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terça-feira, dezembro 16, 2025

Rilke – 150 anos depois – Revista Cult

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“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer”.
Rainer Maria Rilke, 1903

Rainer Maria Rilke (1875-1926) é um antídoto poderoso neste século, marcado pela aceleração, pela superficialidade e pela saturação de estímulos visuais e sensoriais, no qual um tsunami de hedonismo nos afoga com o passar de um dedo. A obra de Rilke tem o poder de nos fazer perceber a necessidade de frear nosso ritmo, cada vez mais tecnológico, para que possamos observar e nomear àquilo que se despedaça ou se esconde sob as aparências do simulacro sagrado de todo dia. A finitude de tudo, da vida, do que é belo. Aquilo que muitas vezes passa despercebido sempre foi o seu alvo, a sua mira: [Descre]ver o invisível, o mundo sutil. 150 anos depois do seu nascimento, o legado de Rilke continua a ter enorme relevância e atravessa o tempo e gerações. Ele, que nasceu e morreu no mesmo mês, dezembro, é considerado um dos pilares da poesia moderna, não apenas em língua alemã.

Nascido em Praga, quando a Boêmia integrava o império austro-húngaro, foi educado pela mãe, uma católica fervorosa que nos primeiros anos de vida do filho o vestia como menina. Precoce, seu primeiro livro foi publicado aos 19 anos, Vida e canções (1894); e nos anos seguintes seguiram outros como O Livro das Horas (1905), Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), seu único romance, de cunho autobiográfico, escrito quando ele morava em Paris; Elegias de Duino (1922) e os Sonetos a Orfeu (1923). Conhecido por ser extremamente discreto, Rilke era lendário pela sua paixão pela troca de missivas com amigos e também pessoas que mal conhecia. Alguns estudiosos de sua vida e obra dizem que ele chegou a escrever 30 mil cartas. Foi por intermédio desse seu fascínio que surgiu o seu livro mais famoso. Cartas a um jovem poeta foi publicado em 1929, três anos após a sua morte devido à leucemia, e se tornou um best-seller mundial com o passar do tempo. A obra veio a público por intermédio do também poeta, Franz Xaver Kappus, seu interlocutor na troca de missivas iniciada quando ele tinha 19 anos, e que aconteceu entre 1903 e 1908 (a 1ª carta, de 1902, não foi preservada). Em suma, o livro é uma meditação sobre a criação, a solidão e o amadurecimento interior. Uma forma de resistência espiritual diante da fugacidade do presente, lembrando que a arte e a vida exigem tempo, escuta e uma delicada fidelidade a si mesmo. A mensagem que essas cartas abrigam reverbera até hoje como um chamado – mais do que estético – ético e existencial.

Os amigos, os encontros

Rilke conheceu e conviveu com alguns dos maiores nomes da cultura do seu tempo. Aos 21 anos conheceu a russa Lou Andreas-Salomé que era amiga próxima e musa intelectual de nada mais, nada menos que Nietzsche, que disse que ela era “de longe, a pessoa mais brilhante que conheci”. Tornaram-se amigos e amantes, e foi ela que lhe ensinou russo para que Rilke pudesse ler no original Tolstói (a quem, mais tarde ambos conheceram) e Pushkin. Também foi contemporâneo de outros dois titãs da literatura europeia como Thomas Mann (que em 1901 havia publicado “Os Buddenbrooks”, romance que o levou a ganhar em 1929 o Nobel de Literatura) e Robert Musil, cujo livro de estreia foi o romance de formação “O Jovem Törless” (1906). Mas o encontro que foi um tipo de divisor de águas na sua vida foi quando ele trabalhou como secretário de Auguste Rodin, que admirava profundamente, especialmente devido à maneira como ele dava vida à matéria por intermédio de suas esculturas. Em 1903 é publicado o ensaio de Rilke dedicado ao escultor (o texto foi publicado no Brasil em 2003 pela editora Nova Alexandria), no qual afirma o quanto a obra do francês influenciou sua percepção artística. Dois anos depois torna-se seu secretário, mas a relação que beirava a veneração acabou em um entrevero entre ambos. Quem quiser saber mais sobre a relação dos dois grandes criadores, sugiro a leitura do livro “Poemas e pedras: A relação entre a escultura e a poesia partindo de Rodin e Rilke” (2011, Edusp), de Rita Rios. Rilke também conheceu o pai da psicanálise, Freud, que escreveu em 1915 um ensaio chamado “Sobre a transitoriedade”, no qual logo no início cita o encontro com o poeta já muito famoso na época. Em certo momento do texto, ele parece reverberar o pensamento de Rilke, quando diz que “o valor da transitoriedade é um valor de raridade no tempo. A limitação na possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade”.

Rilke e Cézanne

No período em que morava em Paris, escreveu suas “Cartas sobre Cézanne” (1907), que narram suas visitas à exposição do pintor no Grand Palais em Paris. Para ele, a obra do francês evidenciava uma ontologia da visão. Rilke, que perseguia o “invisível”, reconhece em Cézanne o artista que o torna tangível. E embora o pintor tenha se iniciado no Impressionismo (movimento artístico surgido no final do século 19), foi além dele criando uma ponte com o cubismo (que surgiu no início do século seguinte), o que lhe rendeu o título de pós-impressionista. Para Matisse e Picasso ele era o “pai de todos nós”. Vale lembrar que uma década antes desse encontro com a obra do francês, Rilke havia estudado história da arte quando em 1896 ingressou na Universidade de Munique. Ambos constroem uma poética da atenção. De se deter na demora diante das coisas, do mundo. Um aprendizado da paciência. É como se  Cézanne pintasse o interstício entre o olho e o objeto retratado e Rilke escrevesse sobre o interstício entre o ser e a palavra.

O [in]cognoscível

Rilke nasceu em Praga, mas morou em diferentes países e línguas. Cidadão do mundo, passou longos períodos na Dinamarca, Egito, Itália e Rússia; e morou na França e na Suíça, onde morreu já era consagrado como um autor canônico. A solidão para ele era um fator decisivo para a escrita, num sentido quase religioso. Seu legado literário nos oferta algo como uma metafísica espiritual e existencial, na qual as suas (e também nossas) angústias, anseios, o mundo, o tempo e sua passagem fossem sentidos e vistos com reverência. Há algo de místico na maneira como descreve o mundo. Nele, cada corpo, objeto e principalmente a palavra abriga algo que quer ser revelado e não só representado. 

Nessa nossa era digital, permeada por pressa e superficialidade, como acessar a nossa capacidade de maravilhamento, o silêncio, o nosso interior assolado por camadas e camadas do cotidiano implacável? Ler Rilke é ser convidado a pausar, refletir, abraçar a realidade em sua complexidade. Um convite à escuta, à contemplação e ao espanto diante do mundo, como pudéssemos evocar uma poética da atenção, do mistério, do eterno no efêmero. No olhar rilkeano há uma ética da contemplação e da delicadeza. Emulando a frase de Paul Klee, “a arte não reproduz o visível, ela torna visível”; Rilke foi um dos primeiros poetas modernos a compreender que a arte não reproduz o visível, mas torna o invisível cognoscível.  Ela revela o mistério do sublime.

Jurandy Valença, novembro de 2025.

Jurandy Valença é curador, jornalista e gestor cultural. Foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade, diretor adjunto do CCSP, coordenador dos centros culturais e teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e diretor de projetos do Instituto Cultural Hilda Hilst



[Fonte Original]

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