O primeiro poema longo de Maiakóvski (1893-1930) Uma nuvem de calças (ou, como quer seu novo tradutor Astier Basílio Uma nuvem que usa calças), que prenuncia: É só querer/e serei um cão sem dono, miserável/e, igual ao céu, eu altero o tom com o que passa/é só querer/e serei de uma ternura impecável,/um homem, não, mas uma nuvem que usa calças/, mas que aborda bravamente — além do amor — arte, crenças e costumes, foi concluído em 1915.
Sua origem se deve a um acaso curioso:
“Certo dia, para demonstrar a uma companheira de trem a minha absoluta lealdade disse-lhe que não era “um homem, mas uma nuvem de calças”. Tendo dito isto, logo compreendi que a expressão poderia tornar-se necessária para um verso; quem sabe, ela seria passada adiante e esbanjada em vão? Tremendamente sobressaltado, passei meia hora interrogando a moça com perguntas dirigidas para o tema, e só me acalmei quando me convenci de que minhas palavras já lhe tinham saído pelo outro ouvido. Dois anos depois, a “nuvem de calças” se tornou necessária para mim, como título de todo um poema.”
E esse poema, composto em 1914 -1915, deve seu novo título a outro acaso curioso. Conta o tradutor, que nosso Antonio Candido, no texto “O Mario que eu conheci” fez, uma vez, uma brincadeira literária, num dos “rodapés” que ele escrevia para a imprensa:
“Tendo dedicado um de meus rodapés a certa tradução de Maiakóvski que saíra, em espanhol, em Buenos Aires, pouco tempo depois escrevi para a revista Clima com o pseudônimo de Fabrício Antunes um artigo contra meu rodapé, dizendo que o senhor Antonio Candido não tinha entendido nada. É que, comparando a tradução de um poema que em espanhol era “La nube em pantalones” e em francês “L”hommme nuage”, eu dava um palpite: a tônica, na tradução espanhola parecia ser a nuvem, vestida de calças, quando na verdade se tratava de um homem se sentindo nuvem…
Era um jogo mental para me divertir, mas então aconteceu o inesperado: uma senhora russa me telefonou entusiasmada, dizendo que Fabrício Antunes obviamente sabia russo e era quem tinha razão …”
Homem ou nuvem, de calças ou usando calças, o poema longo, aqui traduzido integralmente, é extremamente interessante e põe em prática os princípios que Maiakóvski propôs em seu “Como escrever versos” que sintetizamos a seguir, sendo que sugerimos também a leitura de A poética de Maiakóvski de Boris Schnaiderman (Perspectiva 1971) e de Maiakóvski – Poemas ( Perspectiva 1972), para quem queira se aprofundar e conhecer, inclusive, uma série de obras do poeta russo mais famoso no Brasil traduzidas pelo trio Boris, Augusto, Haroldo de Campos.


Maiakóvski, então, diz:
No trabalho poético, existem apenas algumas regras gerais para o início. E assim mesmo, essas regras são pura convenção. Como no xadrez. As saídas são quase uniformes. Mas já a partir do lance seguinte, você começa a imaginar um novo ataque. O mais genial dos lances não pode ser repetido numa situação dada, na partida seguinte. Somente o inesperado do lance desorienta o oponente.
Exatamente como as rimas inesperadas no verso.
Mas que dados são indispensáveis para o início do trabalho poético?
Primeiro. Existência na sociedade de um problema cuja solução é concebível unicamente por meio de uma obra poética. O encargo social. (Maiakóvski – ex-estudante da Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura – fez, entre outros, centenas de cartazes com slogans para promover a saúde pública, a serviço da ROSTA – agência nacional de notícias da URSS)
Segundo … o objetivo a alcançar.
Terceiro. Material. As palavras. Fornecimento constante aos depósitos, aos barracões de seu crânio, das palavras necessárias, expressivas, raras, inventadas, renovadas, produzidas, e toda outra espécie de palavras.
Quarto… Pena, lápis, máquina de escrever, telefone, um terno para visitar o albergue noturno, uma bicicleta para ir às redações, refeições asseguradas, um guarda-chuva para escrever sob a chuva, área habitada, com determinado número de passos que é preciso dar quando se trabalha, contato com a empresa de recortes, para recebimento de materiais sobre questões que preocupam o interior, etc., etc… e até um cachimbo e cigarros.
Quinto. Hábitos e processos de trabalhar as palavras, entranhadamente individuais, e que só nos vêm com anos a fio de trabalho cotidiano: rimas, medida do verso, aliterações, imagens, estilo comum, patos, final, título, disposição gráfica, etc., etc.
Tudo isso o leitor/a vai encontrar nesse poema longo, em versão integral, que até agora só aparecia traduzido em trechos.
E não só. Tanto a Editora (Piparote) quanto o tradutor (o paraibano Astier Basílio, jornalista, escritor e dramaturgo, vencedor de vários prêmios, que mora na Rússia desde 2017, leciona no Instituto Púchkin literatura russa para estrangeiros e está atualmente traduzindo poemas de Adélia Prado para o russo) tiveram a excelente ideia de acrescentar ao livro (providencialmente, bilíngue) os poemas compostos por Maiakóvski desde 1912, o ano em que foi “descoberto” por David Burliuk, poeta e um dos fundadores do Futurismo Russo:


Catálogo das obras de David Burliuk e perfil-silhueta de Maiakóvski, por A. Ródtchenko
De dia, saiu-me um poema. Ou melhor: trechos. Ruins. Não se publicaram em parte alguma. Noite. A Avenida Srietiênski. Leio as linhas a Burliuk. Acrescento: são de um conhecido meu. David parou. Olhou-me de alto a baixo. Explodiu: “Mas foi você mesmo quem escreveu isto! Você é um poeta genial!” Um epíteto assim grandioso e imerecido, aplicado a mim, me alegrou. Imergi inteiramente em versos. Nessa noite, de todo inesperadamente, eu me tornei poeta.
Na manhã seguinte, apresentando-me a alguém, Burliuk já dizia com voz de baixo: “Não conhece? O meu amigo genial. O famoso poeta Maiakóvski”. Eu o cutuco. Mas Burliuk é inabalável. E ainda rosnava para mim, afastando-se um pouco: “Agora escreva. Senão, vai colocar–me numa situação cretiníssima”.
E assim todos os dias
Tive de escrever. Escrevi então o primeiro poema (o primeiro profissional, e depois, mais 44).
A “bofetada”
Voltamos de Maíatchka (A datcha de Burliuk). Se com ideias ainda imprecisas, pelo menos com precisão de caráter. Em Moscou, Khlébnikov. A sua genialidade suave estava então completamente obscurecida para mim pelo borboleteante David. Ali mesmo se movimentava também o jesuíta futurista da palavra: Krutchônikh. Depois de algumas noites de lírica, demos à luz um manifesto coletivo. David recolhia, copiava, nós dois demos o título e publicamos a “Bofetada no gosto público”. Nascia o Futurismo Russo.
Apesar do trio Boris, Augusto, Haroldo ter continuado insuperado, como no fulmíneo “Quadro completo da primavera”:
ИСЧЕРПЫВАЮЩАЯ КАРТИНА ВЕСНЫ (original) | Quadro completo da primavera (trad. Haroldo de Campos) | Quadro completo da primavera (trad. Astier Basílio) | Quadro exaustivo da primavera(trad. literal) |
Листочки. | Folhinhas. | Folhinha. | Folhinhas. |
После строчек лис – | Linhas. Zibelinas so | A fuinha ali se foi— | Depois das linhas, fu_ |
точки. | zinhas. | Linha. | (l)inhas. |
[1913] | (1913) | (1913) |
o poeta Astier consegue reproduzir igualmente, com excelentes resultados criativos e rítmicos, os originais de Maiakóvski. Veja-se, como exemplo final, o poema Porto nas três versões:
Порт | Porto (trad. Astier Basílio) | Porto (trad. de Haroldo de Campos) | Trad. literal |
Простыни вод под брюхом были. Их рвал на волны белый зуб. Был вой трубы — как будто лили любовь и похоть медью труб. Прижались лодки в люльках входов к сосцам железных матерей. В ушах оглохших пароходов горели серьги якорей. (1912) | Num lençol a água a fiar seu nível: rasga-o um bico branco e uma via o encobre. Houve uivo em tubos como se lascívia e amor caíssem por tubas de cobre. Na entrada, apertos, botes vão se por no peito das mães de ferro fundido. No ouvido surdo de um barco a vapor um brinco de ancora ardia pendido. (1912) | Lençóis de água sob um ventre pando. Rasgam-se as ondas contra dentes brancos. Amor. Lascívia. Como o uivo que escorre Das chaminés por gargalos de cobre. No berço-embocadura barcos presos Aos mamilos de madres de ferro. À orelha surda dos navios agora Rebrilham brincos de âncora. (1912) | Os lençóis das águas estavam sob o ventre. amor e luxúria por tubas de cobre. Os barcos se apertavam nos berços das entradas aos mamilos de mães de ferro. Brincos de âncoras ardiam nos ouvidos dos navios a vapor ensurdecidos. (1912) |