Seu agente o advertira: “não se pega um voo para um país no dia em que ele invade o vizinho”. Mas Carrère tinha um compromisso profissional lá e, mais do que isso, sentia a necessidade de compreender o que havia acontecido com o país que ele tanto amava — e que inspirara alguns de seus maiores sucessos literários.
Carrère passou dez dias em Moscou, tempo suficiente para ver o mundo desabar ao seu redor. Novas leis puniam quem ousasse chamar a guerra de guerra, e seus amigos corriam para fugir.
Talvez o mais perturbador para um homem cuja paixão pela Rússia o levara, certa vez, a passar semanas num vilarejo 700 quilômetros a leste de Moscou (experiência narrada em “Um romance russo”) tenha sido perceber quantos russos apoiavam a guerra ou simplesmente desviavam o olhar.
“Algo dentro de mim se quebrou, e ainda está quebrado. Meu amor pela Rússia sofreu um sério golpe”, disse Carrère numa recente entrevista em seu loft em Paris, cujas paredes brancas estão cobertas por fileiras de livros.
Ele observou que tudo o que sempre o atraíra na Rússia — sua literatura rica, sua história trágica, suas personalidades fora de série — parecia agora ter culminado numa guerra brutal.
“Há uma espécie de vertiginosa depreciação dos valores russos”, afirmou.
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Essa reflexão atravessa seu novo livro, “Kolkhoze”, lançado na França em agosto. Sucesso de vendas e um dos quatro finalistas do Prêmio Goncourt, o mais prestigiado da literatura francesa, o livro é uma espécie de autobiografia que explora as raízes russas de Carrère e sua relação com a mãe, que foi a principal historiadora da Rússia na França.
A nova obra ajuda o leitor a compreender o “amor profundo” que o escritor dizia sentir pela Rússia antes da guerra levá-lo a questionar esse afeto — e as forças que o moldaram.
Em busca de respostas, Carrère viajou para a Ucrânia em guerra, para ouvir quem resistia a Moscou, e visitou a Geórgia, país do Cáucaso invadido pela Rússia em 2008. Embora tivesse um avô georgiano e uma prima que até recentemente ocupava a presidência do país, Carrère jamais o havia visitado. Seu amor pela Rússia sempre se impusera.
Sua escrita introspectiva sobre a Rússia também funcionou como uma espécie de espelho para muitos na França — a começar por sua mãe, Hélène Carrère d’Encausse. A complacência dela em relação ao Kremlin, criticada duramente no livro, revela uma antiga fascinação francesa pela Rússia, moldada por uma história comum de revolução, império e obras-primas culturais.
“Se nos interessamos tanto pela história da Rússia é porque ela reflete a nossa própria imagem”, disse Léna Mauger, editora da revista francesa Kometa, que publicou várias reportagens de Carrère sobre a Ucrânia e a Geórgia que alimentaram o novo livro.
Aos 67 anos, Carrère começou a carreira como romancista, mas dedicou os últimos 25 aos domínios da não ficção. Seus temas incluem um homem que enganou a família por 18 anos antes de assassiná-la, sua própria relação com a meditação e o julgamento dos responsáveis pelos atentados terroristas de Paris em 2015.
Ainda assim, a Rússia sempre foi uma constante em sua obra — tema de dois livros e inúmeros artigos — porque, como ele escreve nas primeiras páginas de “Kolkhoze”, “a Rússia, para o bem e para o mal, é um assunto de família”.
Sua mãe, criada por uma aristocrata russo-prussiana e um pai georgiano que conversava com ela russo, foi uma historiadora prolífica e presença constante nos debates televisivos sobre o Kremlin. Ela transmitiu essa paixão ao filho, levando-o numa viagem de pesquisa a Moscou e presenteando-o, aos 13 anos, para ler, com “O idiota”, o mergulho de 650 páginas de Dostoiévski na alma russa.
Essa formação, diz Carrère, lhe deu “a sensação de que há uma vida mais intensa” na Rússia. Ele passou a viajar com frequência ao país no fim dos anos 2000 e, atraído por personagens quixotescos, escreveu sobre um soldado húngaro da Segunda Guerra capturado pelos soviéticos e encontrado meio século depois num hospital psiquiátrico russo. Em 2011, voltou-se para Eduard Limonov, escritor e dissidente soviético que se tornara um político ultranacionalista.
Naquele momento, Vladimir Putin consolidava seu regime autocrático e alimentava ambições imperialistas, atacando a expansão da OTAN, em 2007, e ocupando um quinto do território da Geórgia no ano seguinte. Carrère, como tantos outros, deu pouca importância: via em Putin um “mafioso” com quem ainda era possível dialogar.
Sua mãe, que morreu em 2023, foi ainda mais cega, ele escreve em “Kolkhoze”: “O amor dela pela Rússia é real, visceral. A tragédia é que se transformou em indulgência por Putin e, nos últimos vinte anos, ela transmitiu continuamente a mensagem do Kremlin a sucessivos presidentes franceses”, dizendo que “a Rússia é um grande país que não pode ser julgado pelos nossos padrões, e que Putin é um homem de paz — desde que não seja humilhado, é claro”.
“Olhando para trás, percebemos que deveríamos ter entendido muito antes”, escreve Carrère. Mas ele não entendeu. Até a invasão em larga escala da Ucrânia. No dia em que a guerra começou, Carrère estava prestes a embarcar para Moscou para participar da adaptação cinematográfica de sua biografia de Limonov, dirigida por Kirill Serebrennikov, cineasta russo que mais tarde fugiria da repressão do Kremlin.
Depois de alguma hesitação, a curiosidade venceu: ele embarcou.
Em Moscou, viu “essa Rússia em guerra tomar forma”, enquanto a retórica belicosa abafava todas as outras vozes, e a propaganda do Kremlin “era absorvida com calma por muita gente”.
Para tentar compreender tudo aquilo, Carrère decidiu observar a Rússia a partir das experiências dos que estavam sob seu fogo. Primeiro viajou à Geórgia, onde reencontrou a prima Salomé Zourabichvili, ex-presidente do país, que se opunha à tomada gradual do governo por forças pró-Rússia. Foi ali que ele começou a ver a Rússia pelo prisma do colonialismo, como um país que, ao longo da história, dominou os vizinhos menores, primeiro pelo império, depois pela União Soviética, e que agora busca retomar esse domínio. “A guerra me fez perceber isso. Sinceramente, acho que nunca teria pensado na Geórgia como um país colonizado antes”, disse.
Depois, visitou a Ucrânia, juntando-se ao filósofo ucraniano Volodymyr Yermolenko em viagens às cidades de Kherson e Kharkiv, na linha de frente, no fim de 2023. Ao longo do caminho, conversaram longamente sobre os esforços ucranianos para se livrar da influência cultural russa e romper de vez com Moscou.
A experiência o abalou. Mas também o ajudou, disse, a “ver as coisas pelos olhos dos ucranianos” e entender por que Dostoiévski, com seu viés nacionalista e antiocidental, é tão rejeitado ali. Ainda assim, ele espera que, quando a guerra terminar, o acerto de contas seja mais ponderado.
Desde 2022, Carrère viajou quatro vezes para a Geórgia e outras tantas para a Ucrânia.
Continuará escrevendo sobre a Rússia? Ele não sabe. Diz querer encontrar outras raízes. “Porque um vazio se abriu”, escreveu na Kometa no fim de 2023. “Porque amei a Rússia e, por mais chocante que seja dizer isso de um povo inteiro, ainda é possível amar alguns russos, mas já não é possível amar a Rússia.”