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Escondida no corpo humano, existe uma homenagem a um anatomista italiano que morreu muito tempo atrás.
E ele não é o único. Todos nós carregamos dentro do corpo nomes de pessoas desconhecidas gravados nos nossos ossos, no cérebro e em outros órgãos.
Alguns desses nomes parecem lendários. O tendão de Aquiles, por exemplo. A faixa situada na parte posterior do tornozelo homenageia um herói grego que morreu com uma flecha que atingiu aquele que era seu ponto fraco.
Já o pomo de Adão faz referência à mordida do fruto proibido, relatada na Bíblia.
Mas a maior parte desses nomes não é baseada em mitos. Eles pertencem a pessoas reais. Em sua maioria, são anatomistas europeus de séculos atrás, cujo legado se mantém sempre que alguém abre um livro de medicina.
Estas palavras são conhecidas como epônimos. Elas designam estruturas anatômicas com o nome de pessoas, não pelo que elas realmente são.
Um exemplo são as trompas de Falópio. Estes pequenos condutores localizados entre os ovários e o útero foram descritos em 1561 pelo anatomista italiano Gabriele Falloppio (1523-1562). Fascinado por tubos, ele também deu seu nome ao canal de Falópio, localizado no ouvido.

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Outro exemplo é a área de Broca, que recebeu este nome em homenagem ao médico francês Paul Broca (1824-1880). Ele estabeleceu a relação entre aquela região do lóbulo frontal esquerdo e a produção da fala.
Se você, alguma vez, tiver estudado psicologia ou conhecer alguém que sofreu derrame cerebral, provavelmente terá ouvido falar desta área do cérebro.
Existe também a trompa de Eustáquio, um pequeno condutor que se abre quando bocejamos em um avião. Seu nome é uma homenagem ao italiano Bartolomeo Eustachi (c.1510-1574), que foi médico do Papa no século 16.
Todos eles deixaram suas marcas na nossa anatomia — não fisicamente, mas na linguagem. Mas por que conservamos estes nomes ao longo dos séculos?
Porque os epônimos são mais do que simples curiosidades médicas. Eles estão intrinsecamente relacionados à cultura da anatomia.
Gerações de estudantes repetiram esses nomes em sala de aula e os incluíram nas suas anotações. Os cirurgiões os mencionam durante as operações, como se falassem de velhos amigos.
Eles são curtos, concisos e familiares. Dizer “área de Broca” leva apenas dois segundos. Quando usamos sua alternativa descritiva, “giro frontal inferior posterior”, parece que estamos recitando um feitiço.
Nos agitados ambientes clínicos, a brevidade costuma ser fundamental. E os epônimos também vêm acompanhados de histórias memoráveis.
Os estudantes se lembram de Falópio porque parece o nome de um músico do Renascimento. Eles se recordam de Aquiles porque sabem para onde devem apontar a flecha.
Em um campo que, às vezes, parece um muro de termos latinos, uma história humana se transforma em um recurso valioso.

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Além disso, existe, é claro, a tradição.
A linguagem médica é baseada em séculos de conhecimentos acadêmicos. E, para muitas pessoas, eliminar os epônimos seria como excluir a própria história.
Mas esta fascinação linguística tem um lado obscuro. Apesar do seu encanto, os epônimos, muitas vezes, não cumprem com seu propósito principal. Eles dificilmente explicam o que é uma estrutura ou qual é a sua função.
“Trompa de Falópio”, por exemplo, não oferece nenhuma pista sobre sua função ou localização, ao contrário de “trompa uterina”.
Os epônimos também refletem uma visão tendenciosa da história.
A maioria deles se originou durante o Renascimento europeu (séculos 14-16). Naquela época, as “descobertas” da anatomia, muitas vezes, significavam a apropriação de conhecimentos que já existiam em outras partes do mundo.
E existe também a verdade realmente incômoda: alguns epônimos homenageiam pessoas com passados atrozes.
A “síndrome de Reiter”, por exemplo, recebeu este nome devido ao médico nazista Hans Reiter (1881-1969), que realizou experimentos cruéis com prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha.
Atualmente, a comunidade médica emprega a expressão neutra “artrite reativa”, em um pequeno mas significativo gesto de rejeição a homenagear alguém que causou tanto mal.
Cada epônimo é um pequeno monumento. Alguns são pitorescos e históricos, mas outros são homenagens às quais preferiríamos não dar continuidade.
Já os nomes descritivos são simplesmente lógicos. Eles são claros, úteis e universais. Não é preciso memorizar quem descobriu o quê, mas apenas onde aquilo está e qual a sua função.
Se você ouvir “mucosa nasal”, saberá imediatamente que ela fica dentro do nariz. Mas peça a alguém para localizar a “membrana de Schneider”. Você, provavelmente, receberá um olhar desconcertado.

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Os termos descritivos são mais fáceis de traduzir, padronizar e procurar.
Eles fazem com que a anatomia seja mais acessível para os estudantes, médicos e o público em geral. E, o mais importante, não glorificam ninguém.
O que devemos, então, fazer com todos esses nomes antigos?
Existe um movimento cada vez maior para eliminar gradualmente os epônimos ou, pelo menos, utilizá-los ao lado dos termos descritivos.
Isso não significa que devemos queimar os livros de história. O objetivo é acrescentar contexto.
Podemos ensinar a história de Paul Broca, reconhecendo, ao mesmo tempo, as tradições inerentemente tendenciosas da nomenclatura. Podemos relembrar Hans Reiter sem associar seu nome a uma doença, mas como uma lição que nos sirva de advertência.
Este enfoque duplo nos permite preservar a história, sem deixar que ela determine o futuro. Ele faz com que a anatomia seja mais clara, justa e honesta.
A linguagem da anatomia não é apenas um jargão acadêmico. É um mapa de poder, memória e legado, escrito na nossa própria carne.
Cada vez que um médico diz “trompa de Eustáquio”, ele evoca o século 16. Cada vez que um estudante aprende “trompa uterina”, ele busca clareza e inclusão.
Talvez o futuro da anatomia não consista em apagar os nomes antigos, mas em compreender as histórias que eles carregam e decidir quais delas vale a pena preservar.
* Lucy E. Hyde é professora de anatomia da Universidade de Bristol, no Reino Unido.