Apesar de não ter havido um jogo novo sequer da franquia Splinter Cell desde 2013, o jogo de ação e espionagem stealth da UbiSoft originalmente exclusivo do primeiro console XBox, e chancelado pelo romancista americano Tom Clancy, ganhou sua primeira adaptação para outra mídia audiovisual na forma de uma série animada de oito episódios desenvolvida por Derek Kolstad, mais conhecido por ter sido o criador do universo John Wick, como resultado de sucessivos projetos de adaptação que remontam a 2005, ano de lançamento de Chaos Theory, o terceiro jogo da série. Confesso que foi uma surpresa nostálgica para mim ver Splinter Cell: Deathwatch aparecer “do nada” na grade do Netflix, dado que os três primeiros games da franquia representaram, juntamente com Batman: Arkham Asylum e os dois primeiros Uncharted, estes mais para o final da primeira década do século XXI, os últimos que joguei do começo ao fim.
E foi uma surpresa maior ainda notar que a série funciona como uma espécie de semi-continuação da história de Chaos Theory, em que o legado de Douglas Shetland (voz de Kiff VandenHeuvel), antigo amigo de Sam Fisher (Liev Schreiber em um ótimo trabalho de voz que, claro, fica abaixo do de Michael Ironside nos jogos, mas comparar é covardia) e fundador da Displace International, tem papel importante na figura de seus filhos Diana (Kari Wahlgren), que tenta reposicionar a empresa como fornecedora de tecnologia de energia limpa, e Charlie (Alek Le), que apoia a irmã, mas não com muita empolgação. No entanto, quem nunca sequer ouviu falar dos jogos não precisa de nenhum conhecimento prévio para compreender Deathwatch, pois tudo o que é importante saber é mostrado ao longo dos oito episódios, seja com a ação no presente, seja com flashbacks que estabelecem a conexão entre Fisher e Shetland. Afinal, em termos de premissa, o que Kolstad faz é usar o bom e velho clichê do agente aposentado que é obrigado a voltar à ativa, algo familiar a qualquer um, que permite que o novo e o clássico conversem bem, ou seja, trabalhando tanto quanto possível para atender aos fãs da franquia de jogos e quem sequer sabe o que é Splinter Cell.
E tudo começa com uma missão da agência secreta Quarto Escalão (Fourth Echelon, no original) que dá muito errada, forçando a agente Zinnia McKenna (Kirby) a fugir ferida e levando dados importantíssimos. Sem alternativa, sua comandante Anna “Grim” Grímsdóttir (Janet Varney) a direciona para a fazenda isolada na Polônia onde Sam Fisher, agente veterano já aposentado com direito a barba e cabelo brancos e um fiel cachorro, vive sua vida pacata, o que o força a ajudá-la sem titubear. Os dois, então, passam a ser os agentes de campo tentando desbaratar uma trama maligna que, claro, envolve a Displace International e uma série de mercenários sanguinários representados pelo sádico Reza “Gunther” Karimi (Navid Negahban) e pela violenta Freya Niemeyer (Bella Dayne), enquanto Grim, ao lado de Jo Ahn (Helen Hong), técnica veterana da agência e o recém-recrutado hacker Thunder (Joel Oulette), tentando decifrar os planos secretos. Em outras palavras, é, em essência, algo que já vimos infinitas vezes no audiovisual, sem maiores novidades, o que não é necessariamente algo negativo, vale dizer.
Se o fator “o retorno de Sam Fisher” e as conexões com Chaos Theory funcionam para atrair quem tem saudade dos jogos, a familiaridade da trama e a apresentação de uma personagem zero quilômetro para dividir a tela com Fisher servem para enredar espectadores casuais. A agente McKenna é, para todos os efeitos, uma mulher movida sobretudo pela vontade de se vingar pelo que acontece na missão que abre a série, o que a aproxima justamente de John Wick, logo estabelecendo uma boa sintonia com Sam Fisher e sua pegada mais tradicional. Acho particularmente bom o fato de a temporada conseguir equilibrar muito bem o tempo de tela entre os dois agentes, aos poucos envolvendo Fisher mais profundamente na narrativa em razão de sua conexão de outrora com o fundador da Displace e sem depender de sucessivas cenas em modo stealth, marca dos jogos, algo que poderia cansar muito rapidamente. E, como bônus, Kolstad não economiza na violência explícita. Cito isso como um bônus, porque esses momentos extremos não parecem ser apenas enfeites para atrair espectadores na base do “olha só como somos violentos”, servindo à trama que se passa quase toda em submundo em que a única lei que aplica é a da selva, novamente não escondendo a “johnwickagem” da série.
Por outro lado, a manutenção do mistério sobre qual é o grande plano vilanesco por quase toda a temporada me pareceu desnecessário, um artifício bobo para manter um suspense que não se sustenta muito bem, algo que subtrai da série o trabalho de bastidor de Grim e equipe, que merecia ter sido trazido ao primeiro plano por mais vezes. O design de personagens é bom, ainda que não particularmente especial, seguindo o padrão de animações recentes que tendem a deixar detalhes de lado. A técnica de animação em si me pareceu, porém, um tanto quanto estranha, com personagens em sequências de ação por vezes se movimentando como aqueles bonecos de posto de gasolina, isso sem contar com a quase que completa inexpressividade dos rostos dos personagens a não ser em situações extremas e cenários estáticos repetitivos. Percebe-se, portanto, onde é que a economia foi feita, algo que a produção esforça-se para esconder com a fotografia noturna e muitas vezes em interiores de estruturas, ainda que nem sempre consiga.
A ressuscitação de Splinter Cell como série animada foi, sem dúvida alguma, uma bela surpresa e essa primeira temporada – com a segunda a caminho – funcionou eficientemente para reapresentar o clássico personagem em sua versão “velho rabugento” e apresentar McKenna, que promete muito como uma nova e mais raivosa agente. Não sei, porém, se seria demais pedir que o departamento de animação caprichasse mais e entregasse algo mais fluido e detalhado que não precisa ser nada em níveis estratosféricos, apenas algo com menos movimentações estranhas e mais personalidade.
Splinter Cell: Deathwatch – 1ª Temporada (Idem – EUA, 14 de outubro de 2025)
Criação e desenvolvimento: Derek Kolstad (baseado em jogo originalmente desenvolvido pela Ubi Soft Montreal)
Direção: Guillaume Dousse
Roteiro: Derek Kolstad, David Daitch, Katie J. Stone, Naomi Davis, Matias Wulff
Elenco de voz: Liev Schreiber, Kirby, Janet Varney, Helen Hong, Joel Oulette, Kari Wahlgren, Aleks Le, Kiff VandenHeuvel, Bella Dayne, Navid Negahban
Duração: 191 min. (oito episódios)