Há cerca de 2.000 anos, um ritual macabro era praticado no nordeste da Península Ibérica, região da atual Catalunha, na Espanha. Em diversos assentamentos, os crânios dos mortos eram exibidos publicamente — em varandas, muros e estacas. O mais perturbador: alguns tinham pregos de ferro cravados neles.
- Quando o medo não acaba: 10 finais de filmes de terror que deram o que falar e deixaram o público em choque; veja os trailers
Dezenas desses crânios, datados da Idade do Ferro — entre 800 a.C. e 218 a.C. —, foram encontrados na região desde 1904. As teorias sobre sua origem se dividem: alguns pesquisadores acreditam que eram relíquias veneradas; outros, que se tratava de troféus de guerra usados para intimidar rivais.
Novas análises desafiam teorias antigas
Em artigo publicado no Journal of Archaeological Science, o arqueólogo Rubén de la Fuente-Seoane, da Universidade Autônoma de Barcelona, argumenta que essas explicações são simplistas. Segundo ele, o significado dos crânios variava conforme a origem das vítimas e o local onde foram expostos. “Nosso estudo mostra que pode ser um erro ter que escolher apenas uma opção”, afirmou.
A equipe do pesquisador analisou sete crânios encontrados em dois antigos assentamentos da Península Ibérica: Puig Castellar e Ullastret. Ambos foram fundados por volta do século VI a.C., período marcado pelo aumento da violência política, evidenciada pelo surgimento de armas em sepultamentos e por ferimentos fatais — incluindo decapitações — em restos mortais. Entre 350 a.C. e 200 a.C., a vila de La Hoya, no norte da Península, foi destruída em um massacre de motivação política, segundo evidências arqueológicas.
Escavações realizadas em 2020 indicam que os atacantes incendiaram a aldeia, deixando corpos de homens, mulheres e crianças onde caíram. Exames mostraram ferimentos provocados por armas de metal, com algumas vítimas decapitadas ou desmembradas. Objetos de valor foram deixados para trás, levando os pesquisadores a suspeitar que o ataque foi uma tentativa de eliminar completamente a comunidade e dominar o território.
Puig Castellar foi erguido em uma colina com vista para o mar, enquanto Ullastret ficava no interior e era a capital do território conhecido como Indiketes. Ambos os locais foram abandonados no fim do século III ou início do II a.C., provavelmente em consequência da invasão romana.
Entre veneração e intimidação
Para determinar a origem dos crânios, a equipe de De la Fuente-Seoane analisou a composição isotópica dos dentes, o que permite identificar se os indivíduos eram locais ou estrangeiros. Crânios de moradores, acredita-se, eram preservados em reverência; os de forasteiros, exibidos como troféus de guerra.
Os isótopos de estrôncio presentes no esmalte dentário refletem a geologia da região onde uma pessoa cresceu, funcionando como uma espécie de “assinatura geográfica”. Já os isótopos de oxigênio, obtidos da água consumida, ajudam a identificar condições ambientais como temperatura, altitude e proximidade do mar. Juntos, esses dados permitem traçar a origem e os deslocamentos de um indivíduo.
O método foi aplicado em quatro crânios expostos nas paredes externas e na entrada principal de Puig Castellar. Três deles — de um adolescente e dois adultos com menos de 35 anos — eram de origem externa. O quarto, de idade desconhecida, pertencia a um morador local. Para o arqueólogo, a exibição dos restos mortais de estrangeiros em locais de destaque servia como demonstração de força, uma advertência a inimigos.
Já em Ullastret, a análise de três crânios com pregos de ferro revelou diferenças no tratamento pós-morte. Dois pertenciam a habitantes locais e estavam expostos em residências, possivelmente como forma de homenagear membros respeitados da comunidade. O terceiro, de origem estrangeira, foi encontrado em uma vala fora dos muros, o que sugere um troféu militar de menor visibilidade.
“Alguns textos clássicos mencionam o uso de óleo de cedro para preservar cabeças usadas como troféus”, observou De la Fuente-Seoane. No entanto, um estudo de 2016 que buscou traços dessa substância em crânios de Ullastret não encontrou evidências.
O pesquisador pondera que o crânio estrangeiro pode ter relação com práticas gaulesas, nas quais cabeças eram usadas como oferendas religiosas e armazenadas em fossos. Ele ressalta, contudo, que mais estudos são necessários para confirmar essa hipótese.
Jordi Principal, diretor do Museu de História da Catalunha, afirmou que ficou surpreso ao saber que as duas interpretações — culto reverente e troféu de guerra — não se excluem. “As evidências sugerem que nem todas as tribos enxergavam a prática da mesma forma, o que dependia do contexto sociocultural de cada comunidade”, disse. Ainda assim, ele acrescentou, a exibição dos crânios parecia cumprir um propósito comum: expressar e projetar poder.