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terça-feira, outubro 7, 2025

A terrível beleza das fotografias de Gordon Parks – Revista Cult

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“Entre nós dois há algo que vai além do sangue ou do preto e branco. Trata-se da nossa busca compartilhada por uma vida melhor, um mundo melhor. O solo sobre o qual protesto é o mesmo que você no passado protestou. As coisas pelas quais luto são as mesmas que você. As necessidades dos meus filhos são as mesmas que as dos seus. Eu, também, sou a América. A América sou eu,” escreve Gordon Parks. Ao longo do segundo semestre de 1967, o fotógrafo acompanhou a vida da família Fontenelle, que vivia em condições precárias no Harlem, então o maior bairro negro dos Estados Unidos. O texto que introduz o artigo publicado em março de 1968 na revista Life dá título à exposição que o Instituto Moreira Salles da Avenida Paulista abre neste sábado, dedicada à carreira de Parks: “A América sou eu”. 

A frase questiona o que é “ser americano” ao mesmo tempo que reivindica a sua cidadania. Iliriana Fontoura Rodrigues, curadora assistente da exposição, define:  “Parks questiona quem pode ser americano mas também quem são esses cidadãos, como eles fazem parte dessa América e de que forma. Esse “eu” também é um “nós”: as pessoas pretas, que estavam em contexto de segregação e colocadas à margem. É um “eu” que requer a cidadania americana, porque naquele momento as pessoas negras não eram cidadãos de fato. É uma reivindicação pelos direitos civis e sociais do cidadão. 

Partindo de um retrato do próprio fotógrafo, a exposição propõe um percurso pela  história da população negra norte-americana, “porque Parks de fato a retratou desde o início do século até o final”, explica Janaina Damaceno, curadora da exposição. Nascido em 1912 em Fort Scott, Kansas, e falecido em 2006, em Nova York, Parks é responsável pelos retratos mais sinceros da vida e da luta negra ao longo de todo o século 20. 

A primeira obra de destaque na mostra é American Gothic, que retrata Ella Watson, funcionária do departamento de limpeza da Farm Security Administration (FSA), agência do governo americano onde Parks ingressara em um estágio com o aporte de uma bolsa de estudos para artistas negros. Instalado na capital dos Estados Unidos, Washington D.C., em 1942, Parks se viu desmoralizado por uma sociedade extremamente racista. Expulso de teatros e ignorado em restaurantes, lamentava: “Neste lugar histórico e radiante, o racismo era desenfreado”. Foi, portanto, dentro da própria agência que Parks encontrou sua primeira grande história, passando os próximos quatro meses com a família e comunidade de Watson. 

Parks fez retratos da comunidade negra em Washington D.C., entre comemorações nas igrejas e a pobreza das periferias. A notória fotografia em que Watson segura uma vassoura e um esfregão na frente da bandeira dos Estados Unidos, no entanto, não chegou a ser publicada pela FSA, que temia sua repercussão. “Essa é uma das fotografias mais importantes da história da fotografia americana por questionar o lugar que as pessoas negras ocupam no ‘ser americano’. Ele mostra que ocupamos esse lugar de modo subalternizado. Por isso que ela só é publicada seis anos depois na imprensa negra [na revista Ebony], porque a grande imprensa não daria conta”, explica Damaceno. 

A fotografia coloca em questão o trabalho do fotojornalista: qual seria o mérito jornalístico de um retrato posado? Publicando na Life ao lado de fotógrafos de sua “era de ouro”, como Dorothea Lange, autora da foto Mãe Migrante, Parks tinha um compromisso com a verdade: “Mais do que discutir se algo é encenado ou não, o que é importante é a mensagem que ele constrói com a fotografia, que não subverte a verdade: com esse exercício de composição impressionante ele produz o discurso que as pessoas precisam captar. Ele consegue traduzir a estrutura social nessa imagem”, defende a curadora. 

Seu primeiro trabalho para a Life, Harlem gang leader reproduz a mesma lógica ao acompanhar Red Jackson, um gangster de 17 anos pelas ruas de Nova York. Ao longo de uma semana acompanhando a vida do líder da gangue Midtowners, Parks não tinha sacado a câmera sequer uma vez quando Jackson perguntou: “você não veio para me fotografar?”, conta Damaceno. Seu modo de trabalho era este: conhecer seus personagens para então acessar suas imagens. 

“O que molda o trabalho dele como fotógrafo não é a Life, mas seu trabalho anterior na imprensa negra. Isso molda a ética que ele constrói ao redor da representação de pessoas negras, que ele transporta para seu trabalho futuro. É o exercício da humanidade que faz com que ele consiga construir uma série como essa para uma revista como a Life,” diz a curadora. A humanidade com que retrata seu personagem se traduz na série Harlem gang leader através de fotos de Jackson que desconstroem a imagem de “gangster”. Entre fotografias de brigas de rua, o sujeito aparece lavando a louça para sua mãe e se arrumando para um encontro. 

Trabalhando na maior revista dos Estados Unidos, Parks nem sempre se viu em concordância com seus editores. Ao mesmo tempo que assinou grandes reportagens sobre as mortes de Malcom X e de Martin Luther King, também chegou a ter trabalhos negados, como foi o caso da série de 1950 De volta a Fort Scott. “Ele tinha total consciência de onde estava, uma revista conservadora, lida pela população branca. Ele lutou para não entregar estereótipos e acessar a população negra como ela realmente é”, diz Rodrigues. 

Na exposição, a reportagem feita sobre sua cidade natal acompanha a série Histórias da segregação no sul, publicada em 1956 na Life. Na primeira reportagem feita em filme colorido que figura na exposição, mais de 40 fotos retratam o dia a dia de famílias negras que ainda viviam sob o regime de segregação racial. Damasceno usa uma expressão de Saidiya Hartman para descrever as imagens: são de uma terrível beleza. “A terrível beleza é mais do que alguém poderia jamais esperar assimilar, ordenar e explicar”, escreve Hartman.  

Embora as imagens sejam deslumbrantes, o que está retratado é a marca profunda da segregação. Em uma das fotografias mais assombrosas, crianças negras observam pela cerca um parque de diversões o qual não podem acessar. Por detrás dos vestidos coloridos sobrepostos ao verde da paisagem quase não se vê a imagem terrível da segregação.  Enquanto realizava a reportagem, Parks chegou a ser perseguido por um grupo nacionalista que tentou roubar seu filme fotográfico e impedir a publicação das fotografias. Imagens instáveis tiradas de dentro de seu carro ilustram o clima de tensão em que vivia o fotógrafo naquelas terras. 

Ainda sobre a beleza da fotografia em cores de Parks, Damasceno destaca o uso do marrom, em roupas, paisagens ou nos variados tons de pele de seus sujeitos. Se muitos notavam que o filme colorido da época dificultava a captura fiel dos tons da pele negra, Parks subverte o uso da cor: “Costumamos ver apenas o preto e branco no jornalismo clássico, mas aqui ele usa a cor como forma de encarnar as pessoas do Alabama. Ele quer que o público da Life entenda que essas pessoas são como elas, que se identifiquem com as imagens.”

Ao longo de sua carreira, Parks se aproximou dos movimentos dos Panteras Negras e sobretudo dos Muçulmanos Negros, cujo principal líder era Malcolm X, ao lado de Elijah Muhammad. Enquanto grande retratista dos movimentos sociais negros das décadas de 1960 e 1970, Parks frequentemente se viu em empasses. Ocupando o lugar de único profissional autorizado a fotografar Malcolm X – de quem virou amigo próximo – extensivamente, Parks é questionado por Muhammad sobre o porquê de trabalhar para uma revista lida majoritariamente pela elite branca. Rodrigues conta que a resposta do fotógrafo reitera seu objetivo de “contar de outra forma o cotidiano do movimento para aquele público”. 

A exposição inclui ainda filmes dirigidos por Parks, como Shaft (1971), considerado um dos mais relevantes do blaxploitation, e The Learning Tree, (1969), primeiro filme dirigido por um cineasta negro em Hollywood. Mas o destaque é o curta Flávio, realizado no Rio de Janeiro em 1964. Acompanhando de fotografias feitas nas favelas cariocas, o filme traz imagens pouco conhecidas da vinda do fotógrafo ao Brasil. “Além de ser o primeiro filme de Parks, Flávio é importante na história do cinema negro diaspórico por ter sido uma das primeiras produções de um cineasta negro no Brasil”, conta a curadora assistente. 

Ela destaca a importância diaspórica da obra de Parks, que influenciou grandes fotógrafos brasileiros como Walter Firmo em seus retratos da comunidade negra. Rodrigues conclui: “Eu me identifico e me reconheço na obra dele, porque são as lutas da população negra até hoje. O debate permanece. O que ele traz é extremamente atual para o que acontece nos Estados Unidos e no Brasil agora”.  

 



[Fonte Original]

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