“Events occur in real time”
Entre o final dos anos 90 e a década de 2010, a televisão vivenciou uma revolução em sua linguagem e ambição. Longe das estruturas narrativas estáticas, do caráter procedural simples e do ritmo novelesco, as produções começaram a absorver técnicas, orçamentos e a complexidade temática tipicamente associadas ao cinema. Esse movimento, que podemos chamar de “cinematografização da TV”, representou uma virada cultural que transformou a televisão em um meio de expressão mais autoral, esteticamente ousado e narrativamente denso.
Em meio aos muitos marcos dessa era, poucos são tão estruturalmente inovadores e, ao mesmo tempo, tão injustamente esquecidos quanto 24 Horas. Seu formato, praticamente inédito, de narrar uma história de ação em “tempo real”, no qual cada episódio corresponde a uma hora do dia em que o agente Jack Bauer (Kiefer Sutherland) precisava impedir um atentado terrorista contra os Estados Unidos, reinventou a gramática da TV aberta. No entanto, ao contrário de séries da HBO, como Sopranos e The Wire, que são historicamente celebradas por elevarem o patamar qualitativo da televisão, a criação de Joel Surnow e Robert Cochran nunca alcançou o mesmo prestígio.
Muito por ser relegada à categoria de “ação”, como se a excelência não pudesse residir nesses gêneros, essa subestimação deriva, sobretudo, do contexto histórico que involuntariamente comprometeu a força de seu legado. De um lado, as limitações da TV como negócio (intervalos fixos/exigências comerciais) e a necessidade de agradar a um público habituado a narrativas facilmente digeríveis dificultavam a manutenção da tensão estrutural. De outro, o momento geopolítico da sua estreia que ocorreu poucas semanas após os ataques de 11 de setembro. Embora o piloto tenha sido gravado meses antes, inevitavelmente, a série se tornou um espelho sombrio dos medos imediatos da nação e um bode expiatório para debates éticos e políticos que a sociedade americana ainda não sabia como conduzir. Sua recepção foi, portanto, desviada do mérito formal para o peso de um trauma coletivo.
Não obstante, mesmo confrontando um modelo de exibição semanal que diluía a tensão e tendo sua relevância formal ofuscada pelo panorama do atentado, a série demonstrou uma capacidade ímpar de reinvenção. Ao longo de nove temporadas, ela soube não apenas manter a chama da inovação estrutural acesa, mas também ajustar-se e evoluir em seu âmbito temático e narrativo. Mais do que isso, sua estrutura ajudou a redefinir a experiência de consumo de séries ao criar um impulso quase automático de continuidade, antecipando o fenômeno do binge-watch – em que o público assiste seis, sete, oito episódios em sequência movido por um desejo quase compulsivo de ver o próximo capítulo –, pavimentando o caminho para um modelo de narrativa que a indústria adotaria amplamente anos depois.
“We’re running out of time.”
Embora obras anteriores, como Matar ou Morrer (1952) ou episódios isolados de séries como *M*A*S*H*, ER ou The West Wing, tivessem flertado com a narrativa em tempo contínuo como artifício de tensão, nenhuma produção havia se comprometido integralmente com essa lógica por uma temporada inteira. Em 24 Horas, a escolha do formato vai além de um mero artifício; converte a cronologia de eventos em um motor dramático e no pilar que sustenta toda a arquitetura estilística da obra.
Preencher essas vinte e quatro horas com conteúdo denso e ininterrupto, respeitando a lógica de que tudo deve se passar em um único dia, impulsionou os roteiristas a um alto nível de engenhosidade. Tudo era orquestrado para manter no ar a sufocante dúvida sobre como aquelas situações poderiam ser contornadas em tão pouco tempo, sem que se perdesse o senso de verossimilhança. Por mais improváveis que parecessem os sucessivos impasses, cada um era articulado com uma lógica interna que fazia o público acreditar que aquele turbilhão de contratempos não só poderia acontecer, como era, de certo modo, iminente.
Este acerto deve-se, em grande parte, à sua montagem hiperdinâmica, caracterizada por um fluxo intenso de cortes rápidos, filmagens com câmera na mão em planos fechado e o uso dos múltiplos enquadramentos dispostos simultaneamente na tela – as chamadas split screens. Para além de ser um estilo e identidade visual marcantes, o recurso colocava em evidência o efeito de causa e consequência das ações dos personagens em tempo real. Enquanto Jack perseguia um suspeito em campo, agentes da CTU rastreavam uma nova pista e o presidente tomava decisões que poderiam favorecer ou comprometer as negociações, dependendo do que estivesse prestes a acontecer do outro lado da tela.
Essa justaposição de diferentes núcleos da narrativa em um único “enquadramento ampliado” criava uma densidade de informação que elevava a aposta dramática e intensificava a sensação de ansiedade na ação. Essa que não era filmada não era filmada de forma coreografada ou elegante, mas sim desesperada e caótica, ainda que controlada, aproximando-se da linguagem que Paul Greengrass adotaria pouco depois na trilogia Bourne, em que o tremor da câmera e a fotografia granulada traziam um caos calculado para reforçar a imersão do espectador no nervosismo da sequência de acontecimentos. Nesse sentido, a montagem também antecipava os momentos exatos de cortes para os intervalos comerciais, com a inserção do relógio digital na tela pontuando a hora precisa de cada acontecimento, uma solução brilhante para manter a continuidade e não quebrar a imersão.
A contagem regressiva forçava o público a uma atenção redobrada entre os blocos, quase como um lembrete inconsciente de que não há tempo para elipses, pausas ou respiros: Tudo acontecia ‘agora’. De tão bem executada, essa engenharia formal da urgência garantiu à série um nível de regularidade qualitativa altíssimo ao longo das temporadas. Mesmo quando o roteiro recorre a elementos repetidos – o espião infiltrado na CTU, a troca de presidentes no meio da temporada, o sequestro de um personagem crucial – a forma como cada um desses elementos era inserido em sua trama específica e articulado ao eixo central do arco anual fazia com que se mantivessem relevantes e renovados.
A lógica acumulativa de tensão, estruturada a partir das vinte e quatro horas de cada dia, expandia-se para a trajetória das temporadas, que se conectam não apenas na história, mas também nos debates éticos sobre segurança nacional, as contradições morais da sociedade americana e no arco de desenvolvimento dos personagens, carregando as marcas e as escolhas de cada emergência enfrentada.
“I did what I had to do.”

Se a estrutura em tempo real é o mecanismo que move 24 Horas, seus personagens são o combustível emocional que dá sentido a esse movimento. No centro desse universo está Jack Bauer, uma das figuras mais emblemáticas da história da televisão. A série constrói ao seu redor um estudo complexo sobre o sacrifício e a erosão progressiva das convicções humanas quando submetidas repetidamente a pressões extremas. Longe do arquétipo do herói resoluto e inabalável, Jack é uma figura ambígua, forçada hora após hora a enfrentar dilemas impossíveis que exigem respostas imediatas, mesmo quando o custo moral é altíssimo.
Jack é movido por um senso de responsabilidade e uma tendência à insubordinação que, frequentemente, o empurram para a autodestruição. É essa dimensão emocional que orienta o seu pragmatismo e torna a sua figura tão impactante. Ele é, simultaneamente, o salvador do dia e o homem dilacerado pelo preço dessa salvação, tomando decisões que deixam cicatrizes profundas tanto nele quanto naqueles que o cercam. O roteiro insere-o num ciclo de degradação física e moral que poucas obras do audiovisual se dispuseram a retratar com tamanha intensidade. Há uma sensação crescente de impotência que se soma às suas dores: a perda de familiares e aliados, traições vindas de onde menos espera, a corrupção interna testemunhada repetidas vezes e o fardo de pagar pelos erros alheios, tornando-se muitas vezes um foragido tratado como inimigo pelo próprio sistema que tenta proteger. Tudo isto sob a percepção constante de que a hora seguinte exigirá outro sacrifício, talvez maior que o anterior.
Embora exista em Jack um lado “brucutu” protagonista de ação, capaz de proezas físicas de dar inveja a ícones dos anos 80 no auge, como Stallone, Schwarzenegger e Bruce Willis, a série mantém-no dentro de um realismo que o torna palpável. Ele desarma bombas improvisando ferramentas faltando poucos minutos para explodir, derruba grupos de terroristas sozinho e armado apenas com uma pistola, identifica traidores com uma intuição quase instintiva, se infiltra em territórios hostis em minutos, mas também comete erros, enfrenta hesitações e precisa agir contra colegas ou inocentes quando a cadeia de comando se mostra comprometida. Sobrevive a quedas, tiros, explosões, envenenamentos e facadas, mas cansa, fica ferido, se abala e chega ao colapso emocional. Para cada ação extraordinária, seu corpo e sua mente reagem como os de qualquer pessoa e carregam o peso psicológico inerente à sua humanidade.
A interpretação de Kiefer Sutherland é decisiva para essa construção, com sua voz rouca, olhar permanentemente exausto e a postura enrijecida, dando ao personagem uma vulnerabilidade que enriquece a sua complexidade. Para além dele, 24 Horas desenvolve um laboratório de personagens que, tal como Jack, ganham densidade através da exposição contínua a situações-limite. O formato em tempo real funciona como uma alavanca de intimidade, afinal acompanhar alguém minuto a minuto revela mais do que qualquer biografia. Essa dinâmica garante que cada evento carregue muito impacto emocional, pois o espectador passa a importar-se com as figuras em tela ou, no mínimo, com o que elas representam umas para as outras.
Um dos exemplos mais claros dessa via de mão dupla é Kim Bauer (Elisha Cuthbert), filha de Jack. Embora nas primeiras temporadas ela seja tratada no estereótipo de “filha em perigo”, vivendo o seu próprio “dia infernal” sobrevivendo a situações extremas justamente por ser filha de quem é, a sua presença cumpre uma função dramática dupla: serve ao seu próprio desenvolvimento e amplia o arco emocional do pai. Com o passar das temporadas, o espectador conecta-se com ela não apenas pelo seu amadurecimento, mas por encarnar o centro afetivo que impulsiona o protagonista a continuar a lutar. O mesmo vale para as relações românticas de Jack, – como Teri Bauer (Leslie Hope), Audrey Raines (Kim Raver), Renée Walker (Annie Wersching), dentre outras – que representam possibilidades breves de uma vida comum, mas que invariavelmente se desfazem, reforçando a tragédia de um homem incapaz de sustentar vínculos diante das circunstâncias que o cercam.
Essa lógica estende-se a todo o elenco. Reduzir qualquer personagem de 24 Horas a uma função passiva seria um erro, porque praticamente todos estão, de algum modo, à mercê da morte, independentemente de sua relevância na trama. A série foi pioneira na TV aberta ao adotar um elenco rotativo de maneira incisiva, criando uma atmosfera onde a perda de qualquer um parecia sempre plausível. A cada temporada, as mudanças deixava o espectador mais apreensivo pelos sobreviventes, pois a proximidade com Jack tornava-os suscetíveis à mesma espiral de risco e desgaste que ele carregava.
A começar por Tony Almeida (Carlos Bernard), cuja trajetória é a que mais se espelha a de Jack em termos de sacrifício e ambiguidade moral. Inicialmente posicionado como um rival burocrático na CTU, Tony converte-se num dos aliados mais leais de Bauer, mas a sua evolução o expõe a sua impossibilidade de isolar seus afetos. Movido por uma humanidade que se recusa a endurecer, ele atravessa linhas éticas não apenas pelo dever, mas principalmente pela devoção pessoal, personificando a tragédia do indivíduo que tenta preservar o seu mundo interior num ambiente que exige frieza absoluta. Essa sensibilidade encontra o seu catalisador no relacionamento com Michelle Dessler (Reiko Aylesworth), uma dinâmica que aprofunda o drama ao ilustrar a colisão inevitável entre a vida íntima e a urgência sufocante do contraterrorismo.
Michelle, por sua vez, surge para subverter no público um pouco da representação feminina na trama, afastando-se dos estereótipos de fragilidade que rotulavam em personagens anteriores. Ela impõe-se como uma força que não precisa emular a brutalidade masculina para exercer autoridade, atuando como um compasso tático que rivaliza com o próprio Jack, mas que acaba, inevitavelmente, consumida pela mesma espiral de violência. Nesse sentido, outro grande destaque feminino que desafia as convenções do gênero é Chloe O’Brian (Mary Lynn Rajskub). A personagem que inicia a sua jornada presa ao arquétipo da hacker genial “esquisita”, transcende rapidamente a sua função utilitária para se tornar o braço direito emocional de Jack. À medida que a série avança, a excentricidade de Chloe ganha contornos de maturidade; ela deixa de ser apenas os “olhos” digitais de Jack para se tornar a sua única amiga verdadeira, disposta a subverter o sistema não por insubordinação gratuita, mas por uma compreensão do homem por trás do agente.
Da mesma forma, vale destacar no núcleo da CTU a figura de Bill Buchanan (James Morrison), um dos vários diretores que comandaram a Unidade Anti-Terrorismo ao longo da série. Enquanto a relação de Jack com antecessores como George Mason (Xander Berkeley), Ryan Chappelle (Paul Schulze) e Erin Driscoll (Alberta Watson) era marcada pelo atrito, pois estes tratavam Bauer como um problema institucional, Buchanan validava a insubordinação de Jack como uma necessidade tática. Essa postura forjou uma conexão única entre ambos e colocou o próprio diretor na tênue fronteira entre a ordem e o caos, alguém que não hesitava em sacrificar a sua carreira ou abandonar a segurança do escritório para ir pessoalmente à linha de frente da ação, a fim de garantir que Jack sobrevivesse ao dia.
Contudo, a figura mais importante que, na prática, realmente divide o peso do protagonismo com Jack é David Palmer (Dennis Haysbert). Palmer encarnava um idealismo político, uma liderança firme porém ética, à qual o público norte-americano ansiava em meio ao clima de pânico nacional e a desilusão com o governo George W. Bush, sugerindo que a salvação institucional seria encontrada fora do molde tradicional. Inclusive, como primeiro presidente afro-americano fictício de uma série televisiva de grande alcance, seu impacto simbólico pode ter realmente contribuído para “abrir os olhos” do público à possibilidade de um presidente negro na vida real e, de maneira indireta, ele atuou como catalisador para a ampliação da aceitação da diversidade política antes da candidatura de Barack Obama.

Na narrativa, a relação entre ele e o agente estabelece uma sintonia silenciosa entre dois homens que carregam o peso do mundo de lugares opostos. Enquanto Bauer opera nas sombras, executando o ‘trabalho sujo’ necessário para a sobrevivência do Estado, Palmer atua como o diplomata encarregado de preservar a dignidade da sociedade norte-americana sob os holofotes. Para o protagonista, ele simboliza a prova de que o sistema ainda merece ser salvo. Do mesmo modo, Palmer enxerga em Jack um símbolo de abnegação absoluta, o único homem disposto a sacrificar a própria humanidade para proteger os ideais que o Presidente representa.
Assim, cria-se uma simbiose, na qual, frequentemente, cada um serve como a única referência confiável para o outro nos momentos de isolamento. Mais do que uma aliança pessoal, essa relação serve como alegoria de dois lados do Estado, onde o idealismo e o pragmatismo se colidem constantemente. É através de Palmer no núcleo político que a obra expande o seu escopo, deixando de ser apenas um thriller de ação para ser também uma investigação sobre o microcosmo do poder norte-americano e as ansiedades que moldaram a psique do país no século XXI.
“We must face the consequences.”
- Neste trecho, há spoilers moderados.
Entre os argumentos mais comuns contra 24 Horas está que a série teria funcionado como peça de propaganda da “Guerra ao Terror” de Bush, ao normatizar a tortura em nome do patriotismo. De fato, em muitos momentos de adrenalina, a narrativa recorre ao ticking time bomb scenario (cenário da Bomba-Relógio) para amplificar a tensão, ainda mais dentro da lógica de que tudo acontece em apenas um dia, e a obtenção de informações de suspeitos acaba sendo apresentada como algo que só seria possível por meio da tortura, a fim de impedir a catástrofe iminente.
Como dispositivo narrativo, essa estratégia quase sempre funcionava, mesmo quando a informação obtida se revelava inútil ou falhava em evitar que o pior acontecesse. Desse modo, diante do cenário pós-11/09, onde o público norte-americano buscava um rosto para encarnar a guerra invisível que se anunciava, acabou surgindo, involuntariamente, um jeito utilitarista de enxergar a série. O público passou a projetar em Jack o desejo real por um indivíduo capaz de cortar a burocracia e fazer “o necessário”, materializando a hipótese utilitarista da filosofia do “maior bem para o maior número”, no qual a dignidade de um suspeito vale matematicamente menos do que a vida de milhões.
No entanto, é quase óbvio perceber, ao acompanhar o custo existencial da vida de Jack, que há um tom crítico embutido na forma como a série enxerga suas ações. A cada tortura realizada, Bauer não se torna mais heroico; ele se torna mais quebrado, mais atormentado, mais incapaz de se reajustar à vida comum. Em vários momentos, ele próprio admite estar “amaldiçoado”, como se carregasse um rastro de destruição moral que o acompanha aonde quer que vá. Mal comparando, ocorreu um fenômeno cultural semelhante ao do Capitão Nascimento (Wagner Moura) em Tropa de Elite, já que ambas as obras retrataram de maneira crítica a brutalidade policial e o sacrifício pessoal de seus protagonistas, mas a eficácia dramática e o carisma desses personagens acabaram, ironicamente, levando parte do público a glorificar justamente os métodos que a narrativa apresenta como trágicos.
Conforme citado, a tortura até funciona na trama como esse dispositivo de catarse imediata, no qual o espectador, movido pela adrenalina, consente que é preciso “sujar as mãos”, mas a série sempre foi muito didática ao mostrar que a violência não só corrói a alma de quem a pratica, como corrompe a nação que a permite. Basta observar como tanto a CTU quanto a Casa Branca são retratadas como organismos permanentemente disfuncionais, movidos por paranoia, rivalidade interna e manipulações políticas em que a moralidade é uma moeda de troca. Essa fragilidade governamental não é apenas uma premissa para estender a trama; ela é o mecanismo pelo qual a série evidencia seu olhar crítico, antiburocrático e anti-ufanista, desmontando qualquer tentativa simplista de rotular 24 Horas como uma fantasia “reacionária”.
Mesmo quando a série recorre a vilões que parecem, à primeira vista, mais genéricos, como Habib Marwan (Arnold Vosloo), Abu Fayed (Adoni Maropis) e Syed Ali (Francesco Quinn), suas motivações, métodos e a escala dos seus planos revelam camadas que os afastam da simples caricatura sugerida pela aparência de muçulmanos radicalizados – sem contar o fato de funcionarem demais como motores de tensão ao impor desafios grandiosos aos personagens. Contudo, desde a primeira temporada, quando Nina Myers (Sarah Clarke) implode qualquer noção de lealdade automática dentro da CTU e a própria esposa de David, Sherry Palmer (Penny Johnson Jerald) mostra que o perigo pode vir dos laços mais próximos ao usar sua influência sobre o presidente para conduzir o poder conforme seus próprios interesses, a série deixa claro que os atentados serão viabilizados principalmente por traidores da pátria instalados no coração das instituições, geralmente movidos por motivações mesquinhas e individualistas que contradizem seu discurso de agir “pelo bem da América”.
A série transforma essa dinâmica numa estrutura quase operística, em que cada conspiração revela outra ainda maior e a ameaça nunca depende de um único indivíduo, emergindo uma cadeia de antagonistas, cada qual responsável por uma parte essencial da engrenagem, fortalecendo não só a sensação de imprevisibilidade da trama como reforçando a ideia de que o perigo cresce justamente a partir de quanto mais se adentra na corrosão interna do sistema. Nesse sentido, o discurso da obra torna-se progressivamente mais cristalino, apresentando essa onipresença da traição, seja por agentes duplos na CTU, altos funcionários ou figuras políticas como sintoma de um sistema fundamentalmente comprometido e funcionando quase como um mea-culpa que dá razão à percepção de uma cultura de desconfiança pública das próprias estruturas de segurança no pós-9/11.
Ainda que fique mais explícito em suas implicações, o roteiro não abdica da ambiguidade moral, mas a desloca para um horizonte mais sombrio. O pessimismo torna-se progressivamente mais tangível, como se a própria estrutura moral dos Estados Unidos se deteriorasse junto com Jack Bauer, criando uma cadeia de vilões cada vez mais próxima de figuras que possuem grande influência. De ex-agentes como Christopher Henderson (Peter Weller) a conselheiros presidenciais; passando por conglomerados corporativos a personagens que orbitam a própria família de Jack, como Phillip Bauer (James Cromwell) e Graem Bauer (Paul McCrane), o percurso atinge seu ponto mais ousado quando o próprio Presidente dos Estados Unidos passa a ocupar o papel de antagonista central, com Charles Logan (Gregory Itzin) na quinta temporada, num movimento narrativo extraordinariamente audacioso para a televisão aberta norte-americana do período.
Aliás, fora a figura de David Palmer, cuja própria sombra política se manifestava na manipulação silenciosa de Sherry Palmer que encontrava um eco mais virtuoso em seu irmão Wayne Palmer (D.B. Woodside) e no agente do Serviço Secreto Aaron Pierce (Glenn Morshower) – personagem que reflete a integridade de Palmer e Jack, guiado pelo juramento ao cargo e não por autoridades, o que o faz confrontar superiores para proteger a verdade –; a constante mudança de presidentes e conselheiros ao longo da série opera como uma ampliação da tese de degradação moral das estruturas de comando, mostrando que a proximidade com o governo tende a corroer até as convicções mais progressistas, além de expor a fragilidade ética de personalidades conservadoras quando pressionadas pela autopreservação.

Personagens que inicialmente parecem pilares institucionais, como Mike Novick (Jude Ciccolella) e James Heller (William Devane), revelam que sua lealdade é profundamente circunstancial e moldada por pressões imediatas, evidenciando como até aliados bem-intencionados cedem a cálculos oportunistas em momentos críticos. Até mesmo Allison Taylor (Cherry Jones), introduzida na sétima temporada como um novo símbolo de responsabilidade moral e firmeza institucional, semelhante a Palmer, mas numa figura feminina, acaba se envolvendo em um encobrimento que trai seus próprios valores em nome de um suposto bem maior ao aprovar um acordo de paz, reforçando que o problema não se dirige ao indivíduo que aperta o gatilho, mas à engrenagem que cria o gatilho, o alvo e a justificativa. A narrativa demonstra que nenhuma nação pode sustentar-se indefinidamente sobre decisões tomadas no limite ético, mesmo quando supostamente destinadas a protegê-la. O conflito se apresenta como um cabo de guerra entre indivíduos isolados, viciados nas estruturas, e a própria estrutura, que, ao tentar se renovar, é preenchida por esses mesmos indivíduos, perpetuando um ciclo de estagnação.
Como evidencia as últimas temporadas, a preocupação central migra para as próprias tecnologias que instauraram um estado de vigilância onipresente, ferramentas que até então auxiliavam no combate às ameaças e que a própria série contribuiu para mitificar. A série encerra seu ciclo com um reconhecimento de que os instrumentos de segurança absoluta, antes percebidos como salvaguardas patrióticas, tornam-se mecanismos de repressão das liberdades civis. Esse processo é sintomático, considerando que ao longo de uma década a série documentou a metamorfose da ansiedade ocidental, registrando a transição do pânico cru do pós-11 de Setembro para o cinismo da era digital pós-Snowden, funcionando como um espelho dessas diferentes memórias nacionais traumáticas.
“You’re gonna have to trust me”
Ao revisitar 24 Horas em seu conjunto, torna-se evidente que a série ocupou um espaço singular entre o procedural televisivo dos anos 1990 e a chamada “era dourada” das séries premium. Era suficientemente mainstream para conquistar grandes audiências na TV aberta, mas ousada demais em estrutura para os padrões tradicionais do modelo semanal. O contraste é nítido quando lembramos que a série chegou a ser exibida na Globo, onde muitos espectadores assistiam a episódios isolados, julgavam a experiência eletrizante, mas raramente se conectavam ao seu princípio de continuidade, já que a lógica fragmentada da programação diluía o impacto da narrativa em tempo real.
Na prática, era preciso recorrer aos box sets em DVD para consumir a série “como ela foi concebida”, sem pausas, sem dispersão e com máxima imersão. Embora tenha sido um fenômeno nesse formato físico, o encerramento original da série antecedeu o boom dos streamings, diferentemente de títulos como Breaking Bad, Game of Thrones ou The Walking Dead, que surgiram já sincronizados com a nova cultura de consumo e colheram seus efeitos – não por acaso, séries de modelos formais que herdaram muito do que 24 Horas introduziu, como a escala de produção cinematográfica e o uso sistemático de cliffhangers como motor dramático para forçar o espectador à continuidade.
Sem contar que, nesse período, as temporadas na televisão norte-americana começaram a se tornar mais curtas e enxutas, justamente para que fossem retiradas as “gorduras” e preenchimentos desnecessários, permitindo que o público mantivesse o impulso de assistir ao próximo episódio sem a sensação de enrolação típica de temporadas com mais de vinte capítulos. Não por acaso, quando a série retornou em Live Another Day, adotou uma temporada reduzida de 12 episódios, um reconhecimento implícito de que o ecossistema televisivo havia mudado e o próprio DNA da série precisava ser ajustado.
Portanto, por mais que a série ainda tenha recebido reconhecimento crítico em seu tempo, incluindo o Emmy de Melhor Série Dramática pela excepcional quinta temporada, é possível afirmar que a extensão de seu formato dificultou sua longevidade cultural. O que, de certo modo, torna ainda mais notável o feito dela e das produções de TV Aberta da geração anterior (Lost, Arquivo X) que precisavam preencher longas temporadas com um volume impressionante de incidentes, reviravoltas e conflitos e ainda conseguiam preservar a qualidade e pulso narrativo semana após semana.
Se tratando de 24 Horas, ainda que as últimas temporadas tenham sido acusadas de fadiga criativa, especialmente a sétima e a oitava, que realmente demonstram sinais de desgaste com algumas subtramas menos envolventes e a redução gradual do senso de vulnerabilidade de Jack Bauer até que ele virar uma figura quase mitológica – diminuindo um pouco aquela sensação permanente de risco que definia as melhores fases da série; em nível de espetáculo de ação e momentos de tirar o fôlego, todas as temporadas ficam praticamente em pé de igualdade. E entregar ação de alto nível de forma consistente ao longo de 192 episódios é um feito tão inédito quanto a ousadia de narrar um dia inteiro minuto a minuto.
Se pensarmos que, antes dela, as grandes séries de ação televisiva eram produções como Miami Vice, Magnum P.I., Walker Texas Ranger ou mesmo clássicos como Esquadrão Classe A e MacGyver, todas populares e carismáticas, mas ainda distantes da ambição formal, do rigor coreográfico e da força emocional contínua que a saga de Jack Bauer viria a estabelecer, fica ainda mais evidente a mudança de paradigma e o impacto que a série deixou, mesmo que nem sempre devidamente reconhecido.
Talvez o fato de que, depois dela, tenha se tornado quase natural esperar um nível de produção digno de blockbuster na televisão, uma expectativa que se espalhou por emissoras e, mais tarde, por plataformas de streaming, e, acima de tudo, o fato de ter provado que o público da TV aberta podia acompanhar narrativas complexas desde que tivessem coração e ritmo, seja o testemunho mais claro da relevância duradoura do que ela construiu. O som do beep-beep-beep ainda ecoa e, de certa forma, nunca parou.
24 Horas (24 | Fox , 2001 – 2014)
Criadores: Robert Cochran, Joel Surnow
Diretores: Jon Cassar, Brad Turner, Milan Cheylov, Bryan Spicer, Stephen Hopkins, Ian Toynton, Frederick King Keller, James Whitmore Jr., Tim Iacofano, Kevin Hooks, Michael Klick, Rodney Charters, Winrich Kolbe, Davis Guggenheim, Paul Shapiro, Ken Girotti, Dwight H. Little, Nelson McCormick
Roteiristas: Robert Cochran, Joel Surnow, Matt Michnovetz, Howard Gordon, Nicole Ranadive, Michael Loceff, Evan Katz, Duppy Demetrius, Manny Coto, Virgil Williams, Elizabeth Cosin, David Fury, Brannon Braga
Elenco: Kiefer Sutherland, Mary Lynn Rajskub, Carlos Bernard, Dennis Haysbert, Elisha Cuthbert, James Morrison, Reiko Aylesworth, Jude Ciccolella, Kim Raver, Glenn Morshower, D.B. Woodside, Roger Cross, Penny Johnson Jerald, Cherry Jones, Gregory Itzin, Annie Wersching, Louis Lombardi, Sarah Clarke, Bob Gunton, Jayne Atkinson, Carlo Rota, Eric Balfour, Xander Berkeley, Sarah Wynter, Jean Smart, Leslie Hope, Peter MacNicol, James Badge Dale, John Boyd, Freddie Prinze Jr., Marisol Nichols, Paul Schulze, Frank John Hughes, Marci Michelle, Zachary Quinto
Duração: 43 min (cada episódio) – 9 temporadas (24 episódios cada, com exceção da última com 12, totalizando 192)