Em um contexto em que os impactos climáticos já geram perdas anuais da ordem de trilhões de dólares, a adaptação, isto é, o conjunto de medidas que permite a empresas, comunidades, ecossistemas e economias a antecipar, responder e se ajustar aos impactos das mudanças climáticas, torna-se uma prioridade urgente, embora ainda profundamente subfinanciada. Conforme indicado em estudos da Climate Policy Initiative, embora a mudança do clima já mobilize mais de US$ 2 trilhões em financiamentos anualmente, a adaptação patina com menos de 4% desse total, financiada, majoritariamente por recursos públicos.
Reconhecendo essa urgência, formou-se uma parceria entre o Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces), Morphosis, Instituto Itaúsa, Paulson Institute e Basilinna, dedicada a identificar quais instrumentos e medidas de política pública podem catalisar mercados capazes de entregar soluções de adaptação climática com retorno financeiro, condição essencial para atrair o capital privado necessário e garantir inovação, escala, acessibilidade e desenvolvimento. Os relatórios produzidos pela parceria evidenciam lacunas estruturais que limitam a expansão da adaptação no mundo, mas também revelam um potencial inexplorado de transformar riscos climáticos em oportunidades econômicas. Acima de tudo, destacam a necessidade de criar caminhos para que o investimento em adaptação seja viabilizado também pelos mercados, e não apenas por recursos públicos.
O primeiro alerta vem de “Financiamento para Adaptação às Mudanças Climáticas: Dos Fluxos Monitorados ao Potencial Inexplorado“. Nesse relatório, a partir da análise de dados secundários, os autores apresentam um diagnóstico preocupante: em 2023, os fluxos financeiros identificados como destinados à adaptação somaram apenas US$ 65 bilhões frente a uma necessidade de US$ 222 bilhões por ano até 2030 somente para que países em desenvolvimento reduzam os impactos econômicos das mudanças climáticas. Mas o verdadeiro desafio está no “potencial não explorado”: modelos macroeconômicos preveem perdas relacionadas ao clima de 19% do PIB global até 2050, ou 46% até 2100.
Essas lacunas de financiamento não se explicam apenas pelo volume insuficiente de recursos: refletem limitações estruturais do próprio ecossistema financeiro voltado à adaptação. “A adaptação não é custo, mas investimento em resiliência”, enfatizam os pesquisadores, ao destacar a predominância de métricas inconsistentes, definições díspares e subnotificação de iniciativas de “adaptação inconsciente”, que acabam mascarando contribuições indiretas relevantes. O resultado é um quadro em que externalidades positivas, tais como melhora de saúde pública ou redução de perdas econômicas, permanecem invisíveis, enquanto riscos climáticos, crônicos e agudos são mal precificados. Isso dificulta a viabilidade financeira de projetos mesmo em estágio comercial ou pré-comercial. Inovações como títulos verdes e instrumentos de blended finance seguem subutilizadas para adaptação, e bancos de desenvolvimento e doadores ainda não criaram condições institucionais adequadas para melhorar o rastreamento dos fluxos financeiros destinados a esse fim.
Consequentemente, emerge uma mensagem inequívoca: é preciso reposicionar a adaptação como motor econômico, e não como apêndice da mitigação, para destravar capital privado e evitar impactos que recaem de forma desproporcional sobre nações e comunidades mais vulneráveis.
Essa reorientação ganha forma concreta em um segundo documento, “O surgimento da economia de adaptação: Investindo em Adaptação e Resiliência em um mundo com temperatura média acima de 1,5°C“, que apresenta um Framework de Políticas Públicas para a Economia da Adaptação. Trata-se de uma estrutura composta por sete domínios interligados de política pública que, juntos, pretendem transformar a adaptação de um conjunto de projetos isolados em um ecossistema econômico inteiro. São eles: (1) Resiliência econômica; (2) Expectativas de risco e mudança comportamental; (3) Capacidade do mercado financeiro; (4) Empreendedorismo, inovação e difusão tecnológica; (5) Qualidade e robustez da infraestrutura; (6) Eficiência e integridade da governança; e (7) Coesão social.
O framework propõe que, ao atuar simultaneamente nesses sete eixos, os países criem demanda previsível por soluções de adaptação, reduzam incertezas para investidores e gerem retornos financeiros e sociais mensuráveis, de maneira similar ao que ocorreu com a economia de energia renovável nas últimas duas décadas. Instrumentos como tarifas preferenciais para infraestrutura resiliente, empréstimos condicionados a metas de adaptação e obrigações de relato de riscos físicos climáticos em balanços empresariais são exemplos práticos desse modelo em ação e já foram empregados com sucesso em outros contextos, como na promoção de energias renováveis.
O foco do framework em áreas transversais de políticas públicas procura criar as bases, inclusive de coordenação e diálogo institucional, sobre as quais uma economia da adaptação possa ser construída. Essa abordagem é particularmente relevante em um cenário no qual o espaço fiscal está cada vez mais comprimido, limitando a capacidade dos governos de financiar diretamente a adaptação. Para ilustrar essa restrição, a razão média entre dívida pública e PIB nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) praticamente dobrou na última década, superando 110%. Isso reforça que o avanço de uma “economia da adaptação”, que tem potencial de crescer para algo entre US$ 0,5 e US$ 1,3 trilhão até 2030, depende de criar condições para ampliar substancialmente o financiamento privado no setor.
Nesse mesmo sentido, um terceiro relatório, “Perspectivas fragmentadas, financiamento fragmentado: Um estudo de caso sobre o desafio da adaptação no Brasil“, ilustra o abismo entre o ideal e a realidade no caso brasileiro. O país, com sua vasta exposição a eventos extremos, sofre com a concorrência de perspectivas fragmentadas que acabam por pulverizar os esforços e o financiamento em diversas iniciativas desconexas e de baixa efetividade. Ao passo que grandes empresas já investem em resiliência, mesmo que sem rotular essas medidas como “adaptação”, pequenas e médias empresas enfrentam barreiras estruturais e informacionais, e startups lutam para crescer devido à falta de financiamento específico.
As instituições financeiras, por sua vez, demonstram engajamento limitado com a agenda, em grande medida devido à escassez de projetos de adaptação bem estruturados, à falta de dados e informações climáticas confiáveis e à presença de sinais políticos fragmentados. Na prática, os retornos associados a projetos de adaptação permanecem pouco claros ou desconhecidos, o que leva o mercado a perceber que a adaptação tem baixo ou nenhum apelo comercial na maioria dos contextos. Já o poder público frequentemente parte do diagnóstico de que o problema está na ausência de novos instrumentos financeiros e tende a concentrar sua atuação em dimensões sociais da adaptação. Sem uma compreensão comum sobre a natureza do desafio e sem convergência em torno de soluções viáveis e aceitáveis, os diferentes atores têm dificuldade para formar coalizões ou impulsionar reformas estruturais. Em consequência, multiplicam-se iniciativas desconectadas, algumas voltadas para vulnerabilidades sociais, outras para inovação financeira, que, embora relevantes, não conseguem enfrentar a natureza sistêmica do problema.
Em síntese, os estudos da parceria entre FGVces, Morphosis, Instituto Itaúsa, Paulson Institute e Basilinna formam um roteiro completo: partem do diagnóstico das causas do subfinanciamento crônico da adaptação às mudanças climáticas; avançam na proposição de um framework para construir uma “economia da adaptação” lucrativa para provedores de soluções e investidores e inclusiva para todos; e aprofundam a análise em casos nacionais, como o do Brasil, país que, apesar das fragmentações atuais, reúne as condições (tamanho de mercado, diversidade climática e urgência) para servir como laboratório global dessa nova economia. Aplicar o framework no Brasil não seria apenas remediar vulnerabilidades, mas posicionar o país na vanguarda de um tema que, até 2030, pode movimentar centenas de bilhões de dólares anuais. Em 2025, na esteira da COP30 em Belém, a escolha é clara: seguir tratando a adaptação como um componente residual e subfinanciado da agenda climática ou reconhecê-la como vetor estratégico de desenvolvimento, capaz de mobilizar capital, inovação e ganhos econômicos.
- Gustavo Velloso Breviglieri é pesquisador Sênior do Programa de Finanças Sustentáveis do Centro de Estudos em Sustentabilidade (FGVces) da FGV EAESP. Economista. Mestre em Políticas e Desenvolvimento Humano, com especialização em Risco e Vulnerabilidade, pelas Universidades de Maastricht e das Nações Unidas (UNU-MERIT).
- Annelise Vendramini é professora e pesquisadora em Finanças Sustentáveis da EAESP FGV.
- Simon Zadek é sócio-Diretor da Morphosis, Membro do Clube de Roma, Senior Fellow no Paulson Institute, Conselheiro Sênior da Taskforce on Nature-related Financial Disclosure (TNFD) e Conselheiro Sênior da NatureFinance.
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