Crédito, Supremo Tribunal Federal
“A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher”.
O trecho é parte do voto da ex-ministra em favor à descriminalização do aborto, se realizado até a 12ª semana de gestação.
Mas o julgamento foi interrompido por um pedido do ministro Luís Roberto Barroso para que a ação saísse do plenário virtual e fosse analisada pelo plenário físico do Supremo.
Desde então, a ação protocolada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no início de 2017, nunca mais foi à pauta na Corte.
Agora, após anunciar sua aposentadoria, o próprio Barroso pode repetir Rosa Weber e deixar seu voto sobre o tema, algo que teria que ser feito até esta sexta-feira (17/10), último dia útil como ministro do STF.
Ao menos essa é a expectativa de 61 entidades e mais de 200 pessoas que enviaram uma carta ao gabinete do ministro na quarta-feira (15/10) apelando para que ele registre o voto nessa Ação Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e em outras duas. Todas relacionadas ao aborto.
Além do processo pela descriminalização do aborto (ADPF 442), as entidades apelam para que Barroso vote na ADPF 1207, pela possibilidade de que outros profissionais de saúde, como enfermeiros, realizem o aborto legal.
A terceira ação (ADPF 989) pede que o Supremo crie mecanismos para assegurar o direito à interrupção da gestação nas hipóteses já permitidas pelo Código Penal (risco à vida da gestante e gravidez por estupro) e em casos de fetos anencéfalos.
Em 2012, antes de ser ministro, Barroso atuou como advogado na ação que liberou o aborto também em casos de anencefalia.
Em março de 2017, durante um seminário no Superior Tribunal de Justiça (STJ), Barroso, já como ministro do Supremo, defendeu que a criminalização do aborto “viola sua autonomia e viola também a igualdade, porque se os homens engravidassem isso já teria sido resolvido há muito tempo”.
No ano seguinte, em novembro, em uma fala no Congresso Internacional de Direito e Gênero, promovido pelo FGV no Rio de Janeiro, ele disse que a discussão deve ser tratada no Judiciário e não no Legislativo.
“A mulher não é um útero a serviço da sociedade. Se os homens engravidassem, esse problema já teria sido resolvido. O ponto é que a criminalização se tornou uma má política”, afirmou na ocasião.
“Estamos em contagem regressiva para o último dia do ministro Barroso no STF”, diz à BBC News Brasil, a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) e referência internacional na defesa dos direitos das mulheres.
“A história política recente da Corte atravessou as grandes questões constitucionais que ele esperaria ter enfrentado, como foram as ações de aborto, sob sua relatoria”, prossegue.

Crédito, Antonio Cruz/Agência Brasil
“A expectativa é que ele repita o feito da ministra Rosa Weber: profira seu voto na ação que pede a descriminalização e que a ação siga seu curso entre outros ministros. Sobre as outras ações, todas mais tímidas em matéria de revisão legal, a expectativa é que o ministro tome decisões mais corajosas que façam jus a sua liderança analítica em matéria constitucional.”
Mauricio Dieter, professor de criminologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos advogados na ação pela descriminalização do aborto, também acredita que o ministro deixe um voto favorável na ação.
“Imagino que ele deva se manifestar favoravelmente aos direitos reprodutivos das mulheres, o que seria coerente com a ideologia pela qual advoga”, afirmou.
Assim como defendeu a descriminalização do aborto em diferentes momentos, Barroso também já afirmou, por outro lado, que o Brasil não está preparado para esse debate.
“Eu penso que, muito possivelmente, isso não será pautado proximamente. Não há clima de tranquilidade para julgar essa matéria. Mas ela também não pode ser adiada indefinidamente. Em algum momento vai ter que ser decidido e acho que pode ser uma decisão apertada”, disse ele à BBC News Brasil em 2022.
Julgamento das ações depende do presidente do STF
Ainda que Barroso deixe seu voto, e que ele seja favorável à descriminalização do aborto, isso não significa que as ações rapidamente voltarão à pauta no Supremo.
Pierpaolo Bottini, advogado e professor de Direito Penal da USP, explica que o fato de um ministro deixar o voto antes de se aposentar não muda em nada o curso do processo.
“Não faz diferença para o processo ele votar agora. Quem decide o que será colocado em pauta é o presidente do Supremo.”
Por isso, é preciso que o ministro Edson Fachin, coloque o tema na pauta, algo que Barroso, enquanto esteve na presidência da Corte (2023–2025), não fez.
Além disso, assim como há entidades e juristas na defesa dessas ações, há, por outro lado, outras tantas contrárias aos afrouxamentos no que diz respeito à interrupção da gravidez, gerando pressão para o assunto ficar onde está.
Quem é contra a descriminalização do aborto em geral argumenta que o direito à vida do embrião começa no momento da concepção e que ele sobrepõe o direito à autonomia corporal da mulher.
A BBC News Brasil tentou entrar em contato com a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), a União dos Juristas Católicos (Ujuca) e o Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF), mas não obteve retorno de nenhuma delas até o fechamento desta reportagem.
O ministro Barroso também foi procurado, mas não retornou.
“Qual é a prioridade de legalizar o aborto na pauta nacional hoje?”, disse o senador Eduardo Girão (Novo-CE), quando o julgamento foi retomado no STF em 2023.
“Isso é desejo da população brasileira? É óbvio que não. É desejo de poucos militantes que usam toga, assim como fizeram na questão das drogas.”
A descriminalização do aborto é rejeitada por 75% dos brasileiros, segundo uma pesquisa Ipsos-Ipec de julho desde ano — dois pontos percentuais acima do levantamento anterior, de 2023.
Em contrapartida, 16% apoiam, índice que teve queda de dois pontos percentuais em relação a dois anos antes.
No STF, o ministros Kássio Nunes Marques e André Mendonça já se declararam publicamente contra a ampliação do acesso ao aborto.
Ao ter sua indicação ao STF sabatinada no Senado em outubro de 2020, Marques se disse contra a interrupção da gravidez por razões pessoais: “Questões familiares, questões pessoais, experiências minhas vividas. A minha formação é sempre em defesa do direito à vida”.
Ele também manifestou que as três hipóteses de liberação do aborto no Brasil estariam adequadas e que apenas algum fator extraordinário poderia provocar a ampliação disso.
O sucessor favorito
Anunciada na semana passada, a aposentadoria de Barroso foi antecipada, já que o ministro teria cargo garantido até os 75 anos, ou seja, até 2033.
Segundo Barroso, sua decisão foi motivada por razões pessoais.
“Sinto que agora é hora de seguir outros rumos. Nem sequer os tenho bem definidos, mas não tenho qualquer apego ao poder e gostaria de viver um pouco mais da vida que me resta sem a exposição pública, as obrigações e as exigências do cargo. Com mais espiritualidade, literatura e poesia”, disse, emocionado.
Agora, cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) indicar seu sucessor, que herdará todas as ações das quais Barroso é relator. Dentre elas, a que requer que outros profissionais de saúde possam realizar o procedimento de aborto legal, e a que pede a garantia ao direito à interrupção da gestação nas hipóteses já permitidas pelo Código Penal em casos de fetos anencéfalos.
Não há prazo definido para que o presidente faça esta escolha.
A ex-presidente Dilma Rousseff (PT), por exemplo, levou quase um ano para indicar Edson Fachin, em 2015, para a vaga deixada por Joaquim Barbosa.
Mas desde o anúncio da aposentadoria de Barroso, alguns nomes passaram a circular como prováveis indicados.
Messias já ocupou diferentes cargos em governos petistas, como o de subchefe para assuntos jurídicos da Presidência no governo de Dilma Rousseff, e é muito próximo ao presidente Lula.
Além de Messias, o desembargador federal Rogério Favreto, do TRF da 4ª região, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e o atual advogado da Petrobras e ex-secretário de Assuntos Jurídicos da Presidência, Wellington César Lima e Silva, estão entre os cotados.
Após a indicação, o nome tem que de ser aprovado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) do Senado e depois pelo plenário do Casa, onde precisará da maioria absoluta dos votos.