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sexta-feira, dezembro 26, 2025

Crítica | Dias de Areia – Plano Crítico

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Apesar de envolvida em quadrinhos desde a adolescência e de ter criado a tira diária de jornal Snippers, publicada no jornal holandês Metro de 2012 a 2017, foi apenas em 2021, com a publicação da graphic novel Dias de Areia pela editora franco belga Dargaud, que a holandesa Aimée de Jongh realmente despontou para o mundo das HQs. E o destaque que ela obteve com sua obra foi mais do que merecido, pois o que ela faz é uma excelente fusão de trabalho jornalístico histórico com uma narrativa ficcional focada no jovem fotógrafo John Clark, de 22 anos, que é contratado por uma agência governamental dos EUA durante a Grande Depressão para documentar com imagens o devastador Dust Bowl – nome dado às devastadoras tempestades de poeira ocorridas no meio oeste americano e parte do Canadá durante os anos 30 por uma combinação de fatores naturais e humanos – na região do panhandle, ou “cabo de panela”, um curioso pedaço do mapa do estado de Oklahoma que realmente parece ser o que a descrição indica e que era conhecida como Terra de Ninguém, na época.

Aimée de Jongh partiu de um minucioso trabalho de pesquisa que mergulhou exatamente nas fotografias tiradas na época, algumas delas muito famosas e marcantes até hoje em dia, para construir uma narrativa eminentemente visual que é também uma jornada de crescimento e autoconhecimento de seu protagonista, que tem um passado complexo com seu pai, que também era fotógrafo, em uma combinação delicada de abordagem micro e macro que tem um efeito, nos quadrinhos, muito semelhante ao que John Steinbeck fez na literatura com o clássico As Vinhas da Ira. Inicialmente seguindo um roteiro do que seu empregador quer que ele fotografe, John não demora a perceber que a abordagem fria e distante pretendida é impossível para ele e, na medida em que ele se envolve com a empobrecida, mas valorosa população local de fazendeiros, ele percebe que apenas capturar fatos estéreis torna todo seu trabalho vazio e nada recompensador.

A roteirista e artista conta uma história de beleza e delicadeza humanas em meio à ruína, de vida cercada pela morte e pela desesperança, de perseverança em meio ao abandono completo de um estado que investe recursos em fotografias para a documentação desse momento histórico, percebendo sua gravidade, mas não em fazer algo de concreto para aqueles que vivem ali, cercados de poeira, areia e mal sobrevivendo com o pouco de comida e água que resta. Entre sua amizade com uma  criança esperta e sua conexão – talvez amor – com uma jovem grávida que teve seus pulmões afetados pelas partículas suspensas no ar, John Clark vê uma outra face dos Estados Unidos, uma face escondida, por vezes romantizada, mas que ele aos poucos percebe ser a que verdadeiramente conta em contraste profundo com sua vida urbana na capital do país.

Os desenhos de Aimée de Jongh são, em poucas palavras, hipnotizantes e arrebatadores do tipo que dá vontade de ficar admirando muito tempo depois de a leitura dos balões de fala acabar. Inspirada pelos arquivos fotográficos da época e certamente também por filmagens, ela aborda sua história com traços realistas fortes, sem medo de variar entre panorâmicas de duas páginas e close-ups extremos ou mesmo de experimentar com estilos mais cru em momentos de tempestade de areia ou páginas inteiras simples, como a completamente branca em que tudo o que vemos é um coelho correndo. Há muito dinamismo no que ela desenha, mesmo que, claro, Dias de Areia não seja uma graphic novel de ação, assim como há muito sentimento. As surpresas, realizações, alegrias e tristezas de seu protagonista são genuínas, profundas, e o leitor percebe o quanto o que ele testemunha com seus olhos, mas também através da lente de sua câmera, modifica-o o profundamente. De um jovem adulto relativamente inocente, nasce um homem que compreende as injustiças de seu país e, mais ainda, quem exatamente ele é ou, no mínimo, quem ele não mais quer ser.

Dias de Areia é um impressionantemente cuidadoso relato ficcional de uma era que alterou profundamente as dinâmicas de um país de proporções continentais, dando início a um processo irreversível de concentração de poder nas mãos de poucos que Aimée de Jongh não aborda diretamente, mas deixa em mais do que apensa entrelinhas de seus belíssimos painéis que retratam o fim do mundo como ele era conhecido por milhares de pessoas castigadas pela natureza, pela exploração irresponsável e, sobretudo, por uma lógica injusta que os oprime e expulsa de lares ancestrais. John Clark é ficcional, mas sua transformação é muito real e de uma sensibilidade ímpar.

Dias de Areia (Jours de Sable – França/Bélgica – 2021)
Roteiro e arte: Aimée de Jongh
Editora original: Dargaud
Data original de publicação: 21 de maio de 2021
Editora no Brasil: Editora Nemo
Data de publicação no Brasil: 12 de agosto de 2022
Tradução: Bruno Ferreira Castro, Fernando Scheibe
Páginas: 288



[Fonte Original]

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