Milton Nascimento nasceu no Rio de Janeiro, em 1942, mas seu destino era mesmo ser mineiro. Carioca, aos dois anos foi adotado e se mudou para Três Pontas, no interior de Minas Gerais. Foi nesse período da vida do cantor que Ronaldo Fraga buscou inspiração para o desfile apresentado na segunda-feira (13), na São Paulo Fashion Week. Sob os holofotes, solo montanhoso, sanfona e religiosidade remetiam às primeiras referências de Bituca – apelido, aliás, que Milton também carrega desde criança.
A entrada na passarela foi feita por dez meninos pretos, o primeiro dos quais vestia um manto em comunicação direta com o figurino assinado por Ronaldo Fraga para a turnê “A Última Sessão de Música”, de 2022, o qual, por sua vez, foi inspirado no Manto da Apresentação, de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989)..
“Quando fui convidado a fazer esse figurino para os shows que encerraram a presença de Milton Nascimento nos palcos, há quatro anos, percebi como era difícil criar apenas uma peça para um artista com tantas camadas”, lembra Fraga.
Neste 2025, entre tantas possibilidades, o estilista decidiu mirar na criança que Milton foi. “É na infância que realmente um artista se forja, eu gosto de estudar esse período da vida de criadores”, reflete. A coleção “Minas Nascimento” foi a oportunidade de mergulhar mais fundo no tema monumental e desdobrá-lo em 51 looks
Mas a roupa continua sendo só um suporte para Fraga expressar sua arte, exercida no clímax do desfile, como um happening. Depois das crianças, que entravam sorrindo e acenando para a plateia, quebrando totalmente o protocolar “carão” das passarelas, vieram modelos homens e mulheres vestidos com estampas ou bordados celebrativos da vida, obra e raízes de Milton: o sol atrás do mar de morros, instrumento e notas musicais, nariz e lábios belamente volumosos, pombas que fazem lembrar a imagem Divino Espírito Santo, trens e trilhos – esses últimos, além das peças foi impresso na passarela e fez parte do cenário.
A beleza, mais uma vez, foi assinada por Marcos Costa, criador de outras imagens icônicas da moda brasileira, em dobradinha com Ronaldo Fraga, como as modelos com quatro olhos e corpo completamente vermelho, de “A Cidade Sonâmbula” (2014) e as cabeças-manifesto do desfile (2019), com livros, bandeiras do orgulho LGBT+, animais selvagens caçados.
Na cabeça de cada modelo adulto, havia uma lâmpada na forma de uma silhueta de montanha, “simbolizando a luz que desperta o sertão mineiro ao nascer do sol, que realça os mistérios da noite sob o céu da lua”. explica Costa, revelando que há poesia em cada detalhe do que foi visto pela audiência.
Ao longo da apresentação, no Museu da Língua Portuguesa, projeções de Bituca quando menino e depois de adulto ao lado de croquis da coleção e desenhos de paisagens se misturavam ao som dos sinos e à sucessão da trilha que culminou com uma única canção na Milton Nascimento, “Maria, Maria” emocionou e fez parte do público cantar junto.
Com a coleção “Minas Nascimento”, Fraga retornou às passarelas da São Paulo Fashion Week depois de um hiato de seis anos, bem a tempo de participar da trigésima edição da semana de moda, com a qual ele tem uma longa história. O designer fez parte do primeiro line-up do evento e, desde então, se consolidou como uma de suas presenças mais aguardadas, sempre que participou suas coleções.
Multiartista dos mais inquietos, Fraga não pretendia voltar a apresentar uma coleção, preferindo dedicar cada vez mais tempo a outros projetos, entre os quais as expedições que organiza pelo Brasil profundo, em locais como Ilha de Marajó, no Pará, Ilha do Ferro, em Alagoas, e ao Cariri, tanto da Paraíba quanto do Ceará. Foi uma conversa com artesãs de Barra Longa, no interior de Minas, que fez com que ele mudasse de ideia.
As meninas, como diz Ronaldo, são 58 crocheteiras e bordadeiras do projeto Casa Bordada e têm relação de longa data com o estilista. Com ele, também participaram da SPFW em 2018, na coligação As Mudas, que ajudou o grupo a se reposicionar, após o trauma pelo rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, ocorrido três anos antes. Na preparação para o desfile de retorno às passarelas, Fraga se envolveu em diferentes atividades de capacitação e criação coletiva com as artesãs, que queriam ver as peças sob os holofotes da maior semana de moda do país.
“No calor do momento, eu disse sim, mas quando cheguei em casa, já estava me arrependendo”, conta. O marido Rodrigo Januário, com quem Fraga se casou em abril, e o criador da SPFW, Paulo Borges, foram os outros responsáveis por ele ter realizado esse trabalho.
O que se viu na segunda-feira foi o trabalho de um criador maduro, mestre em seu ofício. Fraga atribui as tantas críticas positivas recebidas ao momento em que está vivendo na vida pessoal. “Januário sem me ouve falar das histórias dos desfiles mas esse foi o primeiro que ele testemunhou”, conta. Ao mesmo tempo, pesou a experiência de quase morte e uma cirurgia delicada pela qual o estilista passou no início deste ano
Como soma de tudo, a liberdade que sempre foi a tônica de seu design está ainda mais forte. Ele sintetiza: “Por mais que eu tenha sempre feito o que quis nos meus desfiles, antes ainda havia alguma vontade de aprovação, aceitação. Desta vez, eu não me preocupei com possíveis críticas, fiz só o que tinha vontade, trabalhei códigos meus. Nesta coleção, consigo ver várias outras partes do meu trabalho”.
De fato, está ali a inocência das crianças do Jequitinhonha, de Costela de Adão, 2003, o romantismo de “Todo Mundo e Ninguém”, de 2005, coleção que homenageou Carlos Drummond de Andrade, os pássaros e anjos de “Quem Matou Zuzu Angel”, de 2001.
Quando decidiu que voltaria a criar looks para uma coleção, Ronaldo Fraga logo teve certeza que Milton Nascimento seria a inspiração da vez. Então ligou para a cada do cantor, que não só aceitou o convite, junto a seu filho Augusto nascimento, ficou empolgado e deu carta branca para a criação.
Meses depois, Ronaldo soube do estado avançado do demenciamento do cantor, como os outros fãs, ao ler o depoimento de Augusto à Revista Piauí, publicado em 2 de outubro – portanto, onze dias antes do desfile.
Foi uma surpresa, mas isso não tornou o trabalho uma coleção sobre finitude. “Ao contrário, mostrei algo para cima, astral.”
Ronaldo pretendia ir ao Rio de Janeiro, onde Milton e o filho residem, para mostrar o caderno com os croquis e estudos da coleção, o que não poderá mais ser feito. Assim como planejava, finalmente, participar de uma comemoração de aniversário do artista, que nasceu em 26 de outubro, data que é véspera do aniversário do próprio Ronaldo. “Sempre sou convidado, mas é uma época em que estou envolvido nas expedições”, lamenta.
A melancolia, que é outro traço marcante de Minas – segundo escritores como Drummond, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos – , não deixou de permear a plateia por causa das notícias recentes. O agridoce da potência da voz de Milton Nascimento e da criatividade de Ronaldo Fraga diante da fragilidade da vida tornou a homenagem ainda mais tocante, por lembrar que apesar da finitude, ou, talvez, justamente por ela “é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre”.
Fazer arte é o que mais se aproxima de um antídoto para as perdas da vida. É por meio da arte que Milton Nascimento nunca morrerá nem será esquecido. Assim como Ronaldo Fraga, na genialidade dos minutos em que seu trabalho é visto ao vivo, com trilha sonora, cenografia e camadas de significado, viverá para sempre.
Sabrina Abreu: jornalista e escritora