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O termo que tem aparecido em postagens nas redes sociais, nas falas de comentaristas e de algumas autoridades.
A BBC News Brasil levou a pergunta a sete pesquisadores na área de sociologia e segurança pública. A resposta, como era de se esperar dentro desse tema, não é simples.
De forma geral, os especialistas afirmam que não é possível falar em narcoestado quando se discute o Brasil porque o termo não descreve os fenômenos que se observam no país.
Não há uma definição científica precisa, mas a ideia, em linhas gerais, seria de uma nação em que o crime se apropria da estrutura do Estado e faz com que ele passe a funcionar em função da indústria das drogas — o que não é o caso quando se fala do Brasil e de praticamente nenhum outro país, ressaltam as fontes ouvidas pela BBC News Brasil.
“É um pouco exagerado esse termo”, diz o pesquisador americano Benjamin Lessing, que há mais de uma década estuda organizações criminosas na América Latina.
“É difícil de achar um exemplo, porque o que seria um narcoestado? Se o Estado mesmo estivesse plenamente engajado no tráfico de drogas, não seria um Estado…”, argumenta.
Em sua opinião, o caso da Venezuela seria o que atualmente mais se aproximaria da definição, mas apenas se fosse comprovada a acusação que vem sendo feita por figuras como o presidente americano, Donald Trump, do envolvimento de agentes do Estado — no caso, membros das Forças Armadas — no tráfico de drogas, o que não se verifica até o momento.
Haveria ainda, na opinião de Lessing, possíveis casos históricos pontuais, como o do Panamá entre 1983 e 1989, quando o país foi governado por Manuel Noriega, que tinha envolvimento direto com tráfico de drogas.
Ou o do México dos anos 70 e 80, sob o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que “não gerenciava o tráfico de drogas, mas regulava, digamos, os cartéis”. “O PRI conseguiu manter uma paz entre os cartéis por um tempo fazendo uma espécie de gerenciamento do mercado”, avalia Lessing.
As fontes ouvidas pela reportagem ressaltam que a palavra “narcoestado” é mais um termo que tem circulado na imprensa e no debate público, às vezes com intenções políticas, do que um conceito discutido entre quem pesquisa organizações criminosas.
O que não quer dizer, contudo, que não haja um avanço preocupante do crime organizado no país e que as facções não tenham infiltrações na política.
Não por acaso, a violência é hoje vista como o principal problema do país pela maioria dos brasileiros, ocupando o topo da lista de preocupações de 30% dos entrevistados na mais recente pesquisa Genial/Quaest, muito à frente de problemas sociais (18%) e da economia (16%). Deve ser um dos grandes temas discutidos nas eleições presidenciais de 2026.
Como caracterizar o que se vê no Brasil então?
Especialistas argumentam que os grupos criminosos têm uma relação “parasitária” e às vezes “simbiótica” com o Estado, sem, entretanto, terem intenção de substituí-lo.
São dois poderes que convivem juntos, eles dizem, muitas vezes dividindo o chamado monopólio da violência, ou a prerrogativa de usar meios violentos para manter a ordem ou evitar crimes — que, na teoria, deveria caber apenas ao Estado.
“No Brasil, e em muitos outros países do mundo, eu trabalho com a ideia de que há regimes de poder coexistentes, diferentes soberanias, o Estado não tem monopólio da força e da Justiça, condição fundamental da hegemonia estatal”, diz Gabriel Feltran, diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor titular da Sciences Po, em Paris.
“Mas isso não quer dizer narcoestado”, completa ele, que é autor de Irmãos: Uma História do PCC.

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O retrato da expansão do crime
É dentro desse contexto de “duopólio da violência” — do Estado e do crime — que muitos pesquisadores analisam e explicam o avanço do poder exercido pelas organizações criminosas.
E dois indicadores são reveladores da situação atual no Brasil: os negócios do crime organizado — junto às cifras bilionárias que ele passou a movimentar — e o avanço territorial das facções.
O tráfico de cocaína é hoje uma pequena fração do faturamento anual estimado das organizações criminosas. São R$ 15 bilhões em um universo de R$ 348 bilhões, de acordo com um estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Depois de enriquecerem com o varejo de drogas nas décadas de 1990 e 2000, nos últimos anos as organizações criminosas diversificaram as atividades e as fontes de renda. Os crimes virtuais e os furtos de celulares, por exemplo, se revelaram um negócio extremamente lucrativo, de R$ 186,6 bilhões por ano.
Os mercados legais, inicialmente usados para lavar dinheiro, também se mostraram rentáveis, movimentando R$ 146,8 bilhões por ano, ainda segundo os números do FBSP.
O crescimento financeiro das facções criminais se deu em paralelo à sua expansão pelo território nacional — e até internacional. Após dominarem comunidades no Rio de Janeiro e a periferia de São Paulo, CV e PCC foram além das suas fronteiras de origem em busca tanto do controle das rotas do tráfico de cocaína quanto dos pontos de venda de drogas.
Nesse processo de capilarização, foram se expandindo com empreitadas próprias, arregimentando membros pelo país, ou em associação com grupos locais.
Conforme um levantamento divulgado em 2024 pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), atualmente são 88 organizações criminosas espalhadas por todo o país.
Algumas delas exercem controle territorial sobre as comunidades em que estão presentes: fiscalizam quem entra e sai, impõem regras de conduta e castigam os que não seguem a cartilha.
Cerca de 31 milhões de brasileiros vivem em condições como essas, em áreas dominadas por facções, conforme uma pesquisa recente feita pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Isso é 19% da população, 5 pontos percentuais a mais do que o verificado em 2024 — um salto que dá dimensão do avanço do problema.
O percentual não é alto apenas para os padrões brasileiros. Ele é provavelmente o maior observado na América Latina, diz Benjamin Lessing, professor da Universidade de Chicago.
Em um estudo conduzido por ele e outros colegas recentemente com dados do Latinobarómetro (uma das maiores pesquisas de opinião pública conduzidas na região), o resultado foi ainda pior, chegando a cerca de 26% da população do Brasil, algo entre 50,6 milhões e 61,6 milhões de pessoas.
Esse foi o maior percentual entre 18 países latino-americanos, incluindo lugares conhecidos pela grande penetração da indústria das drogas, como El Salvador, Colômbia e México, onde a estimativa da proporção da população vivendo em áreas dominadas por organizações criminosas foi de 9%.

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Máfias brasileiras?
Lessing ressalva que os 9% possam estar subestimados, por conta da forma como as perguntas foram formuladas em espanhol aos entrevistados pelo Latinobarométro — ou seja, a proporção de pessoas vivendo sob domínio de organizações criminosas nesses países é possivelmente maior.
Ainda assim, diz estar “convencido” de que o Brasil é líder nessa estatística preocupante, conhecida entre os estudiosos do tema como “governança criminal”.
A explicação estaria nas características muito particulares do Brasil quando o assunto são organizações criminosas, incluindo o fato de que o país não é produtor de drogas, mas entreposto.
“Nesse modelo de facção, você está casando a governança criminal com o varejo de drogas, enquanto na América Central esse mercado de varejo de drogas não é tão forte”, observa o sociólogo.
“Quando você está vendendo droga ali na ‘boca’, você tem muito incentivo de prover governo. Você quer que todo mundo lá goste mais de você do que da polícia. Só controlando o crime, você não vai prevenir que a polícia entre. E, quando a polícia entra, você quer que as pessoas te protejam, e para que eles te protejam você tem que ganhar lealdade”, argumenta.
Esse foi um dos temas de pesquisa do sociólogo Eduardo Dyna durante o mestrado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) alguns anos atrás.
Ele estudou a dinâmica de proteção, segurança e administração de conflitos do PCC nas periferias paulistas para entender a relação entre a atuação da facção e a sensação de segurança relatada por alguns moradores dessas áreas.
Dyna, que cresceu na periferia de Osasco, elegeu o tema depois de se deparar, em 2021, quando levava o avô ao médico, com uma das faixas que a facção espalhou em áreas de São Paulo e da região metropolitana com um aviso aos motoqueiros: “Proibido tirar de giro e chamar no grau. Sujeito a cacete. Não vamos tolerar essas coisas na comunidade”.
“São aquelas manobras de moto barulhentas, ninguém gosta, e o PCC proibiu esses episódios”, explica o pesquisador.
Esse é um exemplo prático de como se manifesta a “governança criminal”, expressão também usada pelo sociólogo.

Crédito, Eduardo Dyna
Agora no doutorado, que ele faz na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Dyna se debruça sobre as contradições internas da facção paulista. De um lado, o PCC “raiz”, que, de certa forma, produziu ordem em periferias de São Paulo. De outro, o PCC empresarial, “da Faria Lima”, mais norteado por uma lógica de mercado, fruto do enriquecimento da facção.
“O PCC foi acumulando muito capital, muito dinheiro, também passou por um processo de internacionalização. Tudo isso produz formas de reorganização interna da facção”, observa o pesquisador.
“Como a gente pode entender uma organização criminal como o PCC, que produz uma ordem na periferia de São Paulo, mas está matando indígena em Roraima? É a mesma organização, mas os interesses, por conta dessa região geográfica, são diferentes”, completa.
Nesse sentido, o sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ressalta que a expansão nacional das facções deu origem na última década a uma grande rede que conecta diferentes negócios ilegais.
Ele cita desde o garimpo ilegal, a ocupação de terras indígenas e a extração ilegal de madeira à infiltração no mercado de combustíveis e à “corrupção no âmbito local”, com envolvimento de grupos criminais na prestação de serviços como coleta de lixo e transporte público e desvio de recursos para financiamento de campanhas eleitorais.
“Essa talvez seja uma novidade importante pra gente entender o que está acontecendo. Esses mercados ilícitos foram se conectando e, se foram se conectando, foram aumentando, evidentemente, o poder desses grupos e a capacidade de influência numa série de setores”, diz Azevedo, que é também professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
“Eu não chamaria, evidentemente, o Brasil de um narcoestado. Acho que estamos muito longe disso”, afirma o sociólogo. Ele avalia, entretanto, que é possível falar na presença de um “narcoestado difuso”, que não tem controle sobre as instituições em nível federal, mas que aparece em exemplos pontuais e em uma escala menor — em cidades e regiões, por exemplo.
“Até que ponto esses grupos já têm uma penetração importante nos parlamentos locais, onde muitas questões de urbanização são decididas e vereadores são eleitos, e também nos parlamentos estaduais?”, questiona Azevedo.
“Até que ponto vai essa influência e em que medida um setor do sistema político está de alguma maneira já cooptado e trabalhando, num certo sentido, para dinamizar e potencializar de alguma forma essas atividades ilícitas? Isso é algo que evidentemente preocupa.”
O pesquisador não aponta nenhum lugar específico, mas afirma que em locais do Rio de Janeiro, como a Baixada Fluminense, o domínio territorial das facções “faz com que essa dinâmica do crime organizado se conecte muito com a dinâmica política eleitoral, influenciando as escolhas eleitorais, estabelecendo relações de financiamento de campanha”.
“Então o Rio de Janeiro hoje me parece que tem uma expressão mais evidente”, pontua.
Esse processo, na visão dele, tem aproximado inclusive algumas facções, como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, do que se conhece como “organizações mafiosas”.
“Não têm o controle do aparelho estatal, como seria um narcoestado, mas têm bastante penetração por meio de corrupção e cooptação de quadros, tanto da segurança pública quanto do próprio Parlamento e do poder Executivo”, ele explica.

Crédito, Acervo Instituto Mãe Crioula
O que está por trás do avanço das facções
Como o Brasil chegou a esse ponto?
O aumento do consumo de drogas no país é um dos fatores, já apontado por Lessing inclusive como um dos motivadores da dominação territorial por parte das facções.
Ele também menciona o ímpeto de expansão nacional por parte do PCC, que acabou ensejando o nascimento de facções locais que rejeitavam a chegada do grupo paulista e, por sua vez, também deram oportunidade ao CV de criar uma rede de alianças locais e de crescer nacionalmente.
Na visão do pesquisador, o Estado acabou facilitando esse processo e é outro elemento importante da explicação.
“Essa é uma tese que eu sustento no meu livro [em produção], eu acho que em várias várias dimensões o Estado acaba ajudando a espalhar as facções na rua”, diz o pesquisador.
Um exemplo seria a própria política de encarceramento em massa praticada há décadas no Brasil.
Ao contrário do que se observa em outros países bastante afetados pelo crime organizado, no Brasil os principais grupos surgiram dentro do sistema prisional. O CV no Rio de Janeiro da década de 1970, em um presídio em Ilha Grande, e o PCC na Casa de Custódia de Taubaté, em São Paulo, em 1993.
Para além disso, as transferências de líderes de facções para prisões em outros Estados e para o sistema carcerário federal acabou gerando um intercâmbio que ampliou e fortaleceu o crime organizado.
“O [grupo criminoso] Família do Norte nasceu no sistema federal, do contato de presos [da Amazônia] com o Comando Vermelho”, ilustra Lessing.
Uma vez na rua, as facções encontram terreno fértil para se proliferar em áreas marcadas pela vulnerabilidade, como as periferias urbanas, observa Eduardo Dyna.
O sociólogo ressalta que esses são lugares onde o Estado está presente com disciplina e repressão, mas muitas vezes ausente quando se trata de direitos à educação e saúde e da provisão de infraestrutura.
“Esse vácuo vai ser preenchido por alguém, às vezes por um movimento social, às vezes por partido político, às vezes por igreja, às vezes por organizações criminais”, avalia o pesquisador.
Dentro desse contexto de expansão do crime, Benjamin Lessing aponta com preocupação para o fato de que o Estado não tem como prioridade recuperar os territórios hoje controlados por facções.
Nesse aspecto, ele chama atenção para o caso recente do Rio de Janeiro, da operação policial que matou 121 pessoas nos complexos da Penha e do Alemão e que tinha como objetivo não livrar essas regiões do jugo do Comando Vermelho, mas de executar algumas dezenas de mandados de prisão.
“Eu acho que isso é muito revelador. O Estado não está tentando recuperar o monopólio da violência — a coisa mais básica que todos nós achamos que os Estados fazem ou devem fazer”, ele ressalta.
“Mas ninguém está fazendo isso, nem direita, nem esquerda. Ninguém está falando: ‘A gente tem que estabelecer a presença do Estado nesse lugar’. Como se fosse impossível, ou não fosse desejável ou não tão importante quanto prender bandido”, completa Lessing.
Especialistas como Dyna ponderam que a expansão do crime organizado no país é preocupante e que as autoridades deveriam ter como prioridade atacar o problema, mas ressaltam que o uso de termos equivocados, como “narcoestado”, podem ser contraproducentes na discussão e podem acabar sendo usados por instrumentos por grupos políticos para atingir seus objetivos.
O coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Sérgio Adorno, concorda, e compara o uso do termo ao de “narcoterrorista“. A expressão tem circulado tanto nos EUA, com o governo Trump, quanto no Brasil, especialmente com governadores da direita, como o do Rio, Claudio Castro, ou de São Paulo, Tarcísio de Freitas. No Congresso, a oposição trabalha para incluir essa palavra na legislação.
“No momento em que você classifica esses atos como terroristas, você transforma esse problema em um problema de defesa nacional. E aí vira um problema das Forças Armadas, encarregadas da defesa do território da soberania — o que é muito perigoso”, opina.
O escritor e analista político João Paulo Charleaux, que se dedica ao estudo do direito internacional dos conflitos armados, faz análise parecida e acrescenta entre os termos às vezes mal empregados no debate em torno da segurança pública a palavra “guerra”.
“É um recurso de retórica que não é só retórico, porque ele tem um efeito prático. Ele dá a sensação à polícia de que ela pode agir como se estivesse na guerra. Você dá uma liberdade que não existe, que não era pra ter.”