Crédito, Caroline Souza/BBC Brasil
Uma rápida busca por “Brazil Core” nas redes sociais — do TikTok ao Instagram, passando pelos moodboards do Pinterest — revela os elementos que compõem uma estética supostamente brasileira.
Entre cores vibrantes, vídeos de moda, fotos de paisagens e símbolos que transitam entre o popular e o estereotípico, surgem clichês que transformam o imaginário coletivo em imagens concretas e compartilháveis.
A tal estética brasileira não é exatamente nova. No verão europeu, que terminou em setembro, ela reapareceu com força, com desfiles, editoriais e hashtags bombando nas redes.
Como toda trend cíclica, volta e meia retorna — e tudo indica que deve ganhar novo fôlego com a Copa do Mundo no próximo ano. Desde 2017, a camisa verde e amarela da seleção de futebol já começava a aparecer em produções fashionistas nos Estados Unidos e em várias partes da Europa.
Mas há um detalhe importante: muitos dos elementos hoje celebrados pelos “gringos” têm origem no que se chama de moda de favela, como chinelos Havaianas, estampas tropicais e o uso de acessórios coloridos e vistosos.
“Sempre foi uma estética periférica, mas durante muito tempo foi vista como ‘cafona’, ‘coisa de pobre’. Quando a moda global se apropria, transforma em produto valorizado”, descreve Thais Farage, consultora de estilo e pesquisadora em moda e gênero.
Especialistas em moda ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a tendência batizada de Brazil Core tem duas faces: por um lado, valoriza elementos culturais e pode servir de convite para um olhar mais atento e curioso ao Brasil, reforçando seu soft power; por outro, corre o risco de se tornar uma exportação vazia, sustentada em estereótipos e com traços de apropriação cultural.
O soft power é a capacidade de países influenciarem relações internacionais e intensificarem trocas comerciais através da sedução de produtos como filmes, música, moda, mídia e turismo.
Mi Medrado, antropóloga baseada em Los Angeles, com doutorado e pesquisa sobre produção e circulação da moda no Sul Global, diz o seguinte: “A repetição desses elementos cria um diálogo histórico e reflexivo, levando em conta gênero, classe e raça. Mas, ao mesmo tempo, nem sempre gera uma crítica que realmente repense ou reorganize esse imaginário que muitas vezes é apropriado de forma inadequada”.
Farage complementa que as redes sociais muitas vezes promovem “uma exportação de uma estética, e não de uma cultura”. “Acho que é a parte que a gente se ressente um pouco aqui no Brasil. Então, é um verde e amarelo. Tenho certeza que, se criássemos uma pesquisa, teria gente que nem sabe direito onde é o Brasil. É muito mais pela estética.”
“A moda embala as coisas e as vende como produto qualquer coisa, assim como a estética punk, hippie, a estética indiana… Que são bastante identitárias e às vezes questionadas como apropriação cultural. A moda consegue transformar isso em uma tendência esvaziada de sentido.”
Por outro lado, diz a consultora, há uma faceta positiva: “O melhor é quando conseguimos associar essa estética a empresas e projetos que realmente valorizem nossa cultura e fortaleçam a nossa economia.”

Crédito, Reprodução/Tiktok
As ondas do Brazilian Core
Tênis coloridos, estampas de rua inspiradas em grafites, roupas com elementos artesanais das favelas e acessórios chamativos — junto a símbolos tropicais, corpos bronzeados e silhuetas diversas — ganham uma aura cool que, como toda tendência de moda, é reavivada em ondas pelo olhar estrangeiro.
Em 2022, ano da Copa do Mundo, e no ano seguinte, a trend continuou forte.
“Estourou essa estética de novo, depois de um hiato importante. Para os brasileiros, havia uma questão de retomada dos símbolos nacionais”, afirma Thais Farage.
Segundo ela, nesse período a bandeira do Brasil e a camisa da seleção haviam sido apropriadas por grupos de extrema-direita, perdendo parte do seu caráter de símbolo nacional e ganhando uma conotação política conservadora.
A Copa funcionou, então, como um momento de resgate desses ícones.
Farage relembra que, entre 2022 e 2023, vimos, por exemplo, a cantora espanhola Rosalía usando boné da marca brasileira Misci, e a grife Jacquemus gravando uma campanha nas praias cariocas.
Um post de Hailey Bieber, modelo e esposa do cantor Justin Bieber, que tem família brasileira, usando um croptop do Brasil com uma lata do refrigerante Guaraná ao fundo, se tornou um exemplo de como essa estética ganhou ainda mais fôlego na cultura pop internacional.
“Também teve a marca Corteiz, de streetwear, recriando a camisa da seleção usada na Copa de 2002, fazendo campanhas nas favelas e colocando Ronaldo como garoto-propaganda. O sucesso foi grande, mas as peças foram vendidas apenas nos Estados Unidos e na Europa, não no Brasil. O caso simboliza como a estética Brazilian Core — originária das favelas, periférica no Brasil — é apropriada para consumo internacional, transformando códigos e símbolos brasileiros em produtos de moda, sem necessariamente engajar com o público brasileiro”, diz Farage.

Crédito, Reprodução/Pinterest
‘Havaianas, mas no estilo Copenhagen?
No TikTok, a hashtag “Copenhagen way” ajudou a transformar as Havaianas em símbolo de sofisticação minimalista.
Desfiladas em versões combinadas com alfaiataria durante a Copenhagen Fashion Week, realizada em agosto passado na capital da Dinamarca, as sandálias brasileiras viraram objeto de desejo internacional — e só então passaram a ser reinterpretadas no Brasil fora do contexto praiano.
“Foi depois de Copenhague usar Havaianas com alfaiataria que se começou a considerar o chinelo em ambientes urbanos mais formais aqui”, observa a consultora Thais Farage.
“No Brasil, sempre foi comum nas praias do Nordeste ou do Rio, mas não era aceito em contextos de maior formalidade. Precisamos validar nossos símbolos por conta própria, sem esperar a chancela europeia ou americana.”
Segundo ela, essa busca constante por aprovação externa não é recente. “No século 19, por exemplo, a elite brasileira se vestia copiando os folhetins franceses. Essa dependência estética é histórica. O topo da pirâmide social ainda é eurocêntrico e copiona”, afirma.
A Havaianas é um dos maiores cases de sucesso da exportação da “imagem brasileira” para fora. Entre lojas físicas permanentes, pop-ups e e-commerces, a marca hoje está presente em mais de 100 países.

Crédito, Reprodução/Tiktok @lystapp
Para Farage, a chave está em reverter esse olhar: “A grande sacada é enxergar a inovação que já existe nas periferias, nas comunidades indígenas, nos quilombos. Esses espaços são fonte de códigos e símbolos nossos, que podem ser validados por nós mesmos.”
Para Gabriel Oliveira, diretor de branding da Farm, “o Brasil viveu um certo isolamento — físico, linguístico e até cultural — que nos fez olhar muito para dentro”.
“Ao mesmo tempo, temos um desejo forte de reconhecimento externo, algo que esbarra na ideia do ‘complexo de vira-lata’. No fundo, não é apenas sobre buscar validação estrangeira. Queremos que o mundo perceba o quanto valorizamos o que temos aqui. A relação é de amor profundo com nossa cultura”, diz Oliveira.
A Farm tem 23 lojas fora do Brasil: sete nos Estados Unidos, seis na França, seis no Reino Unido e uma em cada um dos seguintes países: Itália, Grécia, Emirados Árabes Unidos e México
A antropóloga Mi Medrado amplia o debate ao propor a ideia de dois “Brasis”: um com “S” e outro com “Z”.
“O Brasil com ‘Z’ é o que circula no imaginário internacional e muitas vezes desconhece o Brasil com ‘S’ — esse Brasil real, diverso, popular. O estrangeiro, às vezes, se interessa justamente por esse Brasil com ‘S’, mas de um jeito quase turístico, como quem faz um ‘safari’ pelas periferias”, explica.
Para ela, as redes sociais bagunçaram esse jogo, abrindo espaço para uma disputa de narrativas. “De um lado, o Brasil com ‘Z’, estilizado e distante; de outro, o Brasil com ‘S’, mais complexo e contraditório, que passa a ter chance de ser visto e reivindicar protagonismo.”
O papel do consumidor e das marcas brasileiras
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que a atenção internacional ao Brazil Core pode abrir espaço para mudanças positivas no mercado interno e no olhar dos consumidores brasileiros.
O desafio, dizem, é valorizar símbolos e estéticas próprias sem depender exclusivamente da chancela estrangeira.
Thais Farage acredita que a virada está em olhar para as periferias, comunidades indígenas e quilombolas. “É nesses espaços que há inovação e símbolos genuinamente brasileiros que podemos valorizar”, afirma.
Ela cita marcas que conseguem se apropriar das cores e da diversidade do país de forma consciente: “Gosto de mencionar a Missy, que produz um luxo de fato brasileiro, com identidade visual própria e valorizando a mão de obra nacional. O Brasil é rico em marcas e designers originais que fazem moda brasileira, há muita gente legal, seja em acessórios ou vestuário”.
Mi Medrado, antropóloga baseada em Los Angeles, também menciona exemplos concretos de estilistas que materializam essa perspectiva.
“Isaac Silva traz elementos de religiosidade afrobrasileira e tradições culturais em seus desfiles, como Festa Junina, desafiando críticas que questionavam seu entendimento de moda. Outro exemplo é a D’Alessandro, que incorporou elementos como folha de banana em suas peças, ressignificando símbolos brasileiros a partir de uma perspectiva interna e autônoma, não pelo olhar estrangeiro.”
Farage ressalta ainda que o Brasil é grande demais para ser reduzido a uma estética só.
“A Dengo, por exemplo, faz chocolate de altíssima qualidade extraído da Bahia, com storytelling brasileiro que celebra um Brasil complexo e diverso. A Farm também conseguiu criar estampas únicas e autorais, despertando identificação tanto dentro quanto fora do país. Precisamos de muitas traduções e criações com cara de Brasil.”
Gabriel Oliveira, diretor de branding da Farm, diz: “O Brasil é riquíssimo em estética, música, espiritualidade e miscigenação. Antecipamos uma mistura que o mundo só agora começa a viver, e já colhemos frutos disso. Por isso acredito que o movimento de enaltecimento da cultura brasileira está muito longe de ser apenas uma moda”.
Ele considera que, dentro do recorte da marca, é possível despertar orgulho e identificação: “Claro que não é possível representar todos os brasileiros, mas o que mostramos já gera conexão — tanto em quem é brasileiro quanto em quem descobre o país de fora.”
Estética brasileira além da moda
A amplificação das redes sociais permitiu que o “Brazil core” não se limitasse ao aspecto visual. A estética se expande para outros campos da cultura, incorporando o funk, a musicalidade tropical e até mesmo os memes, que projetam o senso de humor brasileiro para o mundo digital.
Mi Medrado, antropóloga, destaca que moda e música caminham juntas na construção dessa narrativa.
“O visual e a música andam de mãos dadas, construindo histórias que ocupam espaço e desafiam o apagamento histórico”, afirma.
Para ela, o Brazilian core é também “um processo de resistência e de construção social de novas narrativas, resgatando debates sobre marginalização e silenciamento”.
Ela diz que esse movimento se reflete em vertentes como a moda de favela, a moda preta e o design preto, que carregam estética e história de comunidades tradicionalmente subjugadas.
Um exemplo, segundo Medrado, está na cantora Anitta: “Quando Anitta mostra, no clipe Girl from Rio, ‘o que é o Brasil’ usando uma batida de bossa nova, ela cria uma mistura desses Brasis, embora eles sejam extremamente distantes e desiguais. Minha impressão é que, de certa forma, Anitta responde a um anseio que Carmen Miranda já tinha na década de 1940.”
Para Thais Farage, pesquisadora de moda e gênero, essa intersecção não é novidade. “A moda é parte indissociável da cultura material. Não existe moda sem música. Esse casamento é muito antigo. Nos anos 1990, essa linha ficou ainda mais borrada, com grandes modelos participando de videoclipes.”
Farage acredita que a expansão do funk, especialmente via redes sociais, abre caminhos de resistência e também de mercado.
“Eu acredito que esse momento do Brazilian core pode ser usado para discutir a descriminalização do funk. Como pensar pautas de gênero dentro dele, o racismo. É positivo ver o funk circulando no mundo, porque é uma forma de sair da periferia. Ao mesmo tempo, as músicas tocadas nas redes sociais ajudam os músicos — o estouro da Anitta no funk é um exemplo claro. Então, existem dois lados nessa conversa.”