Crédito, REUTERS/Aline Massuca
- Author, Marina Rossi e Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Mas para o jornalista Rafael Soares, repórter especial do jornal O Globo que cobre há mais de uma década segurança pública e direitos humanos no Rio, muitas das peças que ajudam a explicar o contexto desta terça-feira traumática para a população não são novas nem surpreendentes.
Em entrevista à BBC News Brasil, Soares apontou algumas dessas peças.
Por exemplo, as mudanças envolvendo o Comando Vermelho, facção alvo da operação nos complexos do Alemão e da Penha, na capital fluminense.
De acordo com o jornalista, nos últimos anos o Comando Vermelho firmou alianças em outros Estados, “fagocitando” facções locais. Além disso, está tentando entrar no mercado internacional de drogas, até então monopolizado por outra organização criminosa, o Primeiro Comando da Capital (PCC), baseado em São Paulo.
“Esse é um processo que vem desde 2021, 2022 — com uma maior quantidade de parceiros comerciais e de rotas de tráfico de armas e de drogas”, aponta Soares, autor do livro Milicianos (Objetiva, 2023).
Assim, na análise do jornalista, a entrada de mais dinheiro, seja nacional ou internacional, está promovendo a expansão do Comando Vermelho — ao que as forças policiais do Rio têm respondido com a chamada Operação Contenção, da qual a ação de terça-feira fez parte.
Outra peça já conhecida desse contexto é escalada da letalidade das operações policiais promovidas pelo governo estadual de Cláudio Castro (PL), segundo aponta Soares.
“Desde 2020, o Rio tem colecionado operações com um índice de letalidade surreal de alto. É muito raro, [quando] você pega a crônica policial brasileira, operações policiais com mais de 20 mortos. É uma coisa esdrúxula, que só existe no Rio de Janeiro”, diz o jornalista.
Para o jornalista, outro fator que ajuda a explicar a operação de terça seria parte de um suposto esforço do governo Castro em encontrar alguma “marca” para seu governo, que terminará no ano que vem.
Em suas redes sociais, o governador chamou essa terça-feira de “dia histórico” e disse que, em reação à operação, “criminosos” tentaram colocar a cidade e o Estado do Rio de Janeiro de joelhos”.
“Mas as nossas polícias estão nas ruas garantindo a volta para casa, garantindo a volta da normalidade da vida”, assegurou Castro.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com o jornalista Rafael Soares.

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BBC News Brasil – As facções estão incorporando o uso de drones. Segundo autoridades do Rio, criminosos usaram drones para lançar bombas e atacar policiais durante a operação desta terça. Esses equipamentos já são utilizados como armas de guerra na Ucrânia e em outros lugares do mundo. A polícia brasileira está preparada para isso?
Rafael Soares – Essa não é a primeira vez que a gente tem registro de uso de drone assim.
Se não me engano, no ano passado, a gente já teve o uso de drone em guerra de facção, do TCP [Terceiro Comando Puro] contra o Comando Vermelho.
E a gente também teve uma investigação da Polícia Federal que interceptou mensagens de um cara responsável por importar drones para o Terceiro Comando.
Esse uso tem como objetivo sempre o lançamento de granada em territórios inimigos.
Quando isso começou a acontecer, era um desafio para as forças de segurança.
Lembro que na primeira ação desse tipo, nesse ataque do TCP, era o pessoal do Complexo de Israel do TCP no território do Comando Vermelho.
Isso foi recebido com muita apreensão pelo pessoal da polícia, das forças de segurança, mas isso já faz mais de um ano.
Com esse tempo, acho que a polícia já conseguiu, de certa maneira, fazer frente a isso também, com o uso de tecnologia de drones de helicóptero.
O que é mais interessante também é que, além de ter seus próprios drones, o tráfico também tem adicionado ao arsenal deles aparatos para derrubar drones de adversários.
Tem vários outros problemas que se adicionam a esse. A questão é de domínio territorial. A questão urbanística do Rio é mais um empecilho que as forças de segurança têm.
BBC News Brasil – No mês passado, houve uma operação grande em São Paulo de investigação dos braços financeiros do PCC [Primeiro Comando da Capital]. E, agora, essa megaoperação contra o Comando Vermelho. Por que agora?
Rafael Soares – Essa operação faz parte da Operação Contenção.
Toda operação que tem como objetivo frear o avanço territorial do Comando Vermelho tem entrado dentro desse contexto da Operação Contenção.
Aqui no Rio, o Comando Vermelho, ao longo dos últimos cinco anos principalmente, vem, no âmbito nacional, tentando recuperar o espaço que perdeu para o PCC.
Ao longo dos últimos dez anos, o PCC cresceu nacionalmente.
O Comando Vermelho contra-atacou isso fazendo parcerias com facções dos Estados — basicamente fagocitando facções locais como no Amazonas, Rio Grande do Norte, Bahia…
Esse ambiente que o Comando Vermelho criou fora do Rio tem criado impactos aqui dentro do Rio também.
Esse é um processo que vem desde 2021, 2022 — com uma maior quantidade de parceiros comerciais e de rotas de tráfico de armas e de drogas.
Depois que o CV perdeu a fronteira do Paraguai, ele se reinventou para trabalhar a Rota do Solimões, a rota do Norte do Brasil [para exportar drogas].
Então, agora, o Comando tem mais parceiros, tem mais droga, tem mais rotas e tem também entrado em um novo mercado: o de tráfico internacional, que era monopolizado pelo PCC.
O Comando ainda não tem uma atuação expressiva nesse mercado, mas a gente já sabe, já tem investigações da Polícia Federal mostrando que o Comando Vermelho tem entrado no no no tráfico internacional.
Isso domesticamente, aqui no Rio, tem suas consequências. O Comando Vermelho tem movimentado mais dinheiro, que levou ao movimento expansionista do comando.
Ao longo dos últimos 20 anos, em 15, o Comando perdeu muitos territórios, principalmente para a milícia.
Agora, nesse novo momento, o Comando tem contra-atacado e se expandido ao longo dos últimos cinco anos.
O Comando Vermelho basicamente vem lambendo não só o que tinha perdido para a milícia nos últimos anos, mas também áreas que nunca tinha tido.
Gardênia Azul é uma favela tradicional da milícia aqui do Rio, que era da milícia há 20 anos e hoje é reduto do Comando Vermelho. Essa operação de hoje, inclusive, tem relação com a Gardênia.
O Doca, chefe do Complexo da Penha, hoje também chefia o tráfico na Gardênia Azul, que ele invadiu e agora controla o tráfico.
Então, o momento do Comando Vermelho aqui é um momento de expansão e de guerra territorial.
E, principalmente do ano passado para cá, o governo do Rio vem tentando essa estratégia política de concentrar as ações policiais no Comando e batizou isso de Operação Contenção.
A operação de hoje, especificamente, é uma operação que tem uma investigação por trás, uma denúncia do Gaeco [Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado, do Ministério Público do Rio] aqui do Rio, contra 67 traficantes.
São 67 mandados de prisão que foram decretados pela Justiça do Rio hoje (terça) de manhã.
Essa operação, ao mesmo tempo que faz parte da Operação Contenção, foi uma operação conjunta de todas as forças de segurança do Rio, com a PM e a Polícia Civil participando.
É uma operação que tem alvos que tiveram a prisão decretada por conta de uma investigação.
Geralmente, eu critico muito operações desse tipo.
BBC News Brasil – Por quê?
Rafael Soares – Por causa do alto nível de risco para moradores, da letalidade. Hoje a gente já tem mais de 20 mortes [na contagem atual, são ao menos 64].
Já é a terceira ou a quarta mais letal da história do Estado. Todas as outras foram também neste governo [após a entrevista, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) divulgou um levantamento mostrando que a operação de terça foi a mais letal já registrada desde 1990 na região metropolitana do Rio, seguida por outras duas durante o governo de Cláudio Castro, em 2021 e 2022].
Desde 2020, o Rio tem colecionado operações com um índice de letalidade surreal de alto.
É muito raro, [quando] você pega a crônica policial brasileira, operações policiais com mais de 20 mortos. É uma coisa esdrúxula, que só existe no Rio de Janeiro.

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BBC News Brasil – Essa fagocitação que você disse, do Comando Vermelho com outras facções do Norte e Nordeste, é uma das explicações para o alto número de mandados de prisão hoje contra pessoas de outros Estados?
Rafael Soares – Esse é um ponto interessante e fundamental para entender o atual momento Comando Vermelho.
Esse processo de crescimento nacional é completamente diferente do PCC, que tem uma estrutura piramidal empresarial.
O crescimento do PCC ocorreu dentro da própria estrutura empresarial do PCC, em que outras sintonias [liderança, no jargão do PCC] foram entrando embaixo daquele sistema que existia.
O Comando Vermelho funciona de uma maneira diferente, é como se fossem franquias. O Comando Vermelho é uma sociedade entre donos de morro.
São vários donos de morro, que são sócios e todos eles estão no mesmo degrau. Nenhum manda mais nem menos, é uma sociedade.
Foi isso que permitiu que o Comando Vermelho crescesse nacionalmente. Essa ideologia de facção que permitiu que outros chefes de outros Estados inicialmente virassem parceiros comerciais em suas facções.
Por exemplo, a Família do Norte, inicialmente no Amazonas, ainda era Família do Norte e se diziam aliado do Comando Vermelho.
Hoje, já é o Comando Vermelho.
Essa situação aconteceu no país inteiro: num período de tempo muito curto, em cinco ou seis anos, o Comando Vermelho passou de dez Estados da Federação para 25 Estados. Por isso que eu chamo de fagocitação.
Inicialmente eram parceiros, eram os grupos que tinham seus próprios nomes, suas próprias ideologias.
Tem essa questão também de rotas, de armas, de drogas. E aí entra outro ponto que é fundamental, de como essa arquitetura do Rio de Janeiro, como o urbanismo do Rio de Janeiro facilita que chefe do tráfico se esconda da polícia.
O Rio virou um abrigo para chefe do tráfico do Brasil inteiro. Tem chefes do tráfico do Pará que são donos de favelas aqui.
Por exemplo, em Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio, quem manda lá é um chefe do tráfico do Pará.
A gente conseguiu fazer um levantamento de chefes do tráfico aqui no Rio, se não me engano, que são de 15 Estados.
Isso é um desafio também para as forças de segurança daqui, porque você tem esses chefes do tráfico de outros Estados que também movimentam armas e drogas aqui, não só lá. Importa um pouco da criminalidade local para cá.
BBC News Brasil – O secretário de Segurança Pública do Rio fez questão de dizer que não contou com a ajuda do governo federal para essa operação. Ao mesmo tempo, disse que que não há como o Estado enfrentar o crime organizado sozinho. O que isso significa nessa tentativa de combate? Existe uma disputa de narrativa?
Rafael Soares – A gente tem uma situação complicada aqui na segurança pública que é um governo que até agora não deixou marca nenhuma.
Eu não estou nem falando na segurança, apenas. E fora as grandes operações com muitas mortes.
O governo já está acabando. Já vão seis anos de governo Castro, e eu não consigo dizer qual é o norte. O que o governo quer, afinal? O governo vai entregar o quê? O que foi planejado?
Por exemplo, no governo Cabral, que terminou com o governador preso, a gente tinha uma política de segurança que, bem ou mal, tinha uma política de segurança até definida, que era recuperação de território, as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora]…
A política de segurança do Cláudio Castro, é muito difusa. Não dá para entender o que o Estado quer. Já foram criados programas — acho que no início, o governo criou um programa chamado Cidade Integrada, que era uma nova UPP 2.0. Ninguém sabe o que aconteceu com ele.
Depois, se falou em recuperação de território, que não virou um programa de fato.
Fora que é um governo que tenta fazer oposição ao governo federal. E hoje é impossível você investigar o crime organizado aqui no Rio sem apoio do governo federal.
Ao longo dos últimos anos, isso vem melhorando. Por exemplo, a Polícia Federal tem mais protagonismo nas investigações contra tráfico no Rio. A reboque do caso Marielle, a Polícia Federal vem tendo protagonismo nas ações.
Mas essa integração entre forças federais e estaduais, isso é um problema. Isso deveria ser um objetivo, inclusive do próprio governo do Estado, porque estamos falando de uma facção nacional. A gente está falando de vários criminosos que atuam em seus Estados. O problema é nacional, e a solução também tem que ser.
BBC News Brasil – Desavenças ideológicas podem emperrar essa integração? Na semana passada, o presidente Lula disse que traficante era vítima de usuário, mas depois se retratou, enquanto lideranças da direita defendem a pena de morte para faccionados.
Rafael Soares – Até tem uma questão ideológica, mas eu acho que, dentro do que deveria ser a rotina policial de investigação, tem técnicos trabalhando no Ministério da Justiça, na Polícia Federal, nas polícias do Estado, setores de inteligência que deveriam trabalhar em conjunto e vários entes de diferentes níveis, a Polícia Rodoviária, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Abin, as polícias daqui do Rio e o setor penitenciário, tanto federal quanto estadual.
Para se compreender o problema da segurança pública do Rio, é preciso que todo mundo sente na mesa, porque se faltar alguém, vai faltar alguma peça no quebra-cabeça.
Eu até acho que essas divergências existem, mas não existem só no Rio de Janeiro, existem em São Paulo também — inclusive com um governador que é mais vocal do que o Claudio Castro.
Claudio Castro não é um cara que tem um governo ideológico, principalmente vocal, como por exemplo, o Tarcísio [de Freitas, Republicanos].
Mas certamente é um governo de oposição ao governo federal e que, na hora da crise, acaba jogando o problema no colo do outro.
Isso não é algo atual [no Rio]. Mesmo quando a gente tinha os governos alinhados [estaduais e federais], a gente não conseguiu ter um avanço real nessa questão de integração das forças policiais.
Então, é um problema no Rio, um problema histórico, mas um problema que precisa ser resolvido com maturidade e técnica.
Hoje, o secretário de Segurança do Rio tem um arranjo institucional meio maluco, porque o Rio de Janeiro tem um secretário de Polícia Militar, um secretário de Polícia Civil e o secretário de Segurança — que não tem nem o secretário de Polícia Militar e nem o Secretário de Polícia Civil abaixo dele. Os dois estão do lado dele.
É um secretário de Segurança que não tem tropa.

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BBC News Brasil – O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, enviou ao Congresso a PEC da Segurança Pública, para tentar, dentre outros pontos, dar status constitucional ao Sistema Único de Segurança. Mas a proposta ainda não foi aprovada. Acha que esse é um dos caminhos possíveis?
Rafael Soares – Aqui no Rio, a única medida tomada nos últimos anos para se governar esse campo da segurança pública foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal, com a ADPF 635, a “ADPF das favelas” [que criou regras para dar mais transparência às operações e conter a letalidade policial]. Foi a única.
Foi o Judiciário que obrigou o governo a ter uma política de segurança que fosse focada na população, com metas, como fazer e o que fazer.
Isso para mim já mostra o tamanho do problema.
Se a medida de mais força de segurança pública foi tomada pelo Judiciário, que obrigou o Executivo a fazer, a gente já vê o tamanho do problema.
Isso é algo que está acima das polícias. A gente tem duas questões que caminham juntas, a da disputa territorial e a da criminalidade urbana, dos crimes de ruas.
São fenômenos que andam separados, porque não é a mesma população vítima dos dois, mas um influencia o outro. E você pode escolher combater mais um ou outro.
No ano passado, a gente teve um aumento exponencial em crimes contra o patrimônio no Rio. Ao mesmo tempo, as disputas territoriais não têm arrefecido.
A gente não tem de fato um norte nessa forma de lidar com esse problema.
O início desse problema está no governo. Se o governo estivesse controlando crime de rua, colocando mais polícia no asfalto, eu estaria aqui falando: “Olha, aqui o governo escolheu uma batalha”.
Em 2024, houve um aumento surreal de quase 200% de roubo de rua, roubo a pedestre, em Laranjeiras, que é o bairro da sede do governo.
É um governo que de fato não deixa marca na segurança pública.
BBC News Brasil – Algumas lideranças da direita estão usando o termo “narcoterrorista”, até como uma pressão para Donald Trump decretar o PCC como uma organização terrorista. Mudar para a categoria de terrorista faz alguma diferença?
Rafael Soares – Há algum tempo, as polícias do Rio perceberam já que entraram nessa guerra comunicacional que a gente vive.
Aqui no Rio isso não é bem novidade. As polícias do Rio sabem trabalhar bem esses termos, como “narcocultura”.
Se você chamar de “traficante”, parece que é menos do que “narcotraficante”.
Há dez anos, começaram a chamar a “milícia” de “narcomilícia”, que é uma coisa que nunca ficou provada.
Meu trabalho é muito sobre milícias, eu trabalho muito mais investigando as forças de segurança. E até hoje eu tenho dificuldade, eu não consegui identificar ainda uma milícia que tenha entrado no negócio de varejo de droga.
Essa artimanha tem sido usada já há alguns anos pelas polícias do Rio.
Isso não começou de cima para baixo, começou de baixo pra cima — com os próprios policiais, os próprios delegados…
Eu comecei a ver muito isso em relatório policial, em sentença. Juiz dando sentença usando “narcoterroristas”.
Eu acho que você colocar nomes, isso não muda a realidade. A verdade é que a realidade não mudou.
O problema que a gente tem hoje no Rio de Janeiro é sim um problema amplificado nos últimos anos. O problema mudou de ordem: a gente tinha um problema há 20 anos e hoje ele se multiplicou. Mas ele só se multiplicou por conta da falência do Estado.
Essa tentativa de governantes e policiais de encontrar termos, ela é muito pra jogar a culpa do crime no crime. Quando pra mim, é justamente o contrário.
A gente fala muito de crime organizado e tal. O Comando Vermelho surge dentro de um presídio controlado pelo Estado, na Ilha Grande.
O PCC virou o PCC nos presídios federais. Foram decisões executivas de governos que acabaram transformando a situação no que a gente tem hoje.
A origem do crime está em decisões do Estado, em problemas do Estado.
O fato de existirem favelas e de o Complexo do Alemão ser hoje um bunker do Comando Vermelho só aconteceu por causa de décadas e décadas que aquele lugar foi ignorado pelo Estado. Não só pelas forças policiais, mas por tudo.
Um lugar que pra você levar água, gás, energia… O Estado nunca chegou lá. Nunca se preocupou em levar cidadania pras pessoas de lá.
E agora a gente fala que o problema são eles, os “narcoterroristas”. Eu acho que isso é só uma maneira de tentar jogar a culpa pros outros.
A gente vai começar a mudar um pouco e avançar nessa questão de combate ao crime organizado — uma maneira que eles adoram falar, “o combate ao crime organizado” — quando o Estado começar a entender a responsabilidade dele mesmo nesse processo, a partir do momento que você entender que as decisões que são tomadas pelo próprio Estado têm consequências que podem ser favoráveis ao crime.
A gente teve agora um governo que liberou fuzil pra civil [um decreto durante a presidência de Jair Bolsonaro, de 2019, inicialmente previu que civis pudessem adquirir o fuzil T4, calibre 556, de fabricação nacional, mas depois o governo recuou, embora outros tipos de armas tenham tido o acesso ampliado para a população].
E a gente tá agora dizendo: “Nossa, agora tem muito fuzil no mercado… Que coisa, barateou.”
Tem muita peça de fuzil no mercado ilegal. Nossa, que surpresa, né?
Tem muita munição no mercado ilegal.
Isso como se fossem os narcoterroristas que compraram, né?
Mas quem deixou? É muito complicado.
Enquanto a segurança pública for tratada como uma guerra dos bonzinhos contra os os mauzinhos, acabou. A gente não vai conseguir resolver o problema. O problema é muito mais complexo que isso.