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terça-feira, dezembro 16, 2025

Um desconfiado na contramão do capitalismo – Revista Cult

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“Cultura e política, 1964-1969” foi publicado em francês na revista Les Temps modernes, de Jean-Paul Sartre, em 1970, quando Roberto Schwarz estava exilado em Paris. O ensaio se tornou matriz inspiradora de interpretações sobre a relação entre cultura e política no Brasil nos anos 1960. E referência, pois qualquer estudo sério sobre o assunto deve dialogar com ele. Um clássico que persiste além do seu contexto. Mas nem por isso deixa de ser objeto de análise como documento histórico, expressão de época.

A historiografia tem tomado a obra nessas duas vertentes, não necessariamente alternativas: matriz analítica referencial e documento. A consciência do seu caráter incontornável não raro faz com que leituras apressadas propaguem mal-entendidos.

A hegemonia relativa de esquerda

Eis a frase mais citada: “Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país”. Esses termos com frequência levam ao equívoco interpretativo – que o texto não comete – de supor que a cultura predominante fosse de esquerda. Ora, a hegemonia era “relativa” a certo meio artístico e intelectual, não ao conjunto da sociedade. Isto é, apesar de muitos serem de esquerda, “as matérias que preparam, de um lado, para as comissões do governo ou do grande capital, e, de outro, para as rádios, televisões e jornais do país, não são”.

Ademais, seria “de esquerda somente a matéria que o grupo – numeroso a ponto de formar um bom mercado – produz para consumo próprio”. Essa frase indica a consciência amarga que perpassa todo o texto, de que a lógica mercantil também já se impunha na esfera da cultura. Em suma, apenas uma parte da produção dos anos 1960 tinha pretensões transformadoras. Ainda que expressiva e destacada qualitativamente, não era majoritária e estava enredada na lógica em consolidação da indústria cultural, termo que não aparece, mas se faz subjacente à argumentação.

Assim, ao tratar da hegemonia relativa de esquerda nos meios intelectuais e artísticos, Schwarz não se referia ao conjunto da cultura brasileira. Seu objeto era a produção restrita, mas significativa, comprometida com visões de mundo críticas do capitalismo. Estava presente com força inédita na universidade, na imprensa e nas obras de cinema, teatro, literatura, música popular, artes plásticas e arquitetura, algumas das quais comentadas no texto.

Populismo, ditadura, Tropicalismo

A primeira frase do ensaio expressa o alinhamento com a interpretação corrente na época nos meios intelectuais e políticos de esquerda: “Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo”. O autor não foi o primeiro a criticar o nacional-desenvolvimentismo e “o governo populista de Goulart” por não terem resistido ao golpe que reprimiu duramente os derrotados, em especial os trabalhadores.

A novidade estava em associar essa interpretação com o que se passava no âmbito da cultura, criando a matriz explicativa que se tornaria referência analítica: o golpe de 1964 se contentou em cortar “as pontes entre o movimento cultural e as massas” trabalhadoras. Entretanto, não impediu a difusão teórica e artística do ideário de esquerda, que deu origem ao florescimento cultural inesperado, embora restrito aos setores intelectualizados, em particular entre os estudantes. Eles constituíram um movimento de massa anticapitalista, e os governantes se viram ameaçados, acirrando sua atuação censória e repressiva ao editar o Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968.

A crítica de Schwarz se dirigia à ditadura e ao “populismo nacionalista” do governo deposto. Não poupava a proposta do Partido Comunista de aliança com a burguesia nacional para se opor ao imperialismo e à direita latifundiária, gerando “uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico”, aliado aos populistas. Sobravam farpas ainda aos “simulacros cristãos do marxismo”, aos nacionalistas modernizadores, enfim, à atmosfera ideológica predominante nas esquerdas antes de 1964. Elas, entretanto, foram responsáveis pelo período de “Aufklärung popular”, identificando o imperialismo com a reação interna, apesar da pouca ênfase à luta de classes e à expropriação do capital.

Nesse clima – aqui uma novidade do argumento –, detectava-se certa “disparidade entre as práticas reformistas e seus resultados culturais”, que poderiam romper com os limites do “sistema de conciliações”, ao perceber a “inviabilidade do reformismo e de seu caráter mistificador”. Algo presente, por exemplo, no Movimento de Cultura Popular em Pernambuco e no uso do método de alfabetização de Paulo Freire, ou ainda na estética da fome do cineasta Glauber Rocha. Expressões de uma época em que “o país estava irreconhecivelmente inteligente”, interrompida pelo golpe de 1964.

O ensaio foi dos primeiros a apontar o caráter modernizante da ditadura, embora articulada com os setores mais retrógrados das classes dominantes, compondo a mistura de desenvolvimento com subdesenvolvimento, do moderno com o arcaico, que tem caraterizado o capitalismo no Brasil. Aspecto que também se via nas obras dos tropicalistas, que encontraram no texto de Schwarz o questionamento mais contundente já elaborado ao seu movimento. Ele apontava suas ambiguidades e tensões, na “conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contrarrevolução cristalizou”. De par com a “crítica social violenta”, haveria um “comercialismo atirado”, em sintonia com a moda internacional.

Documento histórico da esquerda intelectual revolucionária

Para compreender as formulações, cabe situá-las no contexto em que foram concebidas, mirando o ensaio como valioso documento de época, sem prejuízo de sua contribuição interpretativa. Ele foi escrito na perspectiva de quem se via no olho do furacão revolucionário em refluxo, na vertigem do exilado recém-saído do Brasil que gostaria de fincar novamente os pés no chão social que se esvaía. Um texto de combate contra a ditadura e o populismo, com uma proposta subjacente: avançar no processo revolucionário socialista e na democratização da arte, sem baratear a linguagem. Expressa a cultura da derrota após o golpe de 1964, a exemplo de filmes como O desafio, de Paulo César Saraceni, Terra em transe, de Glauber Rocha, e dos romances Quarup, de Antonio Callado, e Pessach, a travessia, de Carlos Heitor Cony. Obras a expor a angústia e os dilemas de intelectuais e artistas derrotados pelo golpe, a indagar-se sobre os rumos a seguir.

Naquele momento, Schwarz era um jovem professor universitário de literatura, bem próximo das organizações que faziam a “propaganda armada da revolução”, para usar os termos do ensaio. Antes, fora aluno de ciências sociais na tradicional Universidade de São Paulo, onde fez parte do grupo de acadêmicos que renovou teoricamente o marxismo no Brasil com seu seminário d’O capital. Formados na busca de cientificidade, tiveram quase nenhuma militância e pouca identificação com a cultura política trabalhista e os governos considerados populistas, tão enraizados, por exemplo, no Rio de Janeiro.

O grupo fazia crítica cerrada à leitura de Marx pelo Partido Comunista e também ao processo político regido pelos governos populistas. Dois de seus integrantes, Ianni e Weffort, viriam a escrever obras no calor da hora sobre o populismo no Brasil e seu colapso, expressando com método críticas difusas no meio em que Schwarz vivia, já então integrando o segundo seminário d’O capital, bem mais politizado. Estava ao lado dos antigos companheiros Francisco Weffort e Paul Singer, e dos novos Sérgio Ferro, João Quartim, Emir Sader, Ruy Fausto, Emília Viotti, Betty Milan e outros, alguns ligados a organizações da esquerda armada. Schwarz liderou a revista do grupo, Teoria e Prática, empenhada em discutir em todos os âmbitos o futuro da revolução.

Havia disputa no meio cultural entre os críticos ao populismo, apontando caminhos distintos. Um deles poderia ser integrar-se ao sistema, mesmo se situando criticamente diante da ditadura. A contestação ao populismo poderia não significar superá-lo para atingir um nível superior de luta política e democratização cultural, mas, sim, distanciar-se do compromisso com a politização popular e a revolução, como o texto deixa subjacente. Era o que Schwarz via na abordagem tropicalista, crítica do absurdo da geleia geral brasileira, mas pronta a inserir-se nela e em sua indústria cultural, como se fosse algo inexorável, inerente à identidade do país.

O ensaio termina com a mesma “sabedoria literária” atribuída ao fim inconcluso do romance Quarup, em que o personagem principal se despe de sua “profissão e posição social”, buscando integrar-se à luta do povo. Os capítulos seguintes da história confirmaram a derrota da revolução, mas nem por isso Roberto Schwarz desistiu de remar na contracorrente, inspirando os que seguem críticos do capitalismo e empenhados na luta pela emancipação social.

Marcelo Ridenti é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas. Seus livros mais recentes são O segredo das senhoras americanas: Intelectuais, internacionalização e financiamento na guerra fria cultural (Editora Unesp, 2022) e o romance histórico Arrigo (Boitempo, 2023)

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