Camila Tuon
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Poucos minutos com Morena Leite já são suficientes para entender que acompanhar seu ritmo não é tarefa fácil. Agitada e enérgica, quase um furacão, na tarde ensolarada que passou com a Forbes no Capim Santo (seu restaurante-oásis na Faria Lima), a chef está de olho em tudo: entre cliques e perguntas, cumprimenta clientes, dá checks em planilhas, fala com o staff e confere se todos os detalhes estão tinindo na linha de produção de seus próximos buffets. Mesmo parada, as ideias fervilham, a mente corre solta, sempre em busca de novas conexões, inspirações e sabores.
“A Morena é incansável, ela tem muita garra de fazer”, sintetiza a mãe, a cozinheira e arquiteta Sandra Marques, que acompanha a nossa conversa. Calma e longe dos holofotes, a matriarca do grupo Capim Santo é o oposto complementar da filha e não esconde o orgulho da trajetória dessa força da natureza que criou entre panelas, praias e pomares, em uma Trancoso rústica, quase sem energia elétrica, refúgio de hippies no início dos anos 1980.
Sandra e o então marido, Nando Leite, desembarcaram no sul da Bahia de furgão, com a filha de quatro anos, em 1978. Com talento na cozinha e simpatia (capaz de conquistar até Caetano Veloso com suas quentinhas), o casal abriu um restaurante e, pouco depois, uma pousada. Em janeiro de 1985, nascia oficialmente o Capim Santo, ali pertinho do Quadrado uma história de comunidade e carinho que segue firme por quatro décadas, hoje capitaneada por Morena.
Com 45 anos, a paulista de alma baiana e curiosidade nômade lidera mais de 500 colaboradores; duas pousadas e restaurantes em Trancoso; três endereços em São Paulo; um braço de eventos que já realizou 40 mil caterings em duas décadas (mil deles previstos só para 2025). Seu Instituto Capim Santo já formou 13 mil alunos em gastronomia; no setor escolar, serve diariamente 9 mil refeições no Colégio São Luís e na Beacon School, em São Paulo. Arranja tempo ainda para o Capim Empresa: alimentação corporativa de gigantes como Johnson & Johnson e Serasa.

Camila Tuon
Morena pode até ser chef nômade, mas suas raízes sempre estarão em Trancoso, onde a mãe Sandra ainda mora
Hoje, Morena figura entre as chefs mais badaladas da sociedade paulista. Seus pratos brasileiríssimos alcançaram mesas improváveis: da realeza árabe a Taylor Swift e Joe Biden – a quem serviu rubacão, pirarucu e bolo de rolo durante o encontro do G20 no Rio, em 2024. Ela transita entre chefes de Estado e vilarejos de pescadores com a mesma leveza: sempre de uniforme verde e branco, vestida com a crença inabalável de que a comida pode mudar vidas. O coração está em Trancoso, mas a alma é do mundo. Entre visitas mensais à Bahia e viagens mil (no segundo semestre, já passou por Paris, Londres, Porto, Itália e Belém do Pará, para a COP30), a chef fez uma pausa para receber a Forbes e falar sobre os 40 anos do Capim Santo, planos para o futuro e as paixões que a movem.
Confira a seguir o melhor da conversa com Morena Leite:
Forbes – Qual é a sua primeira memória de Trancoso?
Morena Leite – Tem uma foto de que lembro muito: eu criança, no meio do Quadrado, brincando embaixo de um pé de eugênia. Era uma sensação de comunidade, de uma aldeia para criar uma criança. Me vejo nisso: na forte referência familiar, canceriana do meu pai e da minha mãe. Nós éramos um primeiro núcleo sanguíneo pequeno, porque eles tinham vindo sozinhos do interior de São Paulo, mas os amigos dos meus pais se tornaram a minha família. Trancoso naquela época era uma esquininha do mundo, tinha vizinho que vinha do Alasca, da Índia, da Noruega. Desde cedo, eu desenvolvi uma curiosidade pelo mundo. Uma memória afetiva muito forte que tenho é dos meus aniversários, em junho, que fazíamos uma festa junina do quintal, com muito milho, doces de amendoim…
Lembra do primeiro prato que aprendeu a fazer?
Tem um frango que a minha mãe fazia, empanado e recheado com requeijão cremoso, acompanhado de uma salada de cenoura, milho, batata-palha. Isso para mim tem o gosto da minha infância, é um abraço. E comecei a fazer quando levava meus amigos para comer lá em casa, quando era dia de festa. Uma vez veio a minha sala inteira para comer; era o prato de receber.
Qual foi a lição mais preciosa que aprendeu de seus pais?
Estar atenta ao próximo e não se sentir nem superior nem inferior a ninguém. Lembro quando eu era pequenininha, com uns sete anos, a gente estava na praia de Trancoso brincando e um menino virou e falou: “Quando eu nasci, meu pai foi me buscar no hospital com um Jaguar.” Minha amiguinha virou e falou: “Que é isso, um jegue?” Todo mundo riu, porque lá tanto faz qual escola você estudou, qual o seu sobrenome, qual a marca da sua blusa, sua origem – importa se você é simpático, se você corre, se você nada bem, se você pula, se você é legal.
De que forma os 40 anos do Capim Santo ressoam para você e o que esperar dos próximos 40?
Foi um sonho que começou sendo dos meus pais e que hoje é o meu. Não sinto que estou fazendo uma coisa deles, também é a minha, é o que eu respiro. Essas quatro décadas foram de uma construção de vínculos entre a nossa família, colaboradores, clientes e amigos. Para os próximos anos, espero que as minhas filhas e meus sobrinhos consigam ser felizes, porque eles vêm de avós e pais realizadores e felizes. Que eles consigam seguir o seu caminho e honrar tudo o que foi construído, da hospitalidade, de receber, cuidar e servir as pessoas. A gente tem prazer em deixar o próximo bem.
E para a gastronomia?
Espero que a gente consiga continuar sendo autêntico, valorizando essas raízes que a minha mãe trouxe de saudabilidade – o que comemos é um reflexo do que somos. Ela sempre foi naturalista, macrobiótica, antroposófica. Gostava dessa coisa da comida do quintal, das PANCs [plantas alimentícias não convencionais], de plantar.
O Instituto Capim Santo já capacitou 13 mil alunos. Ele é o seu legado?
A cozinha é uma maçaneta para o mundo. Já aconteceu, por exemplo, de eu visitar um projeto social na comunidade, sentir um arrepio com a comida e depois saber que a menina da cozinha tinha se formado no ICS em uma das primeiras turmas, 13 anos antes. É lindo ver como a gastronomia é capaz de impactar e mudar vidas. Mas o instituto é apenas uma parte do meu legado. Meu legado se estende às pessoas que trabalham comigo, dentro e fora da minha casa, meus clientes, colegas. Eu acordo sempre pensando em como posso fazer melhor hoje do que fiz ontem. Acho que somos capazes de evoluir e contagiar – no sorriso, na atitude, aprendendo a se desculpar. Meu legado é a minha vida. Gosto de ser turista, curiosa, descobrir, de ser cobaia, de experimentar e depois ser guia e compartilhar. O lema é conhecer, conectar e compartilhar.
Como você descreveria seu atual momento de vida?
Minha fase atual é de lidar com a maturidade de ver o filho crescer. O Capim Santo sempre foi muito artesanal e humano. Mas hoje nós somos 500 colaboradores, com vários braços, então não consigo mais fazer e ver tudo o que acontece. E acho que o meu papel é de fazer essa fusão: de ser artesanal, amoroso, carinhoso, mas com processos adequados para o nosso tamanho de agora. É um desafio constante, uma dor de crescimento mesmo, que vem com sentimento de culpa. Mas preciso controlar minha ansiedade e dar autonomia para os gestores. Hoje invisto mais no meu time do que no cliente, porque são eles que vão replicar meu trabalho.
Você fala que nunca sai de férias, mas sempre está de férias.
Exatamente, essa sou eu: sempre e nunca trabalhando. Sou uma pessoa que acordo, durmo e sonho com o trabalho. Aqui com você, por exemplo, não me sinto trabalhando, estou batendo um papo, sentindo a sua energia e sendo feliz. Porque mais do que comida, eu gosto de pessoas. Adoro conhecer gente, adoro fazer com que elas se sintam bem. Durmo quatro, cinco horas por noite, e o resto do tempo estou sempre aprendendo, vendo novidades, me inspirando, tendo insights. Esses dias eu estava num batizado, vi um convidado com uma camisa linda, já tirei foto e mandei fazer de uniforme (risos).
Pratica algum esporte, medita?
Meditação não. Eu vou e volto com a coisa do esporte, porque a agenda de acordar em um lugar e dormir no outro complica; não existe rotina. Corro bastante, onde quer que esteja, gosto de pilates, de me alongar, só não tenho uma regularidade. Posso não ir à academia, mas estou sempre em movimento: abaixo, levanto, pego uma panela aqui, faço outra coisa ali, tenho flexibilidade, alongamento. É algo que vi sobre as Zonas Azuis [áreas de expectativa de vida alta graças à alimentação saudável e à rotina ativa] do mundo.
E nesse turbilhão de tarefas, quanto tempo passa na cozinha de fato?
Bem pouco tempo. Tenho uma casa de experiências em Trancoso, a Alma Ninho, que é onde eu consigo cozinhar, sinto falta do fogão. Como alguém que gosta de falar e agradar as pessoas, a cozinha foi minha ferramenta de comunicação. No dia a dia em São Paulo, confesso que passo o dia em reunião – com o cliente, o time, supervisionando e rodando as operações, experimentando. Tenho um exército de pessoas muito boas.
Depois de tantos caterings especiais, ainda sente adrenalina ou nervosismo?
Sim. Sinto frio na barriga, palpitação, não durmo antes de um grande evento. O G20 [em novembro de 2024], para 300 pessoas, foi o segundo maior evento de chefes de Estado que já aconteceu no Brasil. Eu estava tensa. Cozinhei ao lado do segurança do [Joe] Biden: cada refogada de cebola eu tinha que provar e ele também. Nessas ocasiões, me programo tecnicamente, treino, mas conto com a sorte: acendo uma vela, rezo para os meus orixás à noite, porque dependo de centenas de pessoas – até 300 funcionários. Se um deles fizer uma coisa errada, pode acabar com o evento. No fim das contas, tudo pode acontecer.
Qual é a sua intenção de mostrar o Brasil quando cozinha para chefes de Estado e estrangeiros?
Gosto de mostrar através da tropicalidade e da floresta. No evento do presidente Macron no Itamaraty [em março do ano passado], fiz moqueca de ovo e ravioli de tapioca com queijo da Canastra. Minha mãe me deu uma bronca: “Não acredito que você vai fazer isso”, ela disse sobre o ovo. Respondi que, em um país onde 30 milhões de pessoas passam fome, eu não queria fazer com camarão. Era para ser mais democrático. A moqueca de ovo é uma iguaria quando bem-feita, e foi lindo.
Mini-acarajé
Prestes a completar 45 anos, o que ainda quer conquistar?
Não faço muitos planos. As coisas vêm, acontecem. Como quis fazer comida em escolas? Não quis, fui convidada. Como veio para o Museu da Casa Brasileira? Fui convidada. Corro atrás, trabalho. Mas hoje me sinto muito realizada com tudo que eu já fiz profissionalmente. Uma das minhas maiores missões agora é com as minhas filhas, uma de 15 e outra de 5 anos. É ajudá-las a trilhar esse percurso de integridade, felicidade, entendendo e respeitando o ser de cada uma. Eu sou supercontroladora, mas sei que não tenho controle sobre a vida da Manuela e da Júlia. O que eu puder apoiar, orientar e aprender como mãe, estarei lá.
Você é uma pessoa religiosa?
Sou superespiritualizada. Acredito nessa força do planeta, da energia cósmica, e tudo que a gente faz, a gente emana e volta. Uma coisa meio [do filósofo Baruch] Spinoza: Deus é o raio de sol, a chuva, a árvore, o passarinho. Gosto dos rituais de comer, de estar junto, de rezar na hora que acordo e agradecer. Vou na Igreja Católica, no candomblé, no bahá’i. Fiz Cabala, fui no budismo, morei em Bali e fui às cerimônias hindus. Eu vivo intensamente cada momento e cada segundo. Acho que é uma coisa meio baiana, né? A gente está ali na Igreja cultuando Santa Bárbara e Iansã juntas. Eu sou Deus, Deus sou eu.
O que gosta de ler, ouvir, assistir?
Vou te dizer que leio pouco. Eu tenho uma casa talhada de livros de cozinha, que vejo a capa, dou uma folheada. Tô tão vivendo que não ligo muito em parar para ler ou assistir a uma televisão. Vejo um pedacinho de filme nos meus voos, mas logo eu capoto. E a música só podia ser brasileira. Minha filha de 5 anos normalmente acorda e já fala: “Alexa, tocar Caetano Veloso” (risos). A gente cresceu ouvindo MPB, bossa nova, Bebel Gilberto e mais em casa.
Passa pela sua cabeça só ir pra Trancoso e nunca mais sair dali?
Talvez. Vou bastante para lá, e especialmente desde a pandemia retomei uma relação muito próxima. Saí de Trancoso com 15 anos, morei na França, na Inglaterra, em São Paulo. Ficava indo e vindo, sempre no Natal e aniversários, e recentemente passei uns anos morando lá com as minhas filhas. Sou canceriana superritualística, então agora vou toda lua cheia para lá com a Manuela e a Júlia, para estar perto dos meus pais e comemorar os 40 anos. Ali é o meu ninho e, quando as meninas estiverem maiores, é bem provável que eu esteja cada vez mais lá.
[A mãe, Sandra, ouve a resposta até o final e solta um “Mas duvido que fique quieta ali, viu?”, arrancando risadas.]
Entrevista publicada na edição 130 da revista, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.




