Por mais de uma década, fabricantes de spyware governamental repetem o mesmo discurso: suas tecnologias são usadas exclusivamente contra criminosos graves e terroristas, em casos extremamente limitados. A realidade documentada em centenas de casos ao redor do mundo mostra que isso não é verdade.
Jornalistas, ativistas de direitos humanos e políticos são alvos constantes dessas ferramentas — tanto em regimes autoritários quanto em democracias. O exemplo mais recente é um consultor político que trabalha para a esquerda italiana, confirmado como vítima do spyware Paragon. O caso reforça que a vigilância digital está muito além do que consideramos “ataques raros” direcionados apenas a criminosos perigosos.
O mito dos alvos seletivos
Existe um mal-entendido comum sobre quem realmente é alvo dessas tecnologias. A ideia de que apenas pessoas extremamente perigosas são vigiadas não corresponde à realidade dos fatos.
Especialistas que estudam o mercado de spyware há anos explicam que, na prática, escolher alvos é tão simples que governos acabam usando essas ferramentas para espionar uma ampla variedade de pessoas: oponentes políticos menores, ativistas locais e jornalistas investigativos. A facilidade técnica transformou isso num problema sistêmico.
Como funciona o modelo de negócio
O problema começa na estrutura de vendas. Quando uma agência de inteligência ou polícia compra spyware de empresas como NSO Group ou Paragon, o cliente paga uma taxa inicial alta para acessar a tecnologia, seguida de valores menores para atualizações e suporte técnico.
O ponto crítico está aqui: a taxa inicial é calculada pelo número de alvos que a agência pode espionar simultaneamente. Quanto mais alvos, maior o preço do pacote.
Documentos vazados da já extinta Hacking Team revelam que alguns clientes podiam ter como alvo desde algumas pessoas até um número ilimitado de dispositivos ao mesmo tempo. Sem exagero, ilimitado mesmo.
Países democráticos geralmente compram pacotes com menos alvos simultâneos. Mas não é incomum ver países com histórico problemático de direitos humanos adquirindo licenças para espionar centenas ou milhares de pessoas simultaneamente.
Dar esse tipo de capacidade para governos que já demonstram forte interesse em vigilância praticamente garante que vão espionar muito mais pessoas do que apenas criminosos e terroristas. Marrocos, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita foram todos flagrados espionando jornalistas e ativistas. Pesquisadores de segurança mantêm listas extensas de casos de abuso ao redor do mundo.
Espionagem ficou perigosamente simples
Outro fator que explica o alto número de abusos é a facilidade de uso. Spywares como o Pegasus da NSO ou o Graphite da Paragon tornaram a espionagem extremamente acessível para os operadores.
Na prática, esses sistemas funcionam como consoles simplificados. O operador digita um número de telefone e o resto acontece automaticamente. É basicamente apertar um botão para ter acesso completo à vida digital de alguém.
Pesquisadores que investigam essas empresas há décadas alertam que spyware governamental cria uma enorme tentação de abuso. A tecnologia precisa ser tratada como a ameaça séria à democracia e às eleições que realmente representa.
Falta de transparência alimenta abusos
A ausência de transparência e mecanismos de responsabilização permitiu que governos usassem essas tecnologias sem receio de consequências.Especialistas consideram particularmente preocupante o fato de que até alvos pequenos — pessoas sem grande relevância política ou criminal — estão sendo espionados.
Isso demonstra a impunidade que governos sentem ao empregar ferramentas tão invasivas contra praticamente qualquer opositor.
Na prática, se você é da oposição política, ativista ou jornalista crítico, as chances de estar sendo monitorado são reais — mesmo sem representar nenhuma ameaça criminal de fato.
Iniciativas para frear a indústria
Apesar do cenário preocupante, algumas reações começaram a surgir. A Paragon rompeu publicamente com o governo italiano em 2025, argumentando que as autoridades se recusaram a investigar os abusos envolvendo seu próprio spyware.
A NSO Group revelou em tribunal que desconectou 10 clientes governamentais nos últimos anos por abuso da tecnologia, mas se recusou a identificar quais países. Não está claro se México ou Arábia Saudita estão incluídos, apesar dos inúmeros casos documentados nesses países.
Grécia e Polônia abriram investigações sobre abusos. Os Estados Unidos, durante o governo Biden, impôs sanções contra fabricantes como Cytrox, Intellexa e NSO Group, colocando essas empresas e seus executivos em listas de bloqueio econômico. Um grupo de países ocidentais liderado por Reino Unido e França também está usando canais diplomáticos para tentar conter o mercado.
O problema é que esse mercado movimenta bilhões de dólares globalmente, com empresas dispostas a fornecer tecnologias avançadas de vigilância para governos com apetite aparentemente infinito por espionar opositores. Resta saber se essas iniciativas terão impacto real ou se são apenas gestos simbólicos.
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