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segunda-feira, novembro 3, 2025

A persistência da peste marxista – Revista Cult

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Não há dúvidas de que, para os defensores da exploração capitalista, o marxismo é uma peste — uma infecção teimosa que insiste em não morrer, mesmo após incontáveis tentativas de assepsia ideológica. Milhões já foram despejados — por think tanks, fundações empresariais e intelectuais a soldo — na tentativa de vacinar o mundo contra essa doença que impede o pensamento de ser devorado pela ideologia dominante. Mas o vírus resiste. Como uma mosca insolente pousando na sopa daqueles que veneram a ordem, o marxismo retorna, zunindo nos ouvidos dos satisfeitos, lembrando-lhes, com irritante persistência, que a história jamais se curva aos tranquilos.

Quando a crise de 2008 se abateu sobre o mundo, produzindo o primeiro abalo sísmico na teologia neoliberal, a história, que já voltava a se insinuar desde 2001, passou a dar dor de cabeça aos amantes do capitalismo. De repente, Marx reapareceu. Com o subprime, ficou evidente que os truques matemáticos dos iniciados nos labirintos da economia financeira não nos salvariam da tempestade que se aproximava.

Logo se tornou claro que todas as soluções técnicas — realocar recursos estatais para salvar bancos e, com eles, o sistema financeiro, à custa de uma austeridade cruel, paga pela população – falharam em gerar o efeito prometido: fazer a economia mundial girar novamente e alcançar crescimento estável. O caminho estava aberto para a propagação da peste marxista.

Lembro-me de quando um professor de uma tradicional universidade europeia me ouviu falar sobre Marx antes da crise. Na ocasião, ironizou-me, afirmando que Marx só despertava interesse no Sul do globo, onde as contradições do capitalismo ainda se manifestavam em economias desiguais. Anos depois, essas mesmas contradições atingiram o Norte com força total.

A desigualdade na Europa pós-crise se aprofundou e, para se ter uma ideia, hoje, na Alemanha – país desse professor – e na Itália, os 10% mais ricos detêm mais de 60% de toda a riqueza produzida[1]. Essa concentração gera tensões sociais graves e corrói o tecido das relações políticas. Curioso, mas nem tanto, é que ambos os países, no passado, foram irmãos em armas e em ideologia – e agora, diante da desigualdade crescente, são testemunhas da própria fragilidade do sistema que tanto exaltaram.

Com as ruínas daquela saudosa ideologia do “fim da história” e suas contradições, tornou-se impossível ignorar, nas últimas décadas, a redescoberta do pensamento de Marx. Um pensamento que sobreviveu ao tempo e às derrotas, sustentando-se sobretudo por sua capacidade de explicar o presente. A crítica da economia política revelou-se, novamente, instrumento indispensável para decifrar a crise permanente que atravessa nossas sociedades.

Esse renascimento não é apenas intelectual; é um esforço coletivo e global para repensar um capitalismo em esgotamento, um sistema que fez ruir até interpretações progressistas e filosóficas que buscavam humanizar o capital. A persistência da “peste marxista” confirma, como Sartre já afirmara décadas atrás, que o marxismo continua sendo a filosofia insuperável do nosso tempo.

E, por mais que seus detratores — da esquerda acomodada à extrema-direita voraz — tentem negá-lo, enquanto o capitalismo persistir, Marx permanecerá essencial para compreender uma sociedade que se reproduz através da forma mercadoria.

 

A crise como negativo do capital e o retorno do que não foi

 

Marx deixa claro que as crises não são acidentes no capitalismo; são momentos constitutivos, entretanto, a expansão do capital encontra limites, fronteiras que não podem ser ignoradas. A crise de 2008, em particular, revelou uma face inédita: fruto do desenvolvimento tecnológico dos anos 1970 e da globalização dos capitais, ela escancarou os limites geográficos da expansão e impôs limites sociais ao dispêndio da força trabalho humana, fonte necessária do consumo e do próprio fluxo de mercadorias.

A autonomia dos mercados financeiros, reforçada pelo abandono do padrão-ouro pelo dólar em 1971, mostrou que o círculo virtuoso da acumulação tinha se deparado com barreiras quase intransponíveis. Com a abertura de créditos, o dinheiro passou a se multiplicar mais rápido que o trabalho, ou seja, mais rápido que a produção real de riqueza.

Entramos, assim, no reino da especulação financeira, um mundo em que a riqueza se autonomizou da produção concreta. O capital tornou-se ainda mais fictício, uma abstração que eclipsa a realidade concreta da geração de riquezas. A crise, como negativo do capital, revelou o caráter ilusório do crescimento e a vulnerabilidade de um sistema que parecia indestrutível.

Foi Marx quem percebeu, com precisão cirúrgica, que o capital – esse sujeito autônomo e voraz – reduz toda a atividade humana ao seu império absoluto, movido por uma única pulsão: a necessidade incessante de se reproduzir e expandir. O dinheiro, ao se transformar em capital, converte-se no mais alto poder social, subjugando todas as formas de existência à sua lógica de valorização.

Impulsionado por uma caçada apaixonada e cega, o capital transfere o valor da vida para o valor em espécie. Tudo o que é vivo, criativo e singular se dissolve na equivalência abstrata do dinheiro. O processo de quantificação social torna-se, assim, uma abstração concreta – uma prisão invisível que se efetiva nas relações sociais regidas pela forma mercadoria.

A produção de valor e o movimento de valorização do capital são, em última instância, o mecanismo que reduz a vida ao trabalho. Sob a égide do capital, existir é produzir, e produzir é consumir: a compra de mercadorias torna-se a expressão cotidiana dessa servidão social. Ainda bem que, como advertiu Goethe, “uma atividade sem limites acaba sempre em bancarrota!” – e talvez aí resida o germe da esperança.

“A forma do valor de uma mercadoria”, dirá Marx, “assume expressão fora dela, ao manifestar-se como valor de troca.” Essa expressão exteriorizada só é possível porque o valor já foi operado — ele está lá, condensado através do dispêndio do trabalho, e precisa ser sacralizado no espaço propício e historicamente necessário: o mercado.

Mas há algo mais profundo que o mero jogo da usura, mais radical que o comércio, o contrabando ou o empréstimo. A transformação de uma quantia inicial em uma quantia superior só ocorre graças a uma mercadoria singular – a única capaz de criar valor: o dispêndio da força de trabalho humano.

Diferentemente do trabalho escravo, no qual se compra o corpo inteiro do trabalhador, o capitalismo compra apenas a sua potência – a possibilidade de converter matéria morta em matéria viva, de animar o inanimado. O trabalhador é, simultaneamente, criador e consumidor, engrenagem indispensável do circuito que o devora.

Se o trabalho entra em crise – se todo o mundo do trabalho se precariza – não demora muito para que toda a vida social também se desfaça em precariedade. O que Marx nos permitiu ver, de maneira radical, é que a crise do trabalho é, antes de tudo, a própria crise do capital.

Com o avanço tecnológico, há um aumento vertiginoso da produtividade que reduz o tempo de trabalho socialmente necessário. Assim, a tecnologia e a globalização dos mercados – que tornam todas as regiões do globo áreas colonizadas pela sanha de manter a valorização do valor – produzem um efeito inédito: comprimem o tempo cíclico das crises, transformando a própria crise em uma condição permanente.

É nesse cenário que se ergue o mistério: economistas, investidos de um otimismo quase teológico, passam a criar fórmulas matemáticas cada vez mais sofisticadas para lidar com algo que se move nas entranhas do próprio sistema. Toda essa sofisticaria, no entanto, mostrou-se incapaz de prever o colapso. Um esforço ideológico colossal foi despendido apenas para não olhar o abismo entre a produção real de riqueza – há muito estagnada pela combinação entre tecnologia e globalização – e o crescimento fictício dos lucros financeiros.

O desfecho é conhecido: a bolha imobiliária nos Estados Unidos arrastou a economia mundial para o atoleiro da crise. Como num jogo de cartas que desaba em cascata, assistiu-se, no outono de 2008, à queda sequencial dos grandes bancos de investimento de Wall Street. Quando o Lehman Brothers ruiu sob o peso da ficção solenemente produzida e financiada por seus investidores, apresentou-se uma nova esquina na história do capitalismo.

Além dos aspectos materialmente traumáticos – como a expulsão de famílias inteiras de suas casas, incapazes de pagar as hipotecas – a crise revelou algo ainda mais profundo: um abalo na ideologia dominante que para defender-se teria que radicalizar seus princípios reprimidos e criar vários inimigos, dentre os quais, o marxismo cultural.

“As ideias”, dizia Marx, “são uma força material” – e foi sob essa força que se moveram tantas almas, iludidas pela crença de que o mundo poderia seguir indefinidamente como estava. O neoliberalismo não é apenas uma política econômica: é um modo de vida. Entrou nas escolas, moldou currículos, ditou formas de emprego, colonizou a universidade e infiltrou-se nas relações mais íntimas

Mas a crise solapou o otimismo dos investidores, dinamitou o horizonte das famílias e desfez a crença nos direitos que pareciam sólidos nas democracias ocidentais. Ainda assim, como lembrava Hegel, “uma forma morta conserva sua aparência por muito tempo” – e é assim que a teologia neoliberal continua a se arrastar, sustentada pelos meios de comunicação e pela institucionalidade do poder.

Enquanto isso, o horizonte da emancipação aparece turvado. As medidas dos “especialistas” falham uma após outra, e Estados inteiros se leiloam para recuperar aquilo que entregaram, de mão beijada, aos bancos e à iniciativa financeira. Enquanto isso, mais e mais trabalhadores das regiões devastadas pela crise engrossam aquilo que Marx chamou de “exército industrial de reserva”.

A crise – cuja forma atual é inseparável do desenvolvimento histórico do capitalismo ao longo do século XX – pegou grande parte da esquerda europeia e latino-americana desprevenida. Crentes na institucionalização e na possibilidade de uma suposta “humanização” do capital, muitos se esqueceram de que, sem a crítica da economia política, nada se aprende sobre o próprio sistema que a engendra.

Enraizada na contradição entre capital e trabalho, a economia em declínio mostra-se impotente para absorver sua mão de obra excedente. O trabalho se precariza em escala planetária – e com ele, as sociedades inteiras. A crise, que neste ano alcança a maioridade, já não é um acidente, mas a forma natural de reprodução do capital.

Diante disso, resta desejar, com o sarcasmo dos que ainda resistem à anestesia do consenso, que a peste marxista se espalhe novamente pelo mundo – como antídoto necessário à morbidez do presente.

 



[Fonte Original]

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