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terça-feira, novembro 4, 2025

Pagamento para atrasar a chegada de remédios, superfaturamentos: livro revela 129 escândalos farmacêuticos (incluindo no Brasil); veja casos

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Aumento abusivo de preços, valores predatórios, formação de cartéis, acordos para exclusividade de distribuição e até pagamento para adiar a entrada de genéricos no mercado. Essas são algumas práticas ilícitas presentes em 129 casos julgados pelo mundo que ilustram as estratégias adotadas por empresas da indústria farmacêutica para evitar concorrentes, encarecer tratamentos e aumentar seus lucros.

O levantamento faz parte do livro “Condutas anticompetitivas no setor farmacêutico”, dos juristas Luiz Augusto Hoffmann e Pedro Victhor Lacerda, que será lançado nesta terça-feira pelo Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos em Brasília. Os autores analisaram processos de lugares como Estados Unidos, União Europeia, China, Índia, Japão, Austrália, Coreia do Sul, África do Sul e no Brasil.

— Essas condutas impactam o preço do produto para o consumidor final. Às vezes, vemos um remédio que teve um aumento de preço repentino e desproporcional e não entendemos o motivo. Quando olhamos para esses casos, vemos que muitas vezes isso vem de um conluio entre as empresas, de ações ilícitas. E estamos falando de tratamentos de câncer, HIV, quadros graves — diz Lacerda, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).

Esse cenário não é novo e tem se agravado, pressionando sistemas de saúde públicos e privados, conta a cardiologista, intensivista e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Ludhmila Hajjar, que escreveu o prefácio do livro:

— O tema nunca foi tão urgente. O Brasil discute simultaneamente o pagamento por valor, a política industrial em saúde, a transparência na formação de preços e a sustentabilidade das tecnologias médicas. E atravessa o ciclo mais agressivo de judicialização farmacêutica da sua história. Nenhuma reforma será sustentável enquanto persistirem práticas que distorcem preços e mantêm a sociedade presa a lógicas de dependência e opacidade. Discutir isso vai muito além da economia, é um debate civilizatório sobre o uso ético e racional dos recursos públicos e privados.

A demora para entrada de genéricos, por exemplo, impede a circulação de versões mais acessíveis de medicamentos, já que eles são obrigatoriamente ao menos 35% mais baratos no Brasil. Um estudo de pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) constatou que, na prática, eles chegam a ter até preços 59% inferiores aos remédios de referência.

— Esse é um tema de muita preocupação há muito tempo para nós que representamos a indústria nacional. São muitas estratégias usadas tanto de forma técnica, como jurídica e política, que atrasam o lançamento de genéricos. As multas são muito pequenas, e o monitoramento e punições insuficientes. É preciso uma integração maior entre os órgãos existentes e uma fiscalização mais rigorosa — diz Ana Claudia Oliveira, coordenadora da Área Biológica, Propriedade Intelectual e Inovação – Saúde Humana e Animal da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina).

Enquanto isso, a falta de concorrência mantida graças às práticas anticompetitivas levam à manutenção de preços elevados, que muitas vezes não parecem justificar o custo do desenvolvimento daquele fármaco, avalia o diretor executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), Bruno Sobral:

— Temos medicamentos hoje a milhões de reais a dose. Esses preços nos causam perplexidade, especialmente pelas margens de lucro envolvidas. A indústria usa como justificativa os investimentos no desenvolvimento, o que é razoável, mas a margem hoje para alguns remédios não justifica o custo. Essa discrepância, que tem a falta de concorrência como um fator envolvido, nos preocupa porque impacta a população. Tudo bate no bolso do consumidor e acabamos tendo um mercado menor, com menos acesso.

No novo livro, os autores enumeram alguns casos investigados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) que tiveram impactos diretos no Brasil. No de maior destaque, de 2015, a farmacêutica Eli Lilly foi condenada por ter movido ações judiciais “contraditórias e enganosas” para manter a comercialização exclusiva do medicamento oncológico Gemzar, prática conhecida como sham litigation.

Durante os anos do monopólio indevido, o Cade verificou que o remédio era vendido a R$ 540 no mercado brasileiro. No entanto, após a queda da liminar que proibia outros concorrentes, o valor caiu para R$ 189, ou seja, o preço praticado era 185% superior. A empresa foi multada em R$ 36,6 milhões.

Em nota, a Lilly afirma que a multa foi anulada pela Justiça em maio de 2023, mas que o Cade recorreu da decisão e aguarda novo julgamento. “A Lilly continua a contestar as acusações do Cade”, complementa.

Outro caso abordado no livro, de 2015, é a condenação da farmacêutica Merck por formação de cartel também para impedir a venda de medicamentos genéricos. Segundo o Cade, a empresa se reuniu com os maiores laboratórios do país para firmar acordos com o objetivo de impedir distribuidores de medicamentos de trabalhar com as versões mais baratas. A Merck foi multada em R$ 4,3 milhões.

Em nota, a empresa alegou ser “pioneira no lançamento de medicamentos genéricos no Brasil” e acreditar no seu “potencial para ampliar o acesso da população a tratamentos de qualidade”, mas não respondeu sobre a condenação do Cade.

Já no ano passado, o Conselho recomendou a condenação de quatro empresas por formação de cartel internacional que manipulava a oferta de um insumo usado para a fabricação de medicamentos antiespasmódicos desde a década de 90. A ideia era criar barreiras artificiais para dificultar o acesso ao insumo e, consequentemente, a entrada de novos concorrentes no mercado, segundo investigação do Conselho.

— A pior conduta é o cartel, que é quando concorrentes se juntam para combinar preços, dividir territórios e controlar o mercado. Dos mais de 100 casos analisados no mundo, 45 foram de cartéis. Nesse episódio, algumas empresas já foram condenadas a pagar mais de R$ 24 milhões e já tivemos condenações na União Europeia, na Austrália e na Suíça para esse mesmo cartel — diz Hoffmann, doutor em Direito Civil pela USP e pela Università di Camerino, na Itália, ex-conselheiro do Cade.

Neste ano, o órgão também condenou o Sindicato dos Hospitais e Estabelecimentos de Saúde do Mato Grosso do Sul (Sindhesul) a pagar uma multa de R$ 353,2 mil em meio a uma investigação sobre uso de tabelas com valores superfaturados, até 220% acima dos reais de mercado, como referência para reembolso de medicamentos e materiais hospitalares. Procurado, o sindicato não respondeu.

Em outro episódio, após conseguir estender a patente de um antiviral para hepatite C, a Gilead foi acusada por diversas instituições, como a Defensoria Pública da União e o Médicos Sem Fronteiras (MSF), de aumentar o valor do medicamento em 1.400%, limitando o acesso de pacientes e aumentando o gasto para o SUS. O caso, porém, foi arquivado em 2022.

“A Gilead reforça que conduz suas atividades em total conformidade com as leis e regulamentações aplicáveis, pautando sua atuação em práticas éticas, concorrência leal e no compromisso com o acesso ampliado a terapias inovadoras”, defende a empresa em nota.

A prática de sham litigation também foi atribuída à farmacêutica Astellas, acusada de tentar monopolizar o mercado de medicamentos à base de mirabegrona, usados no tratamento da síndrome da bexiga hiperativa. De acordo com a denúncia, o laboratório teria buscado registros de diversas patentes relacionadas ao mesmo princípio ativo e ajuizado diversas ações judiciais para estender seu período de exclusividade artificialmente.

O caso, porém, foi arquivado em 2023. Em nota, a empresa “reafirma seu compromisso com o cumprimento integral da legislação vigente, que garante a coexistência da livre concorrência e do direito de propriedade industrial a quem investe em inovação”.

Outro episódio de sham litigation descrito no livro foi movido pela Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos e Biossimilares (PróGenéricos) contra a farmacêutica Lundbeck, acusada de conduzir diversos processos judiciais para manter a exclusividade na venda do escitalopram, antidepressivo vendido pela empresa com o nome comercial de Lexapro. O caso também foi arquivado pelo Cade. Procurado, o laboratório não respondeu.

No exterior, uma prática comum descrita pelos autores é o pay-for-delay, em que a empresa detentora da patente paga diretamente fabricantes de genéricos para que elas atrasem o lançamento das versões concorrentes. Em um dos casos citados, nos EUA, uma empresa chegou a comprar a concorrência para depois aumentar o valor de um remédio para convulsão em bebês em 850 vezes.

Para os autores, porém, o Brasil é um país mais vulnerável a tais práticas por não haver uma integração entre os órgãos envolvidos para coibir as práticas. Eles citam de exemplo que a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), responsável por definir os preços máximos, fixa valores por vezes demasiadamente altos, o que impede que o Cade atue para julgá-los como abusivos.

— Os EUA deixam os preços muito soltos, isso faz com que os custos dos remédios lá sejam mais caros do que muitos países. No Brasil, a CMED que regula os valores, usa os EUA como referência. Então entendemos que isso leva a uma distorção dos custos e que deveria haver uma atuação maior sobre preços abusivos — defende Hoffmann.

[Fonte Original]

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