- Author, Fiona Lamdin
- Role, Repórter no Oeste da Inglaterra
- Author, Bea Swallow
- Role, Repórter em Bristol
Tempo de leitura: 7 min
A filha do homem considerado o maior abusador em série associado à Igreja da Inglaterra afirma que descobrir, enfim, a verdade sobre os ataques cometidos pelo pai contra cerca de 130 meninos foi chocante e horrível.
Fiona Rugg, 47, é a filha mais nova do advogado e presidente de uma entidade beneficente cristã John Smyth QC, que morreu antes de ser levado à Justiça.
No fim da década de 1970 e no início dos anos 1980, Smyth submeteu cerca de 130 meninos e jovens a abusos físicos e sexuais extremos, apresentados por ele como uma forma de disciplina espiritual.
Desde então, Rugg, que hoje vive em Bristol, no Reino Unido, vem assimilando gradualmente a gravidade dos fatos, mas diz ter lidado com frequência com um sentimento que define como “vergonha por associação”.
“Racionalmente, eu sei que não tenho nenhuma culpa, mas você se sente culpada por seu pai ser capaz de fazer isso com alguém e, além disso, ele nunca demonstrou arrependimento”, afirmou.
“Grande parte da história do meu pai e de como ele escapou da responsabilização envolveu encobrimento e engano. Mas eu quero tratar disso e trazer tudo à luz.”
O chamado Relatório Makin, publicado em 2024, concluiu que a condução do caso pela Igreja da Inglaterra representou um acobertamento das acusações contra Smyth.
Um dos clérigos envolvidos chegou a admitir: “Achei que isso causaria um dano imenso à obra de Deus se viesse a público”.
Falando abertamente à BBC pela primeira vez, Rugg afirmou que compreender a dimensão dos abusos “chocantes” cometidos pelo pai a ajudou a se curar.
“Eu o perdoei, mas isso não elimina a dor nem torna o que ele fez aceitável. Não me sinto mais presa a isso ou tão envergonhada, mas isso não diminui o horror de seus atos”, disse.
“Da parte dele, não houve qualquer sinal de arrependimento. Eu peço desculpas, em nome do meu pai, pelo que ele fez a esses meninos.”
Aviso: esta reportagem contém conteúdo sensível e referências a abuso infantil
Rugg lembra uma infância opressiva, marcada pelo que descreve como uma “hipervigilância” constante diante dos humores imprevisíveis do pai.
“Acho que o sentimento predominante era, na verdade, o medo, desde que me lembro”, recorda. “Eu tinha medo perto do meu pai, ele era muito instável.”
“Ele ficava muito bravo, e havia essa sensação de instabilidade emocional, de andar pisando em ovos, tentando adivinhar qual seria o humor dele. Um sentimento de culpa, pois, quando era criança, eu não gostava do meu pai e às vezes o odiava.”

Crédito, Passion Pictures
Rugg disse que seu pai a “ignorava completamente” quando ela era criança, a ponto de fazê-la duvidar do próprio julgamento sobre o caráter “instável” dele.
“O que eu via era confuso para mim”, disse. “Ele era tão assustador, bravo e cruel, tão difícil de enfrentar. Eu queria ficar o mais longe possível dele, mas o que eu via ao mesmo tempo eram pessoas que o adoravam.”
Enquanto Smyth ria e brincava ao ar livre com meninos e jovens sob o sol, ela observava tudo da janela, depois de ser orientada a manter distância por ser considerada uma “distração indesejada”.
“Nós vivíamos com um John Smyth completamente diferente daquele que ele apresentava ao mundo”, explicou.
“Quando você é criança, a conclusão natural é pensar: ‘Ele deve estar certo, e o problema deve ser eu. Sou eu que não estou enxergando isso corretamente’.”

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Smyth obteve acesso à escola Winchester College, na Inglaterra, em 1973 por meio da união cristã da escola e passou a abusar de alunos depois de convidá-los para almoços de domingo na casa de sua família.
Ele obrigava as vítimas a se despir e a suportar violentas sessões de espancamento com uma vara em um galpão com isolamento acústico no terreno da residência dele, onde as agredia com tal intensidade que elas chegavam a sangrar.
Cristão evangélico, Smyth enquadrava os abusos como uma forma de punição e arrependimento por supostos “pecados”, como orgulho ou masturbação.
Uma investigação interna feita pela Iwerne Trust revelou o escândalo em 1982, descrevendo os ataques como “prolíficos, brutais e horríveis”, detalhando como oito dos meninos sofreram um total de 14 mil chicotadas.
Mas, em vez de relatar às autoridades, representantes evangélicos de alto escalão da Igreja da Inglaterra facilitaram a saída silenciosa de Smyth do Reino Unido, o que permitiu que ele escapasse da Justiça por décadas.
Quando a família foi levada para o Zimbábue, no sul da África, em 1984, Rugg diz que o pai apresentou a mudança como um “trabalho nobre”, um sacrifício de sua “carreira brilhante” para atuar como um missionário.
Mas o rastro de destruição o acompanhou pelo mundo todo. Pouco depois, ele passou a organizar acampamentos cristãos nos quais impunha a nudez a meninos e os espancava.
No ano seguinte, ocorreu uma tragédia. Um adolescente de 16 anos chamado Guide Nyachuru foi encontrado morto em um dos acampamentos de Smyth menos de 12 horas após chegar ao local. O caso resultou em uma acusação de homicídio culposo, mas o processo acabou sendo arquivado.

Crédito, Passion Pictures
Quando voltou a morar na Inglaterra, aos 18 anos, Rugg passou a ter cada vez mais perguntas sobre o seu pai.
“Às vezes, surgia o comentário de que eu era filha do meu pai, e eu via uma sombra passar pelo rosto das pessoas”, recorda.
“As reações não eram do tipo ‘ah, que homem legal’. Era o oposto. Havia um silêncio absoluto. Parecia haver pouca conexão com o Reino Unido, o que sempre me pareceu estranho.”
Ela confrontou o pai com os rumores na véspera de Natal. A reação foi uma explosão de fúria: ele a acusou de ser “desleal” à família por ousar questionar sua integridade.
“A reação dele foi tão extrema que eu me lembro de pensar: ‘bom, agora eu sei com certeza’. Nunca há tanta fumaça sem fogo”, afirmou.

Crédito, Passion Pictures
As denúncias sobre os abusos cometidos por Smyth vieram a público pela primeira vez em fevereiro de 2017, após uma investigação do veículo britânico Channel 4.
Numa noite, Rugg ligou a televisão e se deparou com o rosto do pai estampado na tela, com o nome associado a crimes horrorosos.
“Eram filhos jovens e vulneráveis, cujas vidas foram destruídas. Eu tenho um filho”, acrescentou.
“Por mais cruel que eu já o tivesse visto ser, não fazia ideia de que ele havia cometido tantos abusos criminosos. Foi horrível e chocante, mas, ao mesmo tempo, tudo passou a fazer sentido.”
“Toda a vida dele girava em torno de fazer ‘a obra do Senhor’. Tudo era justificado pela sua fé cristã, e eu achava essa hipocrisia algo realmente repugnante.”
Em agosto de 2018, Smyth recebeu uma intimação da polícia de Hampshire para retornar à Inglaterra e prestar depoimento, sob ameaça de extradição.
Rugg afirmou que hoje consegue falar sobre o pai “sem amargura nem ódio” e que, finalmente, se sente em paz.
“Na minha experiência, se você encara o que seu pai fez, é possível se curar e então perdoar”, explicou.
“Ainda há momentos de tristeza, mas já não sinto aquele nó no estômago quando penso nele, e isso é um avanço. Isso não é algo que eu precise carregar nem algo pelo qual eu deva ser controlada.”
“Deixou de ser algo que me foi imposto, para ‘eu escolho o que fazer com isso’.”