mãe castradora”. O segundo é a “síndrome da mãe morta”, formulada por André Green em seu ensaio La mère morte (1983), que descreve o trauma deixado por uma mãe emocionalmente ausente ou devastada, cuja “morte psíquica” precipita na criança um luto sem objeto, gerando apatia, melancolia e ódio.
A série dramatiza a junção dessas duas forças: a mãe castradora e a mãe morta — a mãe que ameaça, vigia e reprime até esvaziar o filho de desejo e sentido.
Também está em jogo a gestão esquizofrênica da vida dos gays no armário — como mostraram Didier Eribon e Eve Sedgwick — e a misoginia, que se torna mais aguda em homens heterossexuais, os quais, pela mesma relação com a mãe, buscam esposas parecidas com ela e reproduzem a violência feminicida.
Embora este artigo recorra à psicanálise, é importante ressaltar que Monstro denuncia como a prática psicanalítica nos Estados Unidos se tornou, durante décadas, uma prescrição normativa homofóbica que causou imenso sofrimento a gays, lésbicas e pessoas trans em busca de “cura” — algo que ainda persiste. Não podemos esquecer, por exemplo, das falas homofóbicas de Jacques Lacan em um de seus seminários: “A homossexualidade não deixava de ser o que é, uma perversão.” (Esta afirmação aparece no Seminário VIII de Lacan, onde ele classifica a homossexualidade como uma perversão, alinhando-se a uma perspectiva normatizadora da sexualidade).
Quem melhor aponta a produção subjetiva dessa mãe castradora, produtora da misoginia tanto de heteros quanto de gays — e do fascínio destes últimos pelo seu oposto, a “diva” (tema que estou trabalhando para um próximo livro) —, não é uma teórica feminista, mas Pierre Bourdieu, em A dominação masculina. Só um homem gay ou hetero, cis ou trans, poderia falar com tanta clareza do quanto sua relação com as mulheres — cis ou trans — está forjada a partir desse corpo a corpo com mães machistas, cujas estruturas cognitivas foram moldadas pelo patriarcado.
“Homens e mulheres incorporam sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação as estruturas históricas da ordem masculina.”, diz ele.
Essas mães podem gerar gênios — que transformam o trauma em criação e generosidade —, mas também geram monstros humanos. E, na sociedade heterossexista, os monstros heterossexuais são mais aceitos e normalizados do que os gays e as trans.
A personagem Adeline (interpretada por Vicky Krieps) luta contra a sujeição patriarcal herdada de sua mãe solo autoritária e machista, mas só consegue avançar dessa sujeição para o lugar de co-genitora do monstro Ed Gein. Felizmente, os feminismos têm interrompido, em muitas mulheres — embora ainda não na maioria —, a reprodução desse destino.
Da mesma forma, a “heroína” em quadrinhos de Gein, “A Piranha de Buchenwald”, é uma nazista abjeta cujo hobby é fazer móveis com a pele de judeus torturados e mortos. Sua postura, dentro das fantasias psicóticas de Gein, faz referência direta a Adolf Eichmann e à justificativa de seu julgamento em Jerusalém: “Eu apenas cumpria ordens.” Foi isso que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal” — algo que se repete hoje, quando soldados israelenses cumprem ordens de Netanyahu e da extrema-direita do país em Gaza, matando mulheres e crianças indefesas. Arendt já havia alertado, desagradando muitos judeus à época, que monstros como os que perpetraram o holocausto na Alemanha durante a Segunda Guerra poderiam nascer também entre suas vítimas, desde que estas também renunciassem à e capacidade de pensar e à decência humana básica.
Assim, ao iluminar o lado sombrio da maternidade – engendrado e/ou aguçado pela dominação masculina ou patriarcado – como a origem da psicose de Gein, que matou e despedaçou mais de 200 pessoas vivas e/ou cadáveres, a nova temporada de Monstro articula essa dimensão individual à coletiva, na medida em que o gatilho para o surto psicótico de Gein foram as fotos dos cadáveres de judeus nos campos de concentração nazistas, o tipo de monstruosidade cometida por populações inteiras sob as ordens de líderes populistas e religiosos que usam da fé em Deus para “justificar” seus atos.
Jean Wyllys: jornalista, escritor e artista visual. Autor, entre outros livros, de Falsolatria (Nós/Sesc SP, 2024) e O anonimato dos afetos escondidos (Tusquest, 2025h