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segunda-feira, novembro 3, 2025

Somos a mesma luz – Revista Cult

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Nos últimos tempos, certos setores do próprio movimento sexo-dissidente têm defendido a separação das letras TQIA+ da sigla LGBTQIA+. À primeira vista, o gesto parece apenas uma tentativa de reposicionar identidades, mas o que ele expressa é algo mais profundo e preocupante: a infiltração, em nosso campo político, da lógica neoliberal que transforma diferenças em fronteiras e subjetividades em marcas.

Essa vontade de separar não é emancipatória; é o reflexo de uma captura. Ela repete, com nova roupagem, o mesmo princípio da norma heterossexista que sempre quis nos dividir — agora disfarçado de “autenticidade”, “autonomia” e “curadoria de si”. O separatismo identitário, nesse caso, não é um sinal de avanço político, mas um sintoma da autoridade algorítmica que administra nossos afetos, rivaliza nossas dores e nos vende a ilusão de pureza enquanto desmonta a força do comum.

Em Reflexões sobre a questão gay, Didier Eribon recupera Hannah Arendt para falar dos “grupos difamados” — aqueles cuja simples existência é tomada como escândalo. Judith Butler, por sua vez, fala dos “corpos abjetos” — os corpos que a norma expulsa do humano. Somos esses corpos e esses grupos: gays, lésbicas, bissexuais, trans, travestis, queer, intersexos, assexuais. Todos alvos da mesma estrutura de exclusão, ainda que feridos por lâminas diferentes.

A tentativa de apartar as letras TQIA+ da sigla é profundamente injusta com as pessoas trans e travestis — aquelas que, desde sempre, encarnam os signos do estigma lançado sobre todos nós. No Brasil, a palavra “viado” foi (e ainda é) o insulto que nos nomeou a todos, homens gays e travestis. E é justamente por isso que, em sua sabedoria subversiva, elas se chamam “viados” entre si — um gesto de inversão simbólica, o mesmo que Eribon identifica no “invertido consciente”: transformar o insulto em orgulho.

Separar as letras é esquecer que foi uma travesti, Sylvia Rivera, ao lado de Marsha P. Johnson, quem acendeu o estopim da revolta de Stonewall. É violar o próprio nascimento do movimento moderno LGBTQ+, nascido de uma aliança entre os mais estigmatizados. O separatismo de hoje é, portanto, o espelho invertido do conservadorismo que combatemos: uma nova fronteira identitária, engendrada nas entranhas do capitalismo de plataforma e de sua falsolatria, que fabrica antagonismos e multiplica ressentimentos.

Não há “excesso” de pessoas trans ou queer em seus odiosos cancelamentos (e, sim, há muitos!) que justifique tal ruptura. A resposta a esses conflitos não é a divisão, mas o diálogo; não é a fragmentação, mas uma nova politização capaz de reconhecer as novas armadilhas da ordem neoliberal heteronormativa, agora organizada sob a forma da falsolatria e da autoridade algorítmica.

Somos a mesma luz, ainda que refratada em cores. Nosso arco-íris vai do infravermelho ao ultravioleta — faixas que o olho humano nem vê, mas que estão ali, compondo o mesmo espectro. Essa é a beleza e a força de nossa comunidade: o que nos diferencia também nos une. E é essa luz, inteira e diversa, que pode iluminar a humanidade em seu necessário reencontro com todas as formas de vida neste fim de Antropoceno.

O arco-íris não se divide: ele resiste — inteiro.

 

Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Autor, entre outros livros, de Falsolatria (Editora Nós & Sesc SP, 2024) e O que não se pode dizer: experiências do exílio (Civilização Brasileira, 2022). Em 2025 lançou O anonimato dos afetos escondidos (Tusquets), seu retorno à ficção após cinco anos de exílio político.

 



[Fonte Original]

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