No dia 3 de novembro de 2009, a violência silenciou o corpo do poeta Carlos Fernando Filgueiras de Magalhães, mas não sua voz. A notícia chegou como chegam as más notícias: atravessando a tarde, rasgando o ar. De repente, um corpo interrompido, um quarto fechado, o vazio ocupando todos os espaços. Mas quem conheceu seus versos sabe: a poesia não morre junto com o corpo. Ela escapa pelas frestas, insiste em sobreviver no que já foi escrito, no que ainda respira dentro de nós. Talvez seja isso o que chamam de legado: a palavra atravessando o tempo, mesmo quando a vida é arrancada à força.
É nesse trânsito entre vida e palavra, entre a experiência vivida e a invenção estética, que se pode compreender a densidade da obra de Carlos Fernando. Poeta, médico, historiador e artífice de inquietudes, fez da palavra um gesto de liberdade e, da arte, um território de criação inesgotável. Entre as margens do São Francisco, onde nasceu, e as ruas de Goiânia, que o acolheram, ergueu uma obra indomável às convenções, ferindo e reinventando a linguagem, inscrevendo-se a fogo na memória literária e cultural do país. Sua poesia, nutrida pela assimilação crítica das vanguardas e pelo diálogo com o concretismo e a poesia-práxis, alarga as fronteiras do poema, convertendo-o em espaço de reflexão, estranhamento e provocação.
Para além da criação literária, construiu pontes sólidas entre arte, política e instituições. Fundador da revista Projeto Práxis e articulador do Movimento Práxis, dirigiu o Teatro da Universidade Federal de Goiás, criou o Teatro Varanda e coordenou, por anos, o Núcleo de Apoio a Iniciativas Culturais (NUCAIC), espaço no qual fomentou novas gerações de artistas e mediadores culturais. Reconhecido com prêmios como o Troféu Jaburu e o Prêmio Jorge de Lima, consolidou-se como elo entre criadores e políticas públicas, operando sempre no sentido de garantir que a arte florescesse de forma compartilhada e crítica.
Historiador e guardião da memória cultural, dedicou-se à investigação das artes, da arte sacra e das manifestações populares, articulando rigor analítico e escuta sensível. Em obras como História da Irmandade do Santíssimo Sacramento do Arraial de Meia Ponte, mais do que preservar um patrimônio, reativou-o como experiência viva e em disputa, ao reafirmar a herança cultural como campo de criação e resistência.
Entre poesia e arquivo, invenção e preservação, a figura de Carlos Fernando impõe-se como uma das mais potentes e necessárias para compreender a arte e a memória em Goiás. É nesse território plural e instável que este ensaio se detém, elegendo como centro irradiador de sua trajetória a produção poética, e reservando para outro momento a análise de suas demais facetas como articulador cultural, historiador e memorialista. A leitura que segue buscará acompanhar a arquitetura verbal de seus poemas, por meio da investigação dos modos pelos quais a palavra, sob sua pena, se transforma em campo de experimentação estética e em instrumento de inquietação intelectual. Nesse percurso, proponho mapear sua trajetória com base na análise da obra poética, para apreender como sua escrita renova a linguagem e amplia as fronteiras da poesia.
Mapas de fogo da poesia
A poética de Carlos Fernando constitui um dos empreendimentos mais radicais e consistentes da lírica brasileira contemporânea, tanto pela precisão formal com que se edifica quanto pela potência com que desestabiliza as convenções do dizer poético. O que se apresenta é uma escrita que opera nos interstícios entre o signo e seu desmantelamento, entre a palavra e seu colapso semântico, entre a forma e seu esgarçamento crítico. Sua obra, ao espraiar-se por cinco livros fundamentais – Matéria-Prima (1968), Eros (1986), Quarks (1994), X (2000) e Perau (2003) –, delineia um percurso de constante experimentação, no qual a linguagem se dobra sobre si mesma num gesto metapoético reiterado, que interroga suas próprias condições de possibilidade – uma poesia que pensa seu próprio fazer. Cada poema se configura como um laboratório textual, em que o poema é mais que forma acabada: é processo de fricção entre pensamento, grafia e abismo.
A simbologia que emerge dessa escrita não se limita ao ornamento: constitui-se como matéria densa, existencial e filosófica; um território onde se encenam os dilemas do ser, da linguagem e do tempo. Cada imagem carrega o peso de uma meditação, cada figura abre uma fresta para o abismo reflexivo que sustenta sua poética. O que se lê, ao fim, é mais que texto: é o desdobramento de um pensamento em movimento, que se grava em forma de risco, gesto e rasura, convertendo a página em espaço vivo de inquietação e criação.
Desde Matéria-Prima, sua estreia poética, Carlos Fernando entende o poema como máquina de linguagem, não como espelho do mundo, mas como operação crítica sobre ele. A fragmentação sintática, a justaposição de registros e a recusa de linearidade discursiva constituem os primeiros traços de uma escrita que já se anuncia como experimento: o poema como matéria instável, em processo, em combustão. O título do livro apresenta-se como método, e não como metáfora, e revela que o texto é concebido como substância em transmutação, em que forma e conteúdo se enredam na tessitura de uma crítica social que nasce do próprio corpo da linguagem.
Essa consciência do fazer poético se aprofunda, e se encarna, em Eros, obra em que a linguagem se torna pele, respiração, fricção. Aqui, corpo e desejo irrompem como vetores estruturantes de uma poética do erotismo que desafia a própria arquitetura do poema. Sintaxe quebrada, ritmo sincopado, densidade sensorial elevada ao extremo – tudo conspira para construir um discurso que não representa o desejo, mas o performa. O erotismo, em Eros, é força modeladora: organiza o funcionamento interno do texto, instaurando uma linguagem que tenta dar forma ao indizível da presença corporal, à vertigem do toque, ao excesso do sensível.
Em Quarks, a poesia de Carlos Fernando atinge um ponto de inflexão onde a visualidade do texto deixa de ser um recurso e torna-se princípio organizador do sentido. Este livro radicaliza o gesto concretista, tanto por sua filiação estética quanto pela maneira como reinscreve a página como campo de experimentação perceptiva. O poema rompe com a linearidade da linguagem e se projeta na espacialidade, convertendo o branco, a mancha e a distribuição tipográfica em elementos tão significantes quanto a própria palavra. Poemas como “sopro” funcionam como coreografias gráficas em que título e visualidade convergem, o arranjo verbal dá corpo ao gesto e o gesto, por sua vez, instaura o significado. Forma e conteúdo colapsam um no outro, suprimindo as fronteiras entre imagem e discurso.
A visualidade, nesse contexto, constitui-se como camada densa de sentido: uma força que obriga o leitor a abandonar a leitura passiva e a engajar-se num jogo perceptivo que é, ao mesmo tempo, sensorial e cognitivo. Quarks propõe não só uma nova forma de ler, mas também uma nova forma de ver a linguagem: como partícula, como campo, como explosão de forças que se organizam no limite da inteligibilidade e da experiência estética.
Em X, a experimentação formal prossegue transmutada, deslocando o foco do teste dos limites gráficos do poema para a investigação, por meio deles, das fissuras ontológicas do sujeito. A fragmentação ultrapassa a estratégia composicional e se afirma como metáfora viva da descontinuidade do ser. O “x” que dá nome ao livro opera como signo total de ambiguidade: letra-símbolo, cifra do indizível, cruzamento de sentidos e lugar de interdição semântica. É marca do que escapa, do que não se fixa, do que existe em suspensão. Nesse campo tensionado entre forma e abismo, o sujeito poético emerge como figura estilhaçada, feixe de vozes, pulsões e lacunas que substituem a unidade de uma consciência coesa. Dilacerado entre o mundo e a linguagem, entre o signo e a experiência sensível, ele emerge como resto de uma operação que não se consuma: sujeito em permanente inacabamento, exposto à impossibilidade de nomear plenamente o real.
X é, assim, uma travessia marcada pela ausência de chão. Um poema-labirinto cujos versos parecem buscar, em vão, uma forma de habitar o vazio sem preenchê-lo Em vez de respostas, o livro evidencia que a própria pergunta, sobre o eu, o mundo e o nome, já nasce comprometida com o colapso de qualquer certeza.
Perau representa, nesse percurso, um ponto de condensação: maturidade da linguagem e do silêncio, obra em que os vetores anteriores (lirismo, metapoética, espacialidade, crise do sujeito) convergem numa forma mais soturna, mais interiorizada. Trata-se menos de um encerramento e mais de uma descida: o “perau” como figura geológica e metafísica, abismo e arquivo, espaço onde a linguagem se dobra sobre a memória e a interroga. O livro dramatiza uma busca pelo “não-visível”, um gesto poético que já não se satisfaz com a nomeação e procura aquilo que resiste ao signo. A linguagem tenta tocar o mistério, não o explicar; insinua o indizível, em vez de circunscrevê-lo. Dividido em seções que orbitam a lembrança, o tempo e a corrosão dos vestígios, Perau institui uma arqueologia poética da perda. “Do livro das traças”, por exemplo, tematiza a deterioração dos arquivos materiais e evidencia o esgarçamento da própria linguagem, corroída por dentro, devorada como memória.
Infância, religiosidade popular, morte, corpo e esquecimento aparecem como emanações de uma subjetividade poética ancorada no rastro, no fragmento e no resto, em oposição ao presente. Perau é, assim, um livro sobre a travessia da linguagem em direção ao limite: o poema como rito fúnebre e como lampejo de permanência, tentativa derradeira de fazer do verso não um espelho, mas um vestígio sagrado.
A recorrência de certos motivos ao longo da obra de Carlos Fernando permite delinear vetores de força que atravessam e estruturam sua poética, linhas de fuga que, embora se apresentem em diferentes intensidades e configurações, formam um campo de tensões coerente e inter-relacionado. Entre esses vetores, destaca-se a metalinguagem, sobretudo em Quarks e Perau, como instância de dobra crítica da linguagem sobre si mesma, onde o poema se transforma em arena de sua própria problematização.
O erotismo, especialmente em Eros, emerge como estrutura sensível do texto, corporificando o desejo em ritmo, fratura e excesso. Já o tempo e a efemeridade, temas que perpassam X e retornam em Perau, operam como forças desagregadoras do sujeito e da linguagem e, assim, evocam uma poética do transitório, do que se desfaz. A visualidade e a espacialização gráfica, notadamente em Quarks, instauram um modo de leitura que exige do corpo do leitor uma reconfiguração perceptiva, de modo que o poema se vê tanto quanto se lê.
A memória e a infância, por sua vez, constituem núcleos afetivos e simbólicos recorrentes, especialmente no poema “Invenção da lembrança”, em Perau. Nesse contexto, o passado se reinscreve como invenção no próprio gesto da escrita. Por fim, uma autorreflexividade crítica atravessa toda a obra: poemas como “tarefa”, “troglodita” e “verdes” fazem do próprio ato poético seu tema, revelando nele a precariedade, a hesitação e o labor incessante diante da instabilidade da linguagem. Essa poética habita a hesitação; tenta, recomeça, refaz. Sabe que nomear é sempre um fracasso fecundo, e é desse fracasso que retira sua força.
A autorreflexividade que percorre a obra de Carlos Fernando assume a metapoesia como eixo constitutivo de sua produção, e ultrapassa, assim, a condição de recurso ocasional. Trata-se de uma poética que tematiza o fazer literário e o reinscreve numa zona crítica: seus poemas assimilam e reconfiguram os próprios discursos teóricos sobre a poesia, o que faz com que seja instaurado um espaço metalinguístico em que criação e reflexão convergem.
O poema deixa de ser mero objeto de fruição e se torna lugar de pensamento, onde forma e ideia, ritmo e crítica, sensibilidade e linguagem operam em tensão contínua. O gesto criativo não é separado do gesto analítico: ambos se atualizam simultaneamente no corpo do texto.
O resultado é uma obra que exige do leitor mais do que adesão estética: requer um engajamento filosófico, uma escuta crítica capaz de habitar os deslizamentos, os silêncios, as interpelações do texto. Em cada poema, Carlos Fernando tensiona os modos hegemônicos de leitura e convida o leitor a reexaminar a função da linguagem, capaz de produzir o sujeito, constituir o mundo e, ao mesmo tempo, deixar à mostra suas rachaduras.
A máquina crítica do poema
A obra poética de Carlos Fernando configura-se como um dos empreendimentos mais ousados e intelectualmente sofisticados da poesia brasileira produzida fora dos grandes eixos culturais do país. Seu experimentalismo formal e a inclinação metalinguística configuram uma investigação do estatuto da linguagem, do sujeito e da memória, zonas instáveis em que a poesia atua como pensamento em ato.
Com uma escrita que recusa dissociar forma e crítica, corpo e política, estética e ontologia, a poesia de Carlos Fernando pensa a si mesma ao mesmo tempo que desdobra questões que atravessam o tempo, o espaço e a noção de pertencimento cultural. Sua obra inscreve-se, assim, num projeto que é simultaneamente estético, filosófico e político. Uma forma de afirmação simbólica e uma cartografia de lugares ausentes, na qual a linguagem nomeia e, sobretudo, reconfigura o mundo.
A metapoesia ocupa, na obra de Carlos Fernando, um lugar axial, não como ornamento autorreferencial, e sim como fundamento epistemológico de sua escrita. Em seus poemas, o gesto metalinguístico não adorna, interroga: o texto se observa, se desfaz, se remonta, num movimento contínuo de autorreflexividade que transforma o poema em um organismo em crise permanente. Essa operação revela o poema como campo tenso, sempre situado entre o dizer e o “não-dizer”, entre a presença do signo e a ameaça do silêncio. A linguagem, nesses termos, não é instrumento transparente nem veículo estável, mas superfície instável, permeada por lacunas, falhas e desvios, espaço onde se inscreve a precariedade da nomeação e a fragilidade da representação.
O poema se torna um espaço crítico em que a linguagem se expressa, absorve e confronta os discursos que a definem. Nesse regime, a poesia opera como arena, campo de disputa simbólica, de derivas e colapsos de sentido, em que o dizer se reinventa. Essa pulsão autorreflexiva que atravessa a poesia de Carlos Fernando não é gratuita, tampouco autocentrada em um gesto narcisista ou solipsista. Ela se inscreve num projeto subjetivo e cultural mais amplo, em que a crise do sujeito encontra na crise da linguagem seu espelho e seu campo de elaboração. A fragmentação formal, a descentragem gráfica e a espacialização tipográfica dos poemas constituem mais do que efeitos visuais ou estéticos: revelam os sintomas de um eu em ruínas, que já não pode (ou não deseja) afirmar-se como unidade coesa.
O sujeito poético que emerge dessa escrita é aquele que se revela na tensão constante entre o desejo de sentido e a consciência da falência do signo, entre o impulso de nomear e o abismo do indizível. Não é um sujeito que se representa; se interroga, porém, e que escreve sabendo que escrever é sempre arriscar o fracasso.
A linguagem torna-se campo de elaboração simbólica de uma experiência marcada pela precariedade, pessoal e histórica. Escrever, para Carlos Fernando, é manter acesa a chama de nomear mesmo sob a sombra da falha inevitável; é afirmar a palavra como trincheira contra o apagamento, ainda que nela pulse, indelével, a lembrança de sua própria insuficiência.
É precisamente nesse ponto que a metapoesia em Carlos Fernando se converte em gesto ético e político, como consciência aguda do que está em jogo ao escrever. Ao tensionar os mecanismos da linguagem, sua poesia expõe também os dispositivos simbólicos da cultura e os modos de inscrição da história. O poema afirma-se como arte da preservação, tentativa de reter, pela palavra, aquilo que o tempo ameaça dissolver.
Termos como “livro das traças”, “lembrança”, “perau”, “arquivo” e “matéria-prima”, recorrentes em seu universo simbólico, são índices de uma poética que se constrói a partir da perda, da ruína, da deterioração. São sinais de um pensamento que trabalha com os restos, com o que resiste, com o que quase desaparece. Nessa perspectiva, os poemas de Carlos Fernando operam como arquivos poéticos: espaços onde a memória é reinscrita, reconfigurada, ativada sob novas formas simbólicas. A linguagem afirma-se como reinsistência, uma política da memória que transforma o poema em território insurgente contra o esquecimento.
Essa dimensão arquivística que atravessa a poesia de Carlos Fernando encontra um paralelo direto (e uma continuidade conceitual) em sua produção intelectual como historiador e memorialista da cultura goiana. Obras como os volumes da Memória das Artes em Goiás ou o estudo sobre a Irmandade do Santíssimo Sacramento não se limitam à tarefa documental: elas ativam o passado por meio de uma escuta poética. O gesto crítico que ali se opera não rompe com o gesto poético; ao contrário, ambos partilham o mesmo horizonte ético e simbólico.
Há, nesse entrecruzamento, uma convicção profunda de que a arte, e particularmente a palavra, pode funcionar como espaço de insurgência contra o esquecimento, um dispositivo simbólico capaz de conter a erosão cultural diante da homogeneização midiática e do apagamento dos saberes regionais. Nos poemas e ensaios de Carlos Fernando, o local é revalorizado como lócus de criação, de memória e de pensamento. Nesse sentido, sua obra recolhe o que o rio da história deixou nas margens e vai além: redesenha um atlas de memórias vivas, onde o silêncio dos arquivos se abre como clarão – e onde a palavra, mesmo trêmula, insiste em fincar raízes contra o vento do desaparecimento.
A experiência poética, na obra de Carlos Fernando, não se esgota na interioridade do sujeito nem na pura materialidade da linguagem. Ela é também um gesto de inscrição no mundo, um modo de habitar a história, a cultura, o território, por meio do verbo. Ao tensionar os limites do poema, o autor tensiona também os contornos da representação cultural. Sua poesia interroga os modos possíveis de dizer o Goiás profundo, o Brasil entre o arcaico e o moderno, a subjetividade em trânsito, o corpo que deseja, o tempo que corrói.
Em síntese, a metapoesia e o experimentalismo formal na obra de Carlos Fernando erguem arquiteturas profundas de um pensamento poético que se desvia dos atalhos fáceis da representação. Sua poesia ergue-se como território insurgente, gesto contra o esquecimento, contra a redução do sensível, contra a domesticação do discurso e contra o deserto simbólico que ameaça o presente.
É uma escrita que elabora o tempo e a perda por meio do verbo, reinscrevendo a memória cultural como gesto ativo de linguagem, mesmo quando essa memória ameaça apagar-se. Nesse horizonte, o poema se abre como campo crítico, lugar de pensamento; nunca mero ornamento, sempre espaço vivo de reflexão. Pensar a obra de Carlos Fernando é, assim, reconhecer no poema uma força que pensa o mundo ao pensar a si mesma, um pensamento que nasce da fricção entre o dizer e o impossível de dizer, distante da certeza.
Onde a palavra não se acomoda
Neste ensaio, eu me aproximei dos cinco livros de Carlos Fernando como quem atravessa cinco quartos com a luz acesa à procura das linhas de força: metalinguagem (espelho trincado), erotismo (pele que respira), tempo (faca e cicatriz), visualidade (desenho no silêncio), memória (gaveta que range) e essa autorreflexividade inquieta que morde o próprio pensamento. No fim, se é que há fim, a escrita dele sobe à superfície como uma dimensão que não se explica, só pulsa: costura metapoesia, arquivo, desobediência, e caminha nessa zona elástica onde criação encosta na preservação, estética encosta na política, e a página vira corpo em vigília.
A metapoesia aqui não é enfeite: é coluna vertebral. Faz do poema um quarto aceso onde o pensamento não dorme e a linguagem range. Fragmento, corte de sintaxe, página aberta em espaço – o branco trabalha junto. Entre signo e silêncio, a corda esticada. Tudo encostado a uma ética: escrever como quem guarda, reacende, devolve à memória seu pulso. Esta obra resiste ao apagamento e põe de volta o local no mapa; risca o Brasil por dentro, no que é seu. Assim, a língua vira dupla morada: invenção e compromisso.
Enfim, ler Carlos Fernando é entrar em um território onde a palavra não se acomoda: ela se estilhaça, se refaz, se dobra sobre si mesma e se lança contra o silêncio. É aceitar o convite de um poeta que não oferece respostas prontas; em vez disso, provoca perguntas que permanecem ecoando muito depois do fim da leitura. Seus versos criam mundos ao mesmo tempo frágeis e indestrutíveis: reescrevem o tempo, resguardam da erosão. Quando seus livros se fecham, permanece a fresta por onde sua poesia nos alcança. E é por isso que, tantos anos após a violência que interrompeu sua vida, voltamos a eles: porque ali sua presença ainda respira, como um sopro indomável atravessando o tempo.
Pedro Paulo Gomes Pereira: Professor Titular da Universidade Federal de São Paulo