Depois do Dias das Crianças ter sido devidamente celebrado pelo mercado, talvez seja a hora de tentarmos responder pelo menos a uma pergunta importante: o que nós, adultos, sabemos sobre as crianças?
Duas afirmações bastante instigantes podem ajudar a pensar a questão. Uma delas é da escritora brasileira Cecília Meireles: “Tudo é misterioso, nesse reino [infância] que o homem começa a desconhecer desde que o começa a abandonar”. Outra frase é a do crítico austríaco radicado no Brasil Otto Maria Carpeaux, que, ao analisar a obra do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, considerado o pai da literatura infantojuvenil, concluiu: “Mas quem diria que as próprias crianças são felizes? A felicidade da criança só existe na memória transfigurada do adulto”.
Na opinião de Carpeaux, se as crianças gostam tanto de Andersen é porque ele foi capaz de perceber que, para elas, nem tudo é brincadeira sem consequência, como os adultos costumam pensar: “[…] as crianças são realistas a seu modo: a brincadeira lhes parece muito séria. Por isso gostam tanto dos contos de Andersen, porque ele também tomou a sério o mundo dos brinquedos”
Quem leu os contos de Andersen sabe que nem todos eles têm final feliz. Suas histórias tratam de temas sérios como luto ( “A criança morta”); pobreza e abandono (A pequena vendedora de fósforos”); sofrimento e dor (“A pequena sereia” –não, ela não se casa com o príncipe, como nos vendeu a Disney, “O soldadinho de chumbo”) etc.
Andersen não foi o único escritor a explorar conteúdos sensíveis em escritos para os pequenos leitores. Oscar Wilde também explorou esse universo. Contemporaneamente, entre outros, Tim Burton, tratou de temas difíceis, como rejeição, solidão e morte, em seus poemas para crianças.
É interessante pensar que, hoje em dia, tendemos a censurar determinados temas para as crianças. Será que acreditamos ingenuamente que os pequenos não percebem as mazelas do mundo à sua volta? Bastaria ler um livro como Infância, autobiografia de Graciliano Ramos, para desconfiarmos do mito da criança feliz. Ou bastaria pensarmos em traumas que muitos de nós, adultos, carregamos e que se originaram na infância, o que prova que ela não é necessariamente um paraíso.
Em O Espírito da Colmeia (1973), Victor Erice explora não apenas as marcas da infância, mas a própria dicotomia entre o mundo infantil e o adulto, especialmente no que se refere ao entendimento da vida e aos gatilhos emocionais que tal compreensão provoca. A grandeza do filme, contudo, consagrado como uma das obras mais notáveis do cinema espanhol, reside num aspecto que transcende essa divisão: a aparente impossibilidade de convergir esses dois universos sem que um aniquile o outro. Para Ana e Isabel, sobretudo para a primeira, o bosque de cogumelos e o poço são reinos de imaginário e descoberta, onde conceitos como vida e morte são elaborados a partir de uma perspectiva inacessível aos pais e a outros adultos.
Em contrapartida, o cuidado com as abelhas e as reflexões (na trilha de Miguel de Unamuno) sobre uma sociedade forçadamente ordenada pela ditadura ou partilhadas em cartas a um exilado, constituem o universo parental — um território distante para as meninas, imersas em um imaginário que também nós, espectadores, não conseguimos decifrar por completo.
O filme de Erice, entretanto, mobiliza conceitos que já haviam sido discutidos em diversos campos muito antes de sua realização. Destaca-se, nesse sentido, o polêmico estudo de Philippe Ariès, exposto em História Social da Criança e da Família (1981). Nele, Ariès defende a tese de que houve, por séculos, um desconhecimento generalizado e um escasso interesse pela infância. Tal perspectiva, no entanto, revela-se paradoxal ao considerarmos que inúmeros pensadores, de Santo Agostinho a Freud, manifestaram em seus escritos uma nítida preocupação com essa fase da vida, tida como fundamental para a cristalização das bases que moldariam o espírito e o caráter das crianças, bem como sua capacidade de ingressar no mundo “real” dos mais velhos.
Para Ana, a protagonista do filme espanhol, essa inserção ocorre no instante em que ela se dá conta de que o soldado republicano sucumbe ao franquismo, à realidade. É então que ela declara: “sou Ana, sou Ana”.
Retomando Ariès, para quem as concepções de infância e a passagem à vida adulta — com seu abandono da essência onírica e fantástica — se mostram historicamente como categorias instáveis e de difícil definição, observamos que, se por um lado a infância representa uma noção fugidia em termos analíticos, por outro, enquanto representação social, tem sido constantemente regulamentada. Desse modo, não há uma compreensão genuína das necessidades e desafios vivenciados pelos pequenos, uma vez que os significados atribuídos à infância resultam de um processo de construção social elaborado por adultos. Consequentemente, o universo infantil se constitui como um conjunto de possibilidades sustentado por discursos nem sempre homogêneos e em constante reavaliação.
Nesse aspecto, percebe-se que Ariès não está tão afastado de uma realidade, pois, ainda hoje, abordar determinados assuntos com as crianças implica um esforço de reflexão e uma disposição genuína para o diálogo. Mas até que ponto nós, adultos, estamos dispostos a dedicar nosso tempo para conversar sobre temas melindrosos com os pequenos sem impor nossas próprias construções atravessadas por experiências tão variadas?
Há sempre mais perguntas do que respostas. Se as crianças estão conhecendo o mundo, nós, adultos, precisamos nos empenhar para tentar (re) conhecer” as crianças em toda a sua complexidade.
A professora de Ana e Isabel apresenta às crianças, em sala de aula, “Dom José”, um boneco de estudo anatômico que representa a figura adulta. Ela orienta uma aluna a posicionar os órgãos vitais em seu lugar. A Ana, porém, pede que coloque os olhos, explicando que, embora com os outros órgãos ele possa respirar e se alimentar, apenas com os olhos poderá verdadeiramente ver. Assim, ao receber os olhos pelas mãos de Ana, “Dom José” não apenas ganha a visão, mas um novo modo de ver. Seu olhar, até então cego, inaugura-se não sobre o mundo adulto concreto, mas sobre um universo que o cerca: uma constelação de infâncias, finalmente vislumbrada.
Sugerimos aqui que nos tornemos um pouco “Dom José”: peçamos à infância que nos coloque os olhos. Só o olhar que ela nos conceder será capaz de vislumbrar a sua própria luz.