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segunda-feira, novembro 3, 2025

Maiakóvski e a nuvem: 110 anos depois – Revista Cult

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O primeiro poema longo de Maiakóvski (1893-1930) Uma nuvem de calças (ou, como quer seu novo tradutor Astier Basílio Uma nuvem que usa calças), que prenuncia: É só querer/e serei um cão sem dono, miserável/e, igual ao céu, eu altero o tom com o que passa/é só querer/e serei de uma ternura impecável,/um homem, não, mas uma nuvem que usa calças/, mas que aborda bravamente — além do amor — arte, crenças e costumes, foi concluído em 1915.

Sua origem se deve a um acaso curioso:

Certo dia, para demonstrar a uma companheira de trem a minha absoluta lealdade disse-lhe que não era “um homem, mas uma nuvem de calças”. Tendo dito isto, logo compreendi que a expressão poderia tornar-se necessária para um verso; quem sabe, ela seria passada adiante e esbanjada em vão? Tremendamente sobressaltado, passei meia hora interrogando a moça com perguntas dirigidas para o tema, e só me acalmei quando me convenci de que minhas palavras já lhe tinham saído pelo outro ouvido. Dois anos depois, a “nuvem de calças” se tornou necessária para mim, como título de todo um poema.”

E esse poema, composto em 1914 -1915, deve seu novo título a outro acaso curioso. Conta o tradutor, que nosso Antonio Candido, no texto “O Mario que eu conheci” fez, uma vez, uma brincadeira literária, num dos “rodapés” que ele escrevia para a imprensa:

Tendo dedicado um de meus rodapés a certa tradução de Maiakóvski que saíra, em espanhol, em Buenos Aires, pouco tempo depois escrevi para a revista Clima com o pseudônimo de Fabrício Antunes um artigo contra meu rodapé, dizendo que o senhor Antonio Candido não tinha entendido nada. É que, comparando a tradução de um poema que em espanhol era “La nube em pantalones” e em francês “L”hommme nuage”, eu dava um palpite: a tônica, na tradução espanhola parecia ser a nuvem, vestida de calças, quando na verdade se tratava de um homem se sentindo nuvem…

Era um jogo mental para me divertir, mas então aconteceu o inesperado: uma senhora russa me telefonou entusiasmada, dizendo que Fabrício Antunes obviamente sabia russo e era quem tinha razão …”

Homem ou nuvem, de calças ou usando calças, o poema longo, aqui traduzido integralmente, é extremamente interessante e põe em prática os princípios que Maiakóvski propôs em seu “Como escrever versos” que sintetizamos a seguir, sendo que sugerimos também a leitura de A poética de Maiakóvski de Boris Schnaiderman (Perspectiva 1971) e de Maiakóvski Poemas ( Perspectiva 1972), para quem queira se aprofundar e conhecer, inclusive, uma série de obras do poeta russo mais famoso no Brasil traduzidas pelo trio Boris, Augusto, Haroldo de Campos.

 

Maiakóvski, então, diz:

No trabalho poético, existem apenas algumas regras gerais para o início. E assim mesmo, essas regras são pura convenção. Como no xadrez. As saídas são quase uniformes. Mas já a partir do lance seguinte, você começa a imaginar um novo ataque. O mais genial dos lances não pode ser repetido numa situação dada, na partida seguinte. Somente o inesperado do lance desorienta o oponente.

Exatamente como as rimas inesperadas no verso.

Mas que dados são indispensáveis para o início do trabalho poético?

Primeiro. Existência na sociedade de um problema cuja solução é concebível unicamente por meio de uma obra poética. O encargo social. (Maiakóvski – ex-estudante da Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura – fez, entre outros, centenas de cartazes com slogans para promover a saúde pública, a serviço da ROSTA – agência nacional de notícias da URSS)

Segundo … o objetivo a alcançar.

Terceiro. Material. As palavras. Fornecimento constante aos depósitos, aos barracões de seu crânio, das palavras necessárias, expressivas, raras, inventadas, renovadas, produzidas, e toda outra espécie de palavras.

Quarto… Pena, lápis, máquina de escrever, telefone, um terno para visitar o albergue noturno, uma bicicleta para ir às redações, refeições asseguradas, um guarda-chuva para escrever sob a chuva, área habitada, com determinado número de passos que é preciso dar quando se trabalha, contato com a empresa de recortes, para recebimento de materiais sobre questões que preocupam o interior, etc., etc… e até um cachimbo e cigarros.

Quinto. Hábitos e processos de trabalhar as palavras, entranhadamente individuais, e que só nos vêm com anos a fio de trabalho cotidiano: rimas, medida do verso, aliterações, imagens, estilo comum, patos, final, título, disposição gráfica, etc., etc.

Tudo isso o leitor/a vai encontrar nesse poema longo, em versão integral, que até agora só aparecia traduzido em trechos.

E não só. Tanto a Editora (Piparote) quanto o tradutor (o paraibano Astier Basílio, jornalista, escritor e dramaturgo, vencedor de vários prêmios, que mora na Rússia desde 2017, leciona no Instituto Púchkin literatura russa para estrangeiros e está atualmente traduzindo poemas de Adélia Prado para o russo) tiveram a excelente ideia de acrescentar ao livro (providencialmente, bilíngue) os poemas compostos por Maiakóvski desde 1912, o ano em que foi “descoberto” por David Burliuk, poeta e um dos fundadores do Futurismo Russo:

Catálogo das obras de David Burliuk e perfil-silhueta de Maiakóvski, por A. Ródtchenko

De dia, saiu-me um poema. Ou melhor: trechos. Ruins. Não se publicaram em parte alguma. Noite. A Avenida Srietiênski. Leio as linhas a Burliuk. Acrescento: são de um conhecido meu. David parou. Olhou-me de alto a baixo. Explodiu: “Mas foi você mesmo quem escreveu isto! Você é um poeta genial!” Um epíteto assim grandioso e imerecido, aplicado a mim, me alegrou. Imergi inteiramente em versos. Nessa noite, de todo inesperadamente, eu me tornei poeta.

Na manhã seguinte, apresentando-me a alguém, Burliuk já dizia com voz de baixo: “Não conhece? O meu amigo genial. O famoso poeta Maiakóvski”. Eu o cutuco. Mas Burliuk é inabalável. E ainda rosnava para mim, afastando-se um pouco: “Agora escreva. Senão, vai colocar–me numa situação cretiníssima”.

E assim todos os dias

Tive de escrever. Escrevi então o primeiro poema (o primeiro profissional, e depois, mais 44).

A “bofetada”

Voltamos de Maíatchka (A datcha de Burliuk). Se com ideias ainda imprecisas, pelo menos com precisão de caráter. Em Moscou, Khlébnikov. A sua genialidade suave estava então completamente obscurecida para mim pelo borboleteante David. Ali mesmo se movimentava também o jesuíta futurista da palavra: Krutchônikh. Depois de algumas noites de lírica, demos à luz um manifesto coletivo. David recolhia, copiava, nós dois demos o título e publicamos a “Bofetada no gosto público”. Nascia o Futurismo Russo.

Apesar do trio Boris, Augusto, Haroldo ter continuado insuperado, como no fulmíneo “Quadro completo da primavera”:

ИСЧЕРПЫВАЮЩАЯ КАРТИНА ВЕСНЫ (original)

Quadro completo da primavera (trad. Haroldo de Campos)

Quadro completo da primavera (trad. Astier Basílio)

Quadro exaustivo da primavera(trad. literal)

Листочки.

Folhinhas.

Folhinha.

Folhinhas.

После строчек лис –

Linhas. Zibelinas so

A fuinha ali se foi—

Depois das linhas, fu_

точки.

zinhas.

Linha.

(l)inhas.

[1913]

(1913)

(1913)

o poeta Astier consegue reproduzir igualmente, com excelentes resultados criativos e rítmicos, os originais de Maiakóvski. Veja-se, como exemplo final, o poema Porto nas três versões:

Порт

Porto (trad. Astier Basílio)

Porto (trad. de Haroldo de Campos)

Trad. literal

Простыни вод под брюхом были.

Их рвал на волны белый зуб.

Был вой трубы — как будто лили

любовь и похоть медью труб.

Прижались лодки в люльках входов

к сосцам железных матерей.

В ушах оглохших пароходов

горели серьги якорей.

(1912)

Num lençol a água a fiar seu nível:

rasga-o um bico branco e uma via o encobre.

Houve uivo em tubos como se lascívia

e amor caíssem por tubas de cobre.

Na entrada, apertos, botes vão se por

no peito das mães de ferro fundido.

No ouvido surdo de um barco a vapor

um brinco de ancora ardia pendido.

(1912)

Lençóis de água sob um ventre pando.

Rasgam-se as ondas contra dentes brancos.

Amor. Lascívia. Como o uivo que escorre

Das chaminés por gargalos de cobre.

No berço-embocadura barcos presos

Aos mamilos de madres de ferro.

À orelha surda dos navios agora

Rebrilham brincos de âncora.

(1912)

Os lençóis das águas estavam sob o ventre.
Um dente branco os rasgava em ondas.
Houve o uivo de uma tuba — como se derramassem

amor e luxúria por tubas de cobre.

Os barcos se apertavam nos berços das entradas aos mamilos de mães de ferro. Brincos de âncoras ardiam nos ouvidos dos navios a vapor ensurdecidos.

(1912)

 



[Fonte Original]

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