Em “Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out”, título brasileiro de “Wake Up Dead Man: A Knives Out Mystery”, Rian Johnson reúne Daniel Craig, Josh O’Connor e Glenn Close para contar a história de um crime aparentemente impossível em Our Lady of Perpetual Fortitude, paróquia rural em upstate New York. Durante uma celebração de Sexta-Feira Santa, o monsenhor Jefferson Wicks, interpretado por Josh Brolin, cai morto num pequeno depósito ao lado do púlpito, esfaqueado pelas costas com uma lâmina improvisada a partir de um enfeite em forma de cabeça de diabo. O jovem padre Jud Duplenticy, ex-boxeador enviado para auxiliar Wicks depois de agredir um diácono, torna-se o principal suspeito, e a entrada de Benoit Blanc, novamente vivido por Daniel Craig, transforma a crise espiritual da cidade em investigação criminal num terreno em que qualquer conclusão tem peso religioso.
Antes que a faca apareça em cena, o filme dedica tempo à dinâmica entre Jud e Wicks. O padre mais jovem chega à paróquia carregando o fardo de ter matado um adversário no ringue e de ter perdido o controle mais uma vez ao socar um colega de batina. Essa biografia recente o aproxima de uma parte dos fiéis, que enxergam honestidade numa figura capaz de admitir queda, mas o coloca em rota de colisão com o monsenhor, herdeiro de uma linhagem marcada por controle e amarras emocionais. O avô, Reverend Prentice Wicks, obrigou a filha Grace a permanecer na igreja sob promessa de herança; o dinheiro desapareceu, ela destruiu o crucifixo principal e Jefferson se recusa a substituí-lo, preferindo manter a ausência como lembrete permanente. Esse passado não serve apenas como curiosidade: é a base de um ressentimento que alimenta a retórica dura do púlpito e ajuda a explicar por que a igreja se esvazia, enquanto um núcleo mais radical se apega ainda mais ao discurso inflamado.
Quando o assassinato enfim acontece, Johnson abraça a velha tentação da sala trancada. Wicks se afasta por instantes da liturgia, entra no depósito, o espaço permanece fechado e, pouco depois, o corpo é encontrado com a lâmina cravada nas costas. Nada indica a presença de um terceiro elemento no cômodo, e a arma é justamente o adorno que Jud havia roubado de um bar local e arremessado contra uma janela da própria igreja. A combinação de gesto registrado, histórico violento e desentendimentos recentes com o superior cria uma narrativa simples demais. Para boa parte daquela comunidade, faz sentido aceitar que o padre impulsivo tenha explodido de novo; questionar essa versão implicaria encarar a possibilidade de que o problema é maior que um indivíduo. É nesse ponto que o filme começa a deslocar o foco do “quem” para o “por quê”.
Entre fé, suspeitos e versões convenientes
A chefe de polícia Geraldine Scott, interpretada por Mila Kunis, percebe o tamanho do problema e chama Benoit Blanc não por acreditar em crime sobrenatural, mas por entender que a morte de um monsenhor conservador em circunstâncias estranhas pode reverberar muito além da cidade. Blanc chega de fora, sem vínculo com a igreja, e rapidamente percebe que Jud é mais interessante como parceiro do que como culpado. Eles passam a circular juntos entre os espaços-chave: o cemitério em declive, o mausoléu da família Wicks, o bar onde o enfeite diabólico foi roubado, as casas dos fiéis mais assíduos. Cada deslocamento abre o leque de suspeitos: Martha Delacroix, administradora da paróquia vivida por Glenn Close; Samson Holt, zelador interpretado por Thomas Haden Church; o médico Nat Sharp, de Jeremy Renner; a advogada Vera Draven e o filho, Cy; a ex-violoncelista Simone Vivane, interpretada por Cailee Spaeny; o escritor Lee Ross, vivido por Andrew Scott. As entrevistas não são apenas exercícios de excentricidade; cada fala traz uma peça de uma história de poder e expectativa em torno daquela igreja.
Com o avanço da investigação, o caso se expande além do primeiro corpo. A herança desaparecida de Prentice Wicks, o papel de Martha na preservação de segredos, a ambição política de Cy, a devoção desconfortável de alguns paroquianos e a figura médica de Nat se entrelaçam até gerar novos episódios de violência. Blanc e Jud chegam à casa do médico e encontram mais do que esperavam; o mausoléu deixa de ser apenas lugar de memória; o discurso de milagre e de ressurreição é usado para encobrir decisões muito concretas. Johnson mantém a estrutura do quebra-cabeça, com explicações parciais e reconstituições, mas permite que o detetive reconheça lacunas. Há um momento em que o próprio Blanc admite não conseguir explicar tudo o que viu, especialmente um episódio em que Wicks parece ter sido visto vivo depois de morto. Essa falha controlada no raciocínio lógico abre espaço para que o filme trate a fé como algo mais complexo do que uma simples ilusão coletiva.
A igreja como corpo, espaço e sintoma
Dentro da igreja, a fotografia de Steve Yedlin e a direção de arte transformam o espaço num corpo inquieto. Vitrais filtram a luz de modo quase clínico sobre rostos cansados, corredores estreitos prolongam conversas que ninguém quer ter, o crucifixo ausente domina o enquadramento tanto quanto um objeto físico o faria. O cemitério ao redor, com o mausoléu dos Wicks numa posição mais alta, cria a sensação de que a família observa tudo de cima, mesmo quando não aparece em quadro. A trilha de Nathan Johnson prefere acentuar momentos de dúvida e silêncio a sublinhar revelações com fanfarra. A decisão de filmar exteriores na Holy Innocents Church, em High Beach, e de construir interiores em estúdio, em Leavesden, aproxima o filme de uma tradição gótica sem que ele abandone a textura de cidade de interior norte-americana, que continua reconhecível nos detalhes de bar, rua, carro, roupa.
Festivais, circulação controlada e a pergunta final
O caminho de lançamento de “Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out” acompanha esse equilíbrio entre popular e sofisticado. A estreia mundial em Toronto coloca o filme imediatamente sob o olhar de plateias de festival; a apresentação de abertura no BFI London Film Festival o encaixa na vitrine de gala de um dos eventos mais prestigiosos do calendário; o encerramento no SCAD Savannah Film Festival reforça o interesse de um circuito que conversa diretamente com quem estuda cinema. Em paralelo, há sessões de pré-estreia em Los Angeles e Nova York, com inscrição antecipada, encontros promovidos em parceria com rádios e instituições culturais, exibições seguidas de debates organizados por guildas profissionais e associações de roteiristas e diretores. Só depois desse percurso segmentado o filme chega ao público geral, em alguns cinemas de programação selecionada e, em seguida, na Netflix, ainda cercado pela aura de “caso especial” construída por essa estratégia de circulação controlada.
Rian Johnson costura tudo isso com atenção às consequências. A morte de Wicks não é tratada como mero gatilho para truques engenhosos; ela reorganiza a vida de uma cidade que se acostumou a terceirizar decisões morais para uma figura de autoridade. O passado da família Wicks deixa de ser anedota para funcionar como explicação concreta de por que aquela comunidade permaneceu amarrada por tanto tempo; Jud, com sua história de violência e busca por perdão, ocupa o espaço incômodo de quem acredita e, ao mesmo tempo, se recusa a aceitar que “fé” signifique submissão cega; Blanc, pela primeira vez na série, parece afetado por algo além do prazer intelectual do enigma. Quando o detetive enfim apresenta uma versão convincente dos fatos, o que se impõe não é a sensação confortável de jogo concluído, mas a pergunta incômoda que fica pairando sobre personagens e espectadores: diante de uma narrativa reconfortante que preserva a rotina e de uma verdade que exige mudança real, qual delas uma comunidade está disposta a acolher?
Filme:
Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out
Diretor:
Rian Johnson
Ano:
2025
Gênero:
Crime/Drama/Mistério/Thriller
Avaliação:
9/10
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Amanda Silva
★★★★★★★★★★