Crédito, Vitor Serrano/BBC
O sol a pino do meio-dia de Belém acompanhava todos dias o caminho da mãe de João Victor da Silva, Lene. Da ilha de Caratateua, onde morava, até o centro da cidade, onde trabalhava numa farmácia, eram quase duas horas de raios de sol e calor. Lene sentia literalmente na pele.
Primeiro, apareceu um sinal, mas ela não teve tempo de cuidar. Depois, o sinal começou a sangrar e foi preciso fazer um exame. O resultado mostraria ser um câncer de pele, já espalhado pelo corpo da paraense.
João, hoje um adolescente de 16 anos, não lembra nem da voz da mãe, mas conta a história dela para explicar como ele virou “João do Clima”, e uma presença garantida em eventos que discutem as mudanças climáticas em Belém, inclusive a COP30, que se encerra nesta semana.
“Eu digo que ela faleceu diante das desigualdades sociais e das mudanças climáticas”, conta João.
“Para mim, o câncer de pele dela está relacionado a algo maior.”
Em Belém, a chamada “desigualdade climática”, que é como o clima afeta diferentes grupos sociais de maneiras distintas, pode ser sentida a uma esquina de distância.
A cidade, no meio da floresta, é a sexta capital do Brasil com mais pessoas vivendo em ruas sem uma única árvore, segundo dados do Censo de 2022 do IBGE.
É uma afirmação que pode soar absurda para quem circula nas áreas centrais e ricas da capital paraense, com seus túneis de mangueiras e de calçadas sombreadas.

Crédito, Vitor Serrano/BBC
No bairro do Jurunas, vizinho a regiões extremamente arborizadas de Belém, Ronald Monteiro, de 15 anos, conta que o calor a partir das 11h30 vem chegando como “uma máquina de bater açaí”.
“É rápido, meio que fica girando, girando, na gente.”
Quando chega da escola, no fim da manhã, Ronald costuma ajudar o pai no negócio de extração da polpa de açaí, alimento básico dos almoços paraenses, numa rua sem árvores.
Depois, ele sobe para o quarto e tenta descansar para as atividades da tarde e noite, como futebol, igreja ou ajudar o tio no mercado do bairro. Mas isso não tem sido possível.
“É um calor insuportável, não tem como dormir, não tem como descansar, a gente perde o sono da tarde. O calor te degrada muito”, conta Ronald.
A sensação dele é mostrada nos números.
Dados do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) apontam que Belém foi a capital brasileira com mais dias de eventos de “extremos de calor” no ano passado: 212 dias.
A expressão indica o número de dias no ano em que a cidade teve uma temperatura máxima acima da máxima registrada nos anos anteriores. A capital chegou a registrar 37,3°C. A única cidade com mais eventos extremos que Belém foi Melgaço, na ilha do Marajó, também no Pará.
Um levantamento compartilhado com a BBC News Brasil pelo professor Everaldo de Souza, do Laboratório de Modelagem de Tempo e Clima da Universidade Federal do Pará (UFPA), com base em dados no Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), também traz um sinal vermelho para a cidade.
A capital do Pará já teve nesta década, até o ano passado, 164 dias que registraram uma temperatura máxima acima dos 35,5ºC, o que o professor classifica como um evento de calor extremo. Isso quer dizer que, em quatro anos, Belém teve mais dias de calor extremo do que as últimas seis décadas anteriores somadas.
“A gente sabe que Belém é quente, mas está muito mais quente”, diz Souza.
“A Amazônia é um bioma que tem sido modificado, transformando, e isso é um problema [para Belém], porque uma floresta intacta mantém o equilíbrio, o conforto”, completa o professor.
Belém viu a cobertura vegetal em seu território cair drasticamente, segundo o estudo da UFPA. Entre 1985 e 2023, a perda de área de floresta foi de aproximadamente 20%.
“Se você altera isso, o primeiro efeito é na temperatura”, avalia o professor.
“E numa cidade que tem muitas atividades à tarde, é preciso cautela, especialmente para mais jovens e mais velhos.”
É essa realidade que tanto João como Ronald relatam. Eles conversaram com a BBC para falar de clima e futuro e como a crise atual já afeta suas vidas.
A perda da adolescência do ‘João do Clima’

Crédito, Vitor Serrano/BBC
Na caminhada para a escola, em São João do Outeiro, João Victor “do Clima” e a prima não escolhem mais ir pelas ruas principais. Em vez do asfalto, eles preferem ir num caminho de terra, mesmo que se ande mais.
“A gente percebeu que nessas ruas sem asfalto é mais fresco. A terra resfria o ambiente”, conta.
Na frente de casa, João também percebeu que a rua e a praça tomadas de lixo ameaçavam a natureza não só ali. O chorume descia para uma nascente de água, que já nascia poluída antes de seguir seu rumo.
O adolescente organizou protesto, chamou a imprensa, fez mutirão de limpeza e plantou vigília noturna para as pessoas não deixarem mais lixo ali.
A população se reeducou, e o espaço é agora uma área verde com brinquedos e gramado. A nascente, hoje limpa, é ponto de parada de jovens buscando um banho para se refrescar. Diz-se no bairro que a água é boa até para amaciar os cabelos.
Foi percebendo situações como essas no dia a dia que João decidiu se tornar uma voz na defesa de políticas ambientais que levem em conta a periferia e as ilhas de Belém.
“Eu comecei a pesquisar e percebo que tudo está interligado, né? A educação ambiental, a conscientização ambiental e a falta disso que gera uma grande crise, que é a crise climática”, diz João.
“Eu digo que a gente está na mesma tempestade em barcos diferentes. Tem gente em iate, tem gente em rabeta [pequeno barco com motor popular na Amazônia] e tem gente até sem barco.”
João compara a situação de um estudante em escolas privadas de Belém, em áreas arborizadas e com ar-condicionado, com a de alunos de seu bairro. Até os 15 anos, ele estudou numa escola municipal sem climatização.
Esse ambiente quente, diz, afeta os estudos, o físico e o psicológico dos colegas, a “geração mais afetada com o aquecimento do planeta”.

Crédito, Acervo Pessoal
O meteorologista Everaldo de Souza, da UFPA, explica que crianças e adolescentes estão entre os mais afetados numa Belém mais quente.
“A hora da entrada e da saída da escola é o pico do calor, sem falar de atividades esportivas e recreação à tarde”, conta.
Participante da COP30 como conselheiro jovem do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), João encabeça ideias que passam pela juventude amazônica.
No caso do calor do asfalto na rua, por exemplo, João defende projetos que levem em conta o uso de “pavimentação ecológica” – pequenos blocos de concreto com um espaço mínimo entre um e outro na aplicação para permitir infiltração da água e uma melhor sensação térmica.
Também faz campanha por projetos de educação ambiental e de plantio de árvores na periferia.
Orgulhoso do que tem feito na praça ou nos debates em Belém, João também lamenta sua vida.
Ele conta que a agenda de congressos, eventos e entrevistas tem deixado pouco espaço para viver uma vida de “adolescente”. Quase não sai mais com jovens de sua idade.
“Eu queria ser mais adolescente e menos ativista”, diz.
“Mas nesse momento acho que não é possível, porque a gente vive um momento muito complicado, em que os tomadores de decisões e os líderes mundiais estão negligenciando a juventude.”
Sem cochilo da tarde depois do açaí

Crédito, Vitor Tavares/BBC
Belenense, Ronald, de 15 anos, gosta de futebol, do Clube do Remo, de redes sociais, iPhones e também de açaí.
Por ele, toda refeição teria o creme roxo da fruta – que ele mesmo extrai junto ao pai, Jessé, no comércio em frente à casa da família, no bairro do Jurunas.
O adolescente conta em detalhes o processo inteiro até o açaí chegar no prato, por experiência própria.
Nas férias, Ronald costuma viajar até a casa de parentes em área ribeirinha da Grande Belém para ajudar o tio subindo no açaizeiro e colhendo os frutos.
Mas ele tem estranhado o que tem encontrado.
“A palmeira era mais forte, e o cacho vinha maior”, lembra.
“E o açaí que chega agora é de menos qualidade, o caroço mais ressecado.”
Neste ano, assim como em muitos comércios em Belém, menos açaí saiu da máquina da família – e menos famílias puderam comprar.
A capital do Pará viveu uma “crise do açaí” em 2025, com preços recordes no valor da fruta. Em outubro deste ano, nas feiras de Belém, a média de preço do litro do açaí médio era R$ 28, segundo dados do Dieese/Pará. No mesmo mês do ano passado, era R$ 18,40.
O aumento do valor, que fez moradores pedirem açaí misturado com água para render mais, é uma soma de fatores, segundo pesquisadores.
As mudanças aceleradas do clima alteraram as condições necessárias para que o açaizeiro frutifique.

Crédito, Vitor Serrano/BBC
Segundo dados compilados pelo professor Everaldo de Souza, na região de Belém tem chovido mais. Mas essas chuvas têm cada vez mais se concentrado em poucas horas e em poucos dias.
“Toda a vegetação tem um ciclo, então tem que chover ali certinho para poder florescer o fruto. O que pode estar ocorrendo é que esteja chovendo mais, mas numa época não adequada para a árvore de açaí”, conta.
A alta do preço do açaí também tem ocorrido justamente em um momento em que a fruta é consumida cada vez mais no exterior. Alguns produtores, que antes abasteciam o mercado local, passaram a vender para fora.
Na casa de Ronald, na periferia de Belém, as vendas neste ano diminuíram e orçamento da família apertou. Nos dias em que o pai não abriu o comércio, ele ajudava o tio no mercado da família.
“Eu queria mesmo trazer alguma coisa para dentro de casa”, diz.
Ronald planeja para o futuro ser goleiro e herdar o negócio do pai. Mas os planos diários de adolescente têm sido alterados em meio ao calor de Belém.
Como não consegue descansar em casa à tarde, diante do calor, o adolescente se diz “muito cansado”.
“Eu até tomo banho e tento dormir, mas não dá. No calor, meu corpo fica mais fraco.” Ele diz que o desempenho nas atividades fica prejudicado.
O meteorologista Everaldo de Souza avalia que o problema do sono em bairros periféricos mais quentes em cidades como Belém é algo que ainda precisa ser estudado. Mas ele avalia que esse já é um dos desafios latentes na cidade.
“Na hora do sono profundo, a gente precisa diminuir a temperatura do corpo. Se o ambiente está muito mais quente, isso tem impacto no nosso sono. Várias noites mal dormidas vão ter efeito a longo prazo”, diz o pesquisador.
Ronald sabe que provavelmente os delegados da COP30, reunidos a 9 quilômetros de sua casa, no Parque da Cidade, não passarão pelo Jurunas para sentir o “calor anormal” que ele sente.
Mas ele espera que jovens belenenses como ele sejam ouvidos.
“Dizem que a gente é o futuro do Brasil, então temos que ser ouvidos”, diz.
“Tenho esperança que melhore bastante.”
Mapa por Caroline Souza, Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil