Muito se fala sobre o “retorno do fascismo” ao redor do mundo, mas quase nada se diz sobre como a noção de raça alimenta — e continuará alimentando enquanto existir — o surgimento de uma lógica fascista, abrindo caminho para sua adesão.
Bom lembrar: a determinação racial, erguida sobre os alicerces da escravidão; o controle etnográfico imposto por impérios díspares, mas unidos no saque e na exploração de territórios invadidos; a nomeação de uma comunidade humana complexa e a redução de sua subjetividade a um único traço de diferença artificialmente construído — a cor da pele ou diferença cultural — têm um objetivo claro: criar uma identidade estanque, rígida, pronta para o controle absoluto e à exploração.
Foi Aimé Césaire quem nos alertou para a profunda ligação entre colonialismo e políticas nazifascistas, lembrando que o flagelo hitlerista nada mais foi do que a imposição brutal da lógica colonial no coração da Europa. O horror que se abateu sobre o continente europeu não era, para o célebre martinicano, um fenômeno isolado: tratava-se da mesma violência, da mesma desumanização que durante séculos se praticou nos territórios colonizados, agora transposta para o próprio “centro” do mundo que se julgava civilizado.
Refletir sobre a racialização, tal como emergiu na escravidão e na formação colonial, é perceber que a exclusão racial destrói o contraditório e, com ele, a própria possibilidade de reconhecimento. O outro é relegado a um estado fantasmagórico, um ser que existe apenas como ausência, porque situado fora da esfera daqueles que são considerados verdadeiramente humanos: o branco proprietário.
Com o desenvolvimento histórico da modernidade, os efeitos desse modo de gestão foram decisivos na configuração das cidades, na forma de estabilização do direito e continuam visíveis hoje na virtualização da política de guerra e em suas insensibilidades: as mortes nas periferias do capitalismo são tratadas como menos importantes que as mortes nos centros; a morte de um negro na periferia vale menos que a de um branco – e assim se repete o ciclo cruel da desvalorização da vida em nome da valorização do valor cujas raízes se encontram no mercantilismo-colonialismo.
Temos, nessa conclusão, ao menos uma questão cruel: se o sujeito nasce da fratura da identidade como pensar àqueles que foram nomeados e colocados na camisa de força da identificação cuja raça se coloca como elemento central?
A conclusão acerca do sujeito não se trata apenas de uma constatação teórica – é uma das revelações mais arrebatadoras da psicanálise, ou, se quisermos penetrar ainda mais fundo, da própria noção de sujeito, tal como emergiu com Descartes na filosofia e com Dante, Cervantes e Shakespeare na arte, lançando o indivíduo no abismo de uma existência marcada pela cisão entre eu e mundo.
No entanto, sob à sombra do racismo, essa fratura não permanece como um espaço livre de criação: ela é imediatamente atravessada pela racialização e pelas estruturas do capital. Em outras palavras, o indivíduo, marcado pela racialização e sua herança colonial, embora fragmentado e em processo, é impedido de se tornar realmente sujeito, quando reduzido a uma identidade estanque.
Assim, nesse mundo de sociabilidade marcado pela herança colonial, o único sujeito plenamente existente é o capital, que circula livre, impiedoso e automático, reiterando a cruel ironia observada por Marx: enquanto o eu luta para se afirmar na fratura de sua identidade, forças externas consolidam seu controle absoluto, anulando a liberdade do sujeito e transformando a diferença em instrumento de dominação através da racialização.
Claro que esse processo configura pequenos soberanos, que chamamos de capitalistas, e que não apenas defenderão o capital com unhas e dentes, mas também organizarão a visão de mundo – as ideias dominantes – para a manutenção da ordem. Hegemonicamente brancos, esses pequenos soberanos perpetuarão a racialização como forma de controle, algo que será posteriormente absorvido pelas repúblicas mundo afora. Uma herança fundamental à organização do fascismo.
Também vale lembrar que a noção de sujeito não surge no vazio: ela é imposta pela transformação radical da vida social, forjada pelo embrião do capitalismo: o avanço inexorável do mercantilismo, que fragmenta o mundo e lança o indivíduo à angústia de se reconhecer num espaço de trocas comerciais e expansão de fronteiras.
Sabemos que todas as análises sobre a categoria do sujeito fizeram rios de tinta correrem pela história da filosofia. De Descartes a Althusser, de Freud a Lacan, de Butler a G. Spivak, de Hegel a Badiou, de Fanon a Mbembe – cada pensamento, cada argumento, cada tentativa de decifrar o eu em processo, a ruptura da identidade, o acolhimento do outro como princípio organizador da subjetividade, ou o reconhecimento como possibilidade de configuração social – foram chaves decisivas que expõem a profunda e inquietante contradição entre o eu e o mundo.
O problema é que todas as reflexões sobre o sujeito esbarram violentamente na forma como a racialização produziu “subhumanos”, seres que supostamente jamais poderiam se tornar plenamente sujeitos. Nesse sentido, o colonialismo foi um agente brutal, erguendo um imaginário que naturalizou a raça como instrumento de gestão e de organização do desenvolvimento capitalista.
E assim, como vai concluir Mbembe, onde quer que a paranoia racial tenha se manifestado, ela se conecta a três prescrições perigosas: fixação da identidade, não reconhecimento do outro e narcisismo – embora seja impossível determinar com segurança qual delas exerce maior poder, ou mesmo se alguma delas domina de fato. É um quadro sombrio, em que o outro deixa de existir como sujeito e se torna apenas um espectro no domínio das estruturas de controle marcado pela identificação (identitária).
É nesse sentido que a questão racial alimenta as fantasias da violência fascista: ela se transforma na desculpa perfeita, uma lente distorcida que projeta sobre o outro — o diferente — a culpa pelas crises sistêmicas. Hoje, isso se revela com cada vez mais clareza diante do ascenso da extrema-direita internacional, que aponta o imigrante, o árabe ou outras minorias como responsáveis por problemas profundamente estruturais, perpetuando uma lógica de ódio e exclusão que atravessa fronteiras e gerações.
Como o fascismo se atualiza à sombra da democracia liberal-burguesa
Talvez a reatualização de um fascismo de cara nova surja do fato de que a naturalização da noção de raça – como se ela nada dissesse sobre a construção sociopolítica da modernidade – se tornou o totem permanente da festa democrática, erguida sobre a tolerância e a ausência de consequências reais do reconhecimento do outro que só poderia advir de uma construção socialmente igualitária.
Durante décadas, chamou-se de “progressista” a inclusão via consumo daquele cuja diferença fora superficialmente construída pela administração herdada do colonialismo – uma diferença criada para exploração e opressão de grupos humanos que hoje compõem os excedentes do exército global de desempregados, lançados de um lado a outro como refugiados ou imigrantes ilegais.
É exatamente isso que Achille Mbembe chamou de devir negro do mundo: um exército de reserva gigantesco, definido e comprimido em sua aparência física, em suas crenças ou nacionalidade, submetido a um controle econômico que alimenta, dia após dia, o racismo e sua necropolítica consubstancial.
O problema é que, por trás de todas as fachadas “progressistas” e “liberalizantes” dessas fórmulas inclusivas de consumo, opera-se um processo brutal de definição e divisão, que avança sem trégua sob a égide da gramática neoliberal de um capitalismo de crise — a identificação dos corpos e a sua limitação cada vez mais estrita à identidade.
Esse processo de neoliberalização, marcado pela atomização do indivíduo, guiado pela concorrência universal e pela competição como forma de vida, pode ser amplificado por profundas recaídas do narcisismo – o investimento pulsional que o sujeito deposita imaginariamente sobre sua própria imagem –, e avançou de maneira implacável sobre a esquerda liberal.
Sua força se intensificou sobretudo com a popularização das redes sociais e das formas algorítmicas de relacionamento virtual, que transformam cada interação em mercadoria e cada identidade em espectro controlável, reforçando a vigilância e a competição entre iguais que aprisionam o sujeito em si mesmo.
Para que possamos entender isso é preciso lembrar que com a crise de 2008, um passo definitivo foi dado em relação à década de 1970: a crise foi elevada à forma de governo e os Estados se converteram em investidores de última hora. As novas condições de gestão produziram, em termos gerais, uma pulverização de demandas e lugares demarcados por pautas identitárias – algo em curso desde pelo menos os anos 1980 – extremamente adequada a originar políticas de exceção, incubando o fascismo à sombra da crise do século XXI.
O aprofundamento da lógica de administração neoliberal, marcada pelo policiamento dos conflitos políticos, lançou os indivíduos na busca por uma identidade imóvel, por um lugar fixo, carregado de características singulares em comum. Em suma, renovou-se o decrépito pensamento identitário – nacional, cultural, epidérmico e religioso. Reativou-se a velha noção de raça superior – que, a bem da verdade, nunca saiu de moda — e com ela, a exclusão que sempre impôs.
Isso revela que as estruturas simbólicas que sustentavam o discurso sobre o eu no pós-Segunda Guerra – aquele que pregava uma certa singularização e universalidade – entram em colapso à medida que o próprio sentido da formação social, isto é, a modernidade, desmorona com a profunda crise dos anos 1970, que conduziu à reestruturação produtiva e levou consigo o antigo mundo do trabalho fordista. A partir de então, tudo se reduziu à competição, à satisfação, à eficácia e ao consumo.
Estamos, portanto, ainda no fuso histórico da década de 1970, vivenciando os desdobramentos cataclísmicos do fim do fordismo. O não-Outro – o de fora, o negro, o muçulmano, o imigrante, o refugiado – passa a ser percebido como um nada. O pressuposto da raça, da “nossa identidade”, se ergue para eliminar, em nome da diferença – que se tornou ponto narcísico de si – a própria diferença que lhe é alheia, apagando o outro da realidade social e transformando-o em espectro passível de ser morto.
Do Brasil aos EUA, cruzando países bálticos que já homenageiam membros da SS hitlerista – é isso que se observa. A democracia liberal-burguesa não eliminou o germe do fascismo porque ela própria é eivada de espaços racializado e identificatórios para o controle e a demarcação que mantém sua ordem organizada pela desigualdade necessária ao capitalismo. Gramsci sempre esteve certo!
Perigos renovados
Com a psicanálise podemos concluir que quando o indivíduo não suporta o vazio de sua própria insubstancialidade, ele tende a se apegar numa identidade imaginária isolada. Em outras palavras, quando se é incapaz de se posicionar plenamente diante da negação do mundo e da diferença, a consciência se fixa narcisicamente na identidade. E, assim, cada vez mais se passa a depender de uma autoridade externa – um mestre – capaz de unificar os imaginariamente semelhantes por meio do ódio à alteridade.
Esses processos transferenciais, conduzidos em nome da identidade e da busca por um mestre, são, em essência, negações imaginárias da realidade. Acreditar-se imune à diferença do mundo, ou intocado pelo outro, é a mais profunda das ilusões: é, paradoxalmente, ser inteiramente marcado por aquilo que se pretende negar.
O racista e o fascista, idolatras da identidade fechada de seu grupo, movem-se diante de um espelho turvo da mesma lógica: ambos desejam eliminar a diferença, acreditando que assim poderão superar os problemas sociais – um gesto de negação que oferece apenas a ilusão de ordem diante do abismo. Nessa fantasia, constroem a imagem de um eu soberano, aliado a outros sob a tutela de um mestre que promete unidade. É a busca desesperada por uma resposta simples e purificadora às complexas tensões que sustentam a vida em comum.
Enquanto um corpo social vivo e aberto à diferença reconhece que a contradição é o que o mantém pulsando; um corpo social fascistizante apodrece em sua própria rigidez: tenta extirpar o conflito, sonha com um retorno mítico às origens, persegue a felicidade sintética do consumo, fecha-se em identidades petrificadas e, por fim, entrega-se à aniquilação de tudo o que lhe é estranho. Por isso, a conversão à ideia de raça particular é uma das determinações concretas desse fenômeno, sempre presente como forma política na tradição liberal.
É preciso reafirmar que a racialidade marca a ideia de democracia representativa, como sugeriu Mbembe: a própria forma democrática está eivada pela ideia de raça, enquanto a organização estatal impõe a divisão de indivíduos pelo critério racial. Acompanha essa tradição o próprio fascismo, que só se oculta quando não há risco social.
Com efeito, qualquer crise econômico-social revela novamente o componente racial como motivo e tentativa de eliminar a contradição. Isso ocorre porque a própria condição da vida liberal é permeável ao fascismo, que torna os apelos identitários — no plano superficial da diferença socialmente criada pelo sistema liberal – o fim último.
A noção de raça, portanto, é sempre a ferramenta preferencial que visa não apenas negar a contradição, mas contorcer a luta entre o velho e o novo, propiciando uma revolta contra os corpos racializados e mantendo a ordem geral da sociabilidade capitalista.
A consciência fascista é sempre a de uma revolta que jamais ultrapassa a ordem; pelo contrário, repõe no presente os apegos gerados por ela. Clama por mais ordem e pela eliminação da contradição, vista como o “outro fantasmagórico” — eliminação que lhe asseguraria a identidade e o suposto acesso à “coisa fundamental”. A diferença do outro é o bode expiatório fundamental ao espírito gregário fascista sempre pronto a invadir e destruir aquilo que não lhe agrada.