Uma das primeiras decisões do presidente americano, Donald Trump, após assumir seu segundo mandato, em 20 de janeiro, foi passar a considerar os cartéis de drogas mexicanos como organizações terroristas. A ordem executiva do chefe de Estado deu aos Estados Unidos poderes que, na avaliação que fizeram analistas naquele momento, poderiam ter sido usados para ordenar uma intervenção no território mexicano em nome do combate ao narcotráfico e ao crime organizado — nos moldes do que hoje se teme que possa acontecer com a Venezuela e a Colômbia. Ao assinar o documento, Trump avisou: “O México não vai gostar disso.” E, de fato, o governo da presidente Claudia Sheinbaum, de esquerda, não gostou. E sua reação, desde um primeiro momento, foi liderar uma campanha nacional que tem como lema “cooperação sim, submissão não”.
Com essa bandeira, e uma serenidade que continua impressionando a região e o mundo, Sheinbaum encarou o desafio de negociar com Trump e impedir que seu país fosse o primeiro alvo de uma ofensiva do republicano na região. Em meio a tarifaços comerciais num país que depende do mercado americano, a presidente do México, que hoje tem mais de 70% de imagem positiva nas pesquisas, virou o jogo.
Em setembro, após uma visita ao país do secretário de Estado americano, Marco Rubio, os dois governos assinaram um Acordo de Cooperação em Segurança. O documento tem um capítulo inteiro dedicado ao combate ao tráfico de fentanil e drogas sintéticas, tema sensível para Trump — durante a campanha, o republicano prometeu reduzir o tráfico da droga que, em 2023, matou cerca de 70 mil americanos. Seguindo a linha do que propôs a presidente mexicana enquanto Trump lançava ameaças contra seu país, EUA e México se comprometeram a cooperar em inteligência para detectar laboratórios clandestinos e criar programas de saúde pública para prevenir a dependência de drogas.
Analistas mexicanos destacam a inteligência de Sheinbaum ao impedir que seu país fosse assediado militarmente por Trump, entregando, até agora, mais resultados no combate ao narcotráfico do que Andrés Manuel López Obrador. Segundo dados oficiais, em seus primeiros 11 meses no poder, a presidente prendeu 35 mil criminosos vinculados ao crime organizado, enquanto seu antecessor e aliado, em seus seis anos de mandato, capturou 12.500. Num país que tem cerca de 400 organizações criminosas, de acordo com dados do consultor e especialista em segurança Eduardo Guerrero, Sheinbaum quase triplicou as prisões de seu mentor. Segundo o governo, 1.564 laboratórios de drogas foram destruídos em 22 estados do país.
— Quando Trump diz que o México é um país repleto de criminosos, não está mentindo. Os 400 grupos que existem estão presentes em 16 dos 32 estados. Suas ameaças geraram preocupação, sobretudo quando o presidente americano condicionou a redução de tarifas aos esforços de captura de delinquentes de grande importância — explica Guerrero.
Enquanto negociava tarifas, a presidente, apoiada principalmente em Omar García Harfuch — um ex-policial que trabalhou com Sheinbaum no governo da capital mexicana e, desde o ano passado, é secretário de Segurança e Proteção Cidadã — implementou um plano nacional de segurança que deu rápidos e bons resultados. Quando a Casa Branca exigiu a extradição de 29 líderes do tráfico, ela não apenas concordou, como também ofereceu outros 26.
No total, desde que Trump voltou ao poder, o México enviou aos EUA 55 chefões do narcotráfico e do crime organizado, entre eles vários integrantes dos seis cartéis que controlam o mercado de drogas no país e foram designados como organizações terroristas estrangeiras pelos EUA: Jalisco Nova Geração, Sinaloa (que vive uma guerra interna), Cartel do Nordeste (antigo Los Zetas), Nova Família Michoacana, Golfo e Cartel Unidos.
O secretário conta com toda a confiança de Sheinbaum e tem conseguido entregar ótimos resultados em seu primeiro ano de gestão, afirma Guerrero. Harfuch tem a ficha limpa, mas algumas marcas em seu passado familiar: um de seus irmãos, envolvido na compra e venda de drogas, foi assassinado pelo cartel Jalisco Nova Geração.
— É uma figura muito importante e com um passado familiar interessante. Além do irmão assassinado, seu avô foi secretário de Defesa e seu pai comandou a Direção Federal de Segurança, que nos anos 1980 era a principal agência de inteligência do governo. O pai de Harfuch chegou a ser pré-candidato presidencial — comenta o consultor mexicano, que já deu palestras ao lado do homem que muitos em seu país apelidaram de Batman.
Sob pressão de Trump, a dupla Sheinbaum-Harfuch implementou uma estratégia agressiva de segurança dentro do país, com a singularidade, explicam analistas locais, de evitar se envolver com organizações criminosas com suspeita de implicação de figuras políticas de peso. Houve alguns curtos-circuitos, como a decisão dos EUA de retirar o visto de alguns governadores e prefeitos mexicanos sem avisar o governo. Mas a visita do secretário de Estado americano em agosto aparou arestas.
— A presidente tem cabeça fria, é muito analítica e colocou limites aos americanos desde o começo. Ao dizer “cooperação sim, submissão não”, Sheinbaum faz um aceno interno e ela mesma limita os acordos com os EUA. Foi um movimento correto e astuto — aponta Antonio Ortiz-Mena, diretor da AOM Consultores.
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Na avaliação de Guadalupe González, pesquisadora do Colégio do México, seu país é um exemplo bem-sucedido em meio às tensões de Trump com a Venezuela e a Colômbia, histórico aliado dos EUA na região até a chegada do esquerdista Gustavo Petro ao poder, em 2022. Na semana passada, quando os ataques no Caribe se intensificaram — o último bombardeio deixou 14 mortos, e um então sobrevivente foi buscado pela Marinha mexicana a cerca de 830 quilômetros de Acapulco —, Sheinbaum anunciou uma reunião com o Comando Sul dos EUA (Southcom) e o Departamento de Estado americano.
— A chave do que estamos vendo é a histórica diplomacia mexicana. O México deixou de ser um alvo para Trump após a visita de Rubio — diz a pesquisadora, enfatizando que o encontro mostrou a sintonia entre a presidente e o secretário de Estado. — O México nunca respondeu aos ataques. A saída foi cooperar para que ambos assumam que as responsabilidades devem ser compartilhadas.
Ortiz-Mena ressalta que a presidente não apenas está cooperando em temas de segurança e drogas, como conseguiu reduzir drasticamente os números da migração ilegal.
— O que estamos vendo no Caribe seria impensável no México. Além da cooperação com os EUA em temas cruciais, os americanos estão atuando em algo que nos importa muito: o tráfico de armas para o país. No caso da indústria de autopeças, nossas empresas estão profundamente integradas há 30 anos. Há muitos interesses dos dois lados.