- Author, João Fellet e Felix Lima
- Role, Enviados da BBC News Brasil ao Jalapão (TO)
Caminhonetes com brigadistas avançam entre labaredas na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, no Jalapão.
Mas, ao contrário do que se poderia supor, os brigadistas não tentam conter o fogo – foram eles que o provocaram.
“Este aqui é um fogo bom, manso, brando”, diz o brigadista Deusimar Cardoso, de 46 anos.
As chamas avançam lentamente e, logo depois que passam, pode-se pisar nas cinzas sem queimar os pés.
Estamos no início de maio, e a cena faz parte de uma queima conduzida pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade), o órgão do governo responsável pela proteção de parques federais.
“Quando for umas nove da noite, este fogo vai morrer sozinho com o sereno”, diz Cardoso.
A prática consiste em realizar queimadas de baixa intensidade para evitar grandes incêndios no auge da seca, quando o fogo é bem mais destrutivo.
A estratégia busca limitar a quantidade disponível de capim seco, material bastante inflamável presente no Cerrado.
Queimando-se a vegetação dessa forma, diz Cardoso, garante-se que os animais escapem e que a área não seja consumida por um incêndio pelos próximos dois anos.
Isso porque, nesse período, o capim queimado estará em regeneração, ainda verde, e não pegará fogo. Assim, a queima criará nessa área uma espécie de aceiro – uma barreira anti-incêndio.
Depois do segundo ano, o capim voltará a ficar seco e terá de ser queimado outra vez.

Também chamadas de queimas prescritas, as ações costumam ser realizadas no início da estação seca, quando as condições permitem controlar o fogo sem que ele se alastre além do planejado.
Presente na equipe, o biólogo Marco Borges, servidor do ICMBio e chefe daquela estação ecológica há 11 anos, diz que são queimados pequenos trechos de cada vez para que se forme um “mosaico com diferentes idades de queimas”.
“Aqui tem espaço para todo tipo de vida: espécies que gostam de fogo com mais frequência ficam numa região que tem mais fogo, e as que preferem menos frequência, em outra”, explica.
A estratégia começou a ser aplicada na estação ecológica em 2014. Desde então, Borges diz que os incêndios ali, que antes consumiam até 100 mil hectares em um único evento, hoje raramente alcançam 3 mil hectares.

Crédito, Felix Lima/BBC
Mas o mesmo ICMBio que hoje difunde as queimas controladas adotava uma política de “fogo zero” no Jalapão não muito tempo atrás.
“Foi a pior época que teve”, lembra Manoel Ramos de Jesus, de 61 anos e membro da comunidade quilombola do Rio Novo.
Por quase dois séculos, diz Jesus, descendentes de pessoas que fugiram da escravidão viveram isoladas no Jalapão, criando o gado solto na vegetação nativa do Cerrado e usando o fogo para renovar as pastagens naturais.
Até que, a partir de 2001, foram criadas unidades de conservação na região. Hoje elas totalizam 3 milhões de hectares – área pouco maior que a de Alagoas – e constituem a maior área protegida de Cerrado do Brasil.
Jesus diz que o estabelecimento das reservas sobre os territórios das comunidades impactou os modos de vida locais, já que os órgãos ambientais proibiram as queimas e a criação de gado.
“Eles tinham que chegar aqui, sentar com a gente e perguntar, mas eles não fizeram isso”, diz Jesus.
“Eles chegaram e disseram ‘não vai ter fogo mais, de maneira nenhuma'”, afirma.

Crédito, Felix Lima/BBC
Jesus diz que muitas famílias resolveram ir embora com seus rebanhos, e as que ficaram tentaram convencer os agentes ambientais de que a estratégia era perigosa. Argumentam que, sem o fogo, o capim seco se acumularia, ampliando o risco de incêndios.
“Foram quatro anos sem o Jalapão queimar”, diz Jesus. “Aí, quando queimou, não deram conta de apagar.”
O primeiro grande incêndio, segundo ele, ocorreu em 2004. Começou no lixão de uma cidade vizinha e rapidamente alcançou as áreas protegidas, provocando grande destruição.
O morador Deusimar Cardoso diz ter visto vários animais que morreram incinerados naquele incêndio.
“Qual bicho vai conseguir correr 100 quilômetros para escapar de um fogo desses?”, questiona.
Mesmo assim, as queimas quilombolas continuaram proibidas – e outros grandes incêndios atingiram o Jalapão nos anos seguintes.
Na comunidade quilombola Rio Novo, o morador Tadeu Ribeiro Alves diz que uma vizinha morreu em 2014 após passar vários dias combatendo um incêndio que se aproximava das casas. Ele diz acreditar que ela se intoxicou com a fumaça, embora a causa da morte jamais tenha sido divulgada.
Outro incêndio quase destruiu a casa de Alves. “Se não fosse um filho meu estar em cima [do telhado] com a água e não deixar faltar, tinha queimado”, conta.
Hoje, são feitas queimas prescritas periódicas em volta da comunidade, e os incêndios deixaram de alcançar as residências.
“Sem esse fogo [preventivo] não tem como viver aqui, fica muito perigoso”, ele diz.

Crédito, Felix Lima/BBC
A experiência australiana
Mas foi só depois de uma expedição de servidores brasileiros à Austrália em 2014 que a postura anti-fogo dos órgãos ambientais começou a ser revista.
Por duas semanas, agentes ambientais do ICMBio e do Naturatins (órgão ambiental tocantinense) que atuavam no Jalapão viram como comunidades aborígenes realizavam queimadas para prevenir incêndios com a autorização do governo australiano. Lá, a estratégia vinha dando excelentes resultados.
Em relatório sobre a expedição, a analista ambiental do ICMBio Ana Carolina Sena Barradas escreveu que aquela viagem “abriu-me os olhos para a necessidade emergente de valorização e resgate dos costumes e saberes tradicionais” dos quilombolas do Jalapão.
“Ali houve uma mudança de chave”, lembra Marco Borges, do ICMBio.
Ele diz que, até então, o órgão se inspirava nas diretrizes ambientais dos Estados Unidos e de vários países europeus, onde o fogo na natureza é visto como algo a ser evitado a todo custo.
“Quando começamos a abrir nossa mente para o manejo do fogo na Austrália e na África, que têm uma vegetação e um clima mais parecidos com os nossos, tudo mudou”, ele diz.
O Jalapão se tornou então a primeira região do Brasil a implementar o chamado Manejo Integrado do Fogo (MIF), uma estratégia em que órgãos ambientais e comunidades locais passam a usar o fogo de forma planejada e coordenada para evitar incêndios e manter atividades tradicionais.
No caso dos quilombolas do Jalapão, as queimas também são feitas para abrir roças e renovar as pastagens naturais para o gado, atividade que hoje é autorizada em pequena escala. Os bois são criados soltos, em meio à vegetação nativa.
Para os quilombolas, aliás, o gado também colabora com a prevenção aos incêndios ao ajudar a manter o capim baixo. “Eles são nossos aliados contra o fogo ruim”, diz Deusimar Cardoso, referindo-se aos incêndios.

Crédito, Felix Lima/BBC
Diante dos resultados positivos no Jalapão, as queimas prescritas e controladas já vêm sendo aplicada em vários outros parques do Cerrado, Pampa, Pantanal e em áreas campestres da Amazônia.
Ainda não há dados abrangentes sobre o impacto da política, mas, segundo o coordenador de Manejo Integrado do Fogo do ICMBio, João Paulo Morita, houve de forma geral uma “redução na severidade e na ocorrência de grandes incêndios” nos locais onde foi implantada.
Conforme a técnica passou a ser difundida, o ICMBio começou a diferenciar em seus registros os tipos de fogo que atingem áreas protegidas.
Agora, o registro de um grande número de fogos no Cerrado no início da estação seca não é mais necessariamente motivo para alarme: se eles foram intencionais, causados por queimas controladas ou prescritas, podem ser positivos e ajudar a evitar incêndios.
Segundo a legislação, queimas controladas consistem no uso planejado do fogo para “fins agrossilvipastoris”, como a renovação de pastagens ou abertura de roças.
Queimas prescritas, por sua vez, consistem no uso do fogo para “fins de conservação, pesquisa ou manejo”, como a prevenção de incêndios.
Já em florestas úmidas, como as que predominam na Amazônia e na Mata Atlântica, queimas não são indicadas, pois o fogo é bem mais destrutivo nesses ambientes.

Crédito, Felix Lima/BBC
Milênios de fogo
Ao promoverem queimas controladas no Cerrado, os órgãos ambientais também reconheceram que o fogo faz parte da dinâmica natural do bioma desde muito antes da presença humana, diz Borges, do ICMBio.
Causado naturalmente por raios, os incêndios mais antigos registrados no bioma remontam a milhões de anos. Com a chegada dos humanos à região, há pelo menos 12 mil anos, o fogo se tornou ainda mais frequente. Afinal, povos indígenas brasileiros usam queimadas desde tempos imemoriais para atividades como a caça e a abertura de roças.
Borges, do ICMBio, diz que, por causa dessa longa convivência com o elemento, as espécies do Cerrado são adaptadas ao fogo ou até mesmo precisam dele em seus ciclos de vida.
Muitas árvores do Cerrado, por exemplo, têm cascas grossas que as protegem das chamas, e várias possuem sementes que só germinam quando sua dormência é quebrada pelo fogo, afirma ele.
Da mesma forma, Borges afirma que os animais do bioma “têm seus esconderijos, rotas de fuga e estratégias” para lidar com o fogo.
Ele conta que a ema, por exemplo, costuma botar os ovos em áreas que queimaram no ano anterior e, assim, dificilmente voltarão a queimar antes do nascimento dos filhotes.
Também afirma que muitos mamíferos gostam de visitar áreas recém-queimadas para lamber o sal presente nas cinzas. “As espécies que não gostam do fogo já desapareceram daqui faz tempo”, diz.
Mas diante da necessidade de conter emissões de gases que aquecem o planeta, faz alguma diferença se uma área é atingida por uma queimada ou por um incêndio?
Segundo Borges, sim: “uma queima prescrita tem menos emissões de gases [que um incêndio], porque o fogo é menos quente e a queima é menos completa, com menor mortalidade de plantas e bichos”, diz.
Além disso, ele afirma que as queimas prescritas provocam emissões menos concentradas que um incêndio. “Não fica aquele ambiente enfumaçado, empoeirado”, ele afirma.

Crédito, Felix Lima/BBC
Lei nacional
As queimas prescritas foram regulamentadas pela Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, sancionada em 2024.
A legislação busca reduzir a ocorrência de incêndios no país e reconhece o fogo “como parte integrante de sistemas ecológicos, econômicos e socioculturais”.
A lei ainda valoriza as queimas tradicionais realizadas por comunidades indígenas e quilombolas, e prevê a possibilidade de que proprietários rurais realizem queimas controladas com a anuência de órgãos ambientais.
Em ambientes sensíveis ao fogo, no entanto, como em florestas úmidas, a lei preconiza a substituição das queimadas por outras técnicas “sempre que possível”.
Já o uso do fogo para substituir a vegetação nativa é proibido sob qualquer circunstância – inclusive no Cerrado.
Fogo ‘terapêutico’

Crédito, Felix Lima/BBC
Para Marco Borges, do ICMBio, a nova política abre o caminho para que se crie uma “cultura de convivência com o fogo”.
Ele diz que a criminalização do fogo por tantos anos fez com que perdêssemos a capacidade de “diferenciar um fogo bom de um fogo ruim”.
“Assim como nos distanciamos da natureza, fomos nos distanciando do fogo”, afirma.
Hoje o próprio agente ambiental realiza queimas prescritas no Jalapão – experiência que ele descreve como “bem prazerosa”.
Num entardecer de maio, ele usava um isqueiro para atear fogo na beira de uma estrada na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins.
A última queimada naquela área havia ocorrido dois anos antes, e o capim já estava seco outra vez, representando um risco para um eventual incêndio no auge da seca.
Logo essências vegetais liberadas pela queima se espalharam pelo ar fresco. No horizonte, as chamas vermelho-alaranjadas se fundiam com as cores do pôr do sol.
“A gente consegue até desestressar”, ele diz, observando as labaredas ao longe.
“Chega a ser terapêutico.”
Mapa por Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil