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Em maio de 1972, dois homens entraram no Museu de Arte de Worcester em Massachusetts, nos Estados Unidos, e saíram carregando quatro quadros de Paul Gauguin (1848-1903), Pablo Picasso (1881-1973) e um suposto Rembrandt (1606-1669), que hoje se acredita ter sido obra de um de seus alunos.
Durante o assalto, eles mantiveram um grupo de estudantes do ensino médio que visitava o museu sob a mira de armas e atiraram em um segurança.
O valor das obras de arte roubadas atingiu US$ 2 milhões (cerca de R$ 10,8 milhões, pelo câmbio atual) e o jornal The New York Times classificou o assalto entre “os maiores roubos de arte dos tempos modernos”.
Naquela ocasião, os ladrões roubaram US$ 500 milhões (cerca de R$ 2,7 bilhões) em obras de arte, constituindo o roubo de maior valor na história dos Estados Unidos. O crime permanece sem solução até hoje.
O assalto de Worcester foi orquestrado pelo criminoso profissional Florian “Al” Monday, mas foi descoberto quando os dois ladrões contratados por ele para invadir o museu decidiram se gabar pelas suas façanhas no bar da região.
Em questão de um mês, os quadros foram recuperados com segurança em uma fazenda de criação de porcos no Estado americano de Rhode Island e devolvidos para a galeria.
“Ironicamente, Monday, antes de ser ladrão de arte, tinha uma banda e tenho o disco da sua gravação em 45 rpm”, contou à BBC a roteirista e diretora cinematográfica Kelly Reichardt.
Seu novo filme, The Mastermind, que estreou nos cinemas em outubro, é inspirado livremente na cadeia de eventos que se seguiu ao assalto de Worcester e na onda de roubos de arte verificada ao longo da década de 1970.

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O crítico de cinema do jornal britânico The Guardian, Peter Bradshaw, elogiou o filme por “eliminar o glamour do assalto”.
A profunda obra de Reichardt rompe com as normas comuns dos filmes que mostram crimes de forma luxuosa e sensacionalista.
Os filmes de sucesso, há muito tempo, popularizam a ideia de que existe algo requintado nesta categoria de crime, especialmente quando envolve obras de arte.
Um exemplo é a versão de 1999 de Thomas Crown: A Arte do Crime. Nele, Pierce Brosnan interpreta um bilionário muito gentil, que orquestra uma invasão ao Museu Metropolitano de Arte de Nova York, nos Estados Unidos.
A abordagem de Reichardt sobre o gênero adota um ritmo mais lento e um olhar mais rigoroso sobre a forma cataclísmica em que se desenvolve seu roubo de arte.
Josh O’Connor assume o papel-título, como o cérebro por trás da operação: JB Mooney, um jovem de classe média com boa educação, que abandonou a escola de artes e enfrenta dificuldades como carpinteiro desempregado em Massachusetts.
Sob pressão dos seus pais abastados para pagar seus empréstimos (um juiz aposentado, interpretado por Bill Camp, e uma socialite, Hope Davis), ele examina a possibilidade de assaltar o fictício Museu de Arte de Framingham.
Mas, quando um dos seus capangas pergunta como ele pretende vender as pinturas roubadas (o que seria difícil, por serem facilmente reconhecíveis), o esquema começa a dar errado.

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Reichardt encontrou uma reportagem sobre o 50° aniversário do assalto ao Museu de Arte de Worcester, enquanto trabalhava no seu filme anterior, Esculturas da Vida (2022), uma mistura de drama e comédia sobre duas escultoras rivais.
Ela decidiu usar a história como base para seu próximo filme e tudo o que faltava era criar o personagem JB.
“As ideias políticas, as ideias de gênero… são coisas que você pensa e estuda”, explica Reichardt, “mas você precisa abandonar tudo isso e se concentrar nos detalhes do filme que está produzindo e na situação que o seu personagem enfrenta.”
“Se você começar a se aprofundar nas minúcias e não se concentrar nos traços maiores, naturalmente ele perde o glamour.”
Ler sobre o assalto de 1972 despertou em Reichardt lembranças dos “muitos assaltos relâmpagos da época”, que apareciam com frequência nas manchetes dos jornais.
Poucos meses depois do assalto ao Museu de Arte de Worcester, ocorreu no Canadá um roubo que ficou conhecido como o “crime da claraboia”.
Três assaltantes armados invadiram o Museu de Belas Artes de Montreal. Eles levaram US$ 2 milhões (cerca de R$ 10,8 milhões, pelo câmbio atual) em quadros, joias e objetos de valor, no que se tornou o maior assalto da história do país.
No outro lado do Atlântico, em 1976, três ladrões furtaram 119 dos últimos quadros de Picasso do Palácio dos Papas em Avignon, no sul da França. As obras estavam em uma exposição temporária.

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Houve também o caso de Rose Dugdale (1941-2024), herdeira formada na Universidade de Oxford, no Reino Unido, que passou a ser uma aguerrida republicana irlandesa. Sua vida foi retratada no filme Baltimore (2023), de Joe Lawlor e Christine Molloy.
Em 1974, ao lado de vários membros do Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês), ela roubou 19 quadros de artistas como Johannes Vermeer (1632-1675) e Peter Paul Rubens (1577-1640) da Russborough House, no leste da Irlanda. Ela manteve as obras em seu poder, aguardando a libertação de membros do IRA que estavam na prisão.
Lawlor declarou ao portal Cineuropa que o assalto “foi incrivelmente bem organizado, mas muito mal idealizado. Eles são muito determinados, mas ignoram completamente a realidade política como um todo.”
A história dos roubos de arte
Eles incluem o roubo por piratas do tríptico O Juízo Final, de Hans Memling (c.1435-1494), em 1473. A obra estava em um navio que seguia para Florença, na Itália.
Já o início do século 20 foi marcado pelo infame roubo da Mona Lisa do Museu do Louvre, em Paris (França) em 1911. O autor do furto foi Vincenzo Peruggia (1881-1925), um amargurado ex-funcionário do local.
Peruggia foi capturado dois anos depois e cumpriu uma sentença de prisão de apenas seis meses.
Mas o assalto de Massachusetts, inegavelmente, gerou uma mudança radical na indústria do roubo de obras de arte.
O historiador de arte Tom Flynn afirma que o pico dos assaltos nos anos 1970 “coincide com o boom do mercado de arte”.
Ele cita o lançamento do programa de TV Antiques Roadshow, da BBC, em 1977, e sua grande popularidade. Nele, uma equipe de especialistas avalia objetos e obras de arte. O programa segue no ar até hoje.
Flynn destaca que “se trata de uma mudança cultural, quando começamos a observar obras de arte como sinônimo de dinheiro”.
Paralelamente, os criminosos ficaram cada vez mais conscientes da falta de solidez da segurança dos museus, que fazia com que as obras de arte parecessem um alvo fácil.
Reportagens da imprensa publicadas no início dos anos 1970 alertavam sobre “crises” no financiamento dos museus e cortes nos custos de segurança, particularmente em meio ao aumento da inflação.
Houve assaltos em menor escala, como o roubo do retrato do duque de Wellington, pintado por Francisco de Goya (1746-1828), da Galeria Nacional de Londres em 1961, e o desaparecimento de três Rembrandts em 1966, da Galeria de Imagens de Dulwich, também na capital britânica.
Estes roubos menores mostravam como poderia ser simples retirar uma pintura das paredes de uma galeria sem ser notado.
Como o guarda que ficou ferido durante durante o assalto ao Museu de Arte de Worcester, os funcionários da segurança dos museus raramente portavam armas.
E, como foram sarcasticamente retratados em The Mastermind, eles poderiam, muitas vezes, ser “aposentados” dorminhocos ou “alucinados”, como define Reichardt, com pouco treinamento.
“Os museus costumavam ter aquelas belas entradas circulares na frente, que facilitavam muito a fuga”, ela conta.
Seu filme ambientado nos anos 1970 apresenta um investigador de crimes de arte do FBI. Ele relembra o agente da vida real Robert Wittman, que recuperou US$ 300 milhões (cerca de R$ 1,6 bilhão) em obras de arte ao longo da carreira.
Mas a verdadeira Equipe de Crimes de Arte do FBI só foi criada em 2004.

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Mas, como observa Flynn, embora os museus possam ter demorado para levar em conta os roubos de obras de arte no passado, os ladrões, de forma geral, também não demonstraram grande perspicácia.
“A história dos crimes de arte e dos grandes roubos de arte é uma história de idiotas oportunistas que, na verdade, não compreendem a própria natureza das obras de arte”, afirma ele, em referência ao seu potencial de dano, “nem mesmo o mercado de obras de arte.”
“[No fim] esses caras acabam descobrindo, horrorizados, que é muito difícil negociar os objetos que eles roubaram.”
O encanto do ladrão de arte
Nos anos 1960 e 1970, também começou a surgir o arquétipo do ladrão de arte da ficção, como um adorável vigarista.
A instabilidade causada nos Estados Unidos pela Guerra do Vietnã (1959-1975, com participação dos EUA a partir de 1965) e pelo governo Nixon (1969-1974) fez com que a desilusão e o descontentamento atingissem altos níveis, especialmente entre os jovens americanos.
Paralelamente, diversos filmes de Hollywood ajudaram a glamourizar estes personagens. Topkapi (1964), por exemplo, mostra um grupo de ladrões de arte que tenta assaltar um palácio em Istambul, na Turquia.
Em Como Roubar Um Milhão de Dólares (1966), Audrey Hepburn (1929-1993) e Peter O’Toole (1932-2013) planejam um assalto com fins altruístas. E Como Possuir Lissu (1966) traz Michael Caine como um ousado ladrão, que rouba um busto antigo.
A escritora de história Susan Ronald, especializada em crimes de arte, afirma que a ascensão do ladrão de arte na cultura popular reflete a mentalidade de desafio às autoridades da época.
“Parte [do apelo desses personagens] é que [eles] ludibriam o establishment”, explica ela.
“O fato de que os roubos de arte não envolvem indivíduos específicos faz com que eles sejam mais aceitáveis. É algo contra uma instituição e existe algo de muito arrojado nisso.”
Talvez tenha sido, em parte, devido a essa glorificação dos ladrões de obras de arte que se estabeleceram conceitos errôneos sobre este tipo de roubo, como a ideia de que eles sejam “crimes sem vítimas”.
“Nós não os levamos muito a sério”, segundo Flynn. “Por isso, os criminosos, muitas vezes, recebem sentenças ridículas [curtas], se considerarmos que eles cometeram sérios crimes culturais. Mas, como se trata de arte, não achamos que seja algo tão importante.”

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The Mastermind se esforça de várias formas para alterar as enraizadas ideias sobre os ladrões de arte.
Desde Caine em Como Possuir Lissu até Alain Delon (1935-2024) em O Círculo Vermelho (1970), de Jean-Pierre Melville, essa figura costumava ser representada como um galã nos filmes da época.
Mas, com JB, Reichardt espera subverter isso. Para ela, “esses caras [na verdade] são muito idiotas. Eles são misóginos. Eles podem invadir e fazer o que quiserem.”
“A simples ideia de poder ser o fora-da-lei é um privilégio e, no final, você torce por eles, é simplesmente uma narrativa.”

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Temos um ponto de vista atenuante do caráter de JB através da sua esposa Terri (Alana Haim), que sofre há muito tempo com ele, e da indiferente colega de faculdade Maude (Gaby Hoffman). Ambas o forçaram a abandonar seu comportamento.
“Existe, às vezes, outro olhar mais objetivo sobre ele, através das mulheres da vida de JB, com quem ele pode contar, que sofrem com a sua liberdade”, explica Reichardt.
“As liberdades pessoais são um tema tão importante na política americana hoje em dia, mas a que custo e quem paga o preço?”
Atualmente, os roubos de galerias e museus públicos são muito menos frequentes. Para Flynn, os criminosos agora “compreendem que são objetos essencialmente não comercializáveis”.
Mas o recente assalto ao Museu do Louvre mostrou que este tipo de crime ainda acontece. E os recentes cortes de verbas anunciados pelo governo americano poderão gerar novos problemas para a segurança dos museus no futuro.
Mas as pinturas, hoje em dia, enfrentam ameaças maiores, segundo o consultor de patrimônio Vernon Rapley.
“Não é só a segurança que será prejudicada, mas a própria estrutura dos edifícios”, explica ele.
“Na verdade, se você não investir nos seus telhados e janelas, em última análise, o tempo e as mudanças climáticas provavelmente representam maiores riscos aos objetos que os criminosos.”
The Mastermind está em cartaz nos cinemas brasileiros.