Crédito, Library of Congress
- Author, Camilla Veras Mota
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Por mais de 500 anos, quando o conhecimento sobre a geografia do planeta ainda engatinhava, chegou a ser comum em mapas da Europa a presença de uma ilha misteriosa próxima à costa da Irlanda que, depois se descobriria, nunca existiu de fato.
Navegadores europeus que se lançaram ao Atlântico antes e depois da chegada às Américas vasculharam o oceano à sua procura, na esperança de encontrar nela um paraíso terrestre. A crença vinha do folclore celta, que descreveu o lugar como um destino de saúde e alegria abundantes, onde a juventude era eterna.
A ilha se chamava Brasil.
Ela apareceu pela primeira vez na cartografia em um mapa-múndi medieval confeccionado por volta de 1280. A partir daí, voltou a ser retratada em pelo menos outros 121 mapas, até 1873, conforme a pesquisa feita pelo jornalista Geraldo Cantarino, autor de Uma Ilha Chamada Brasil: o Paraíso Irlandês no Passado Brasileiro.
Segundo ele, a história contada na tradição celta era de que a ilha, sempre coberta por um intenso nevoeiro, raramente estava visível aos navegantes. Uma vez a cada sete anos, mais especificamente.
“Mas ninguém conseguia chegar até ela. Era uma visão. A ilha aparecia na superfície e sumia. Essa era a história de Hy Brasil”, ele completa, usando o outro nome pelo qual a ilha foi conhecida.

Crédito, University of Minnesota Libraries/James Ford Bell Library

Crédito, University of Minnesota Libraries/James Ford Bell Library
Perto de Satanazes e de Antilia
Ela foi uma entre uma série de ilhas lendárias que apareceram em mapas quando os europeus começaram a explorar o Atlântico.
Antes da chegada às Américas, quando a Europa não sabia exatamente o que havia do outro lado, esse oceano era um lugar meio misterioso, no qual muitos navegadores se lançavam e poucos voltavam — razão pela qual chegou a ser apelidado de “mar tenebroso”.
Os que sobreviviam retornavam muitas vezes contando histórias de criaturas fantásticas e lugares míticos, que muitas vezes acabavam retratados pelos cartógrafos, o que explica a presença de sereias e monstros marinhos em mapas da época.
Alguns dos que retratam a ilha Brasil incluem outros desses lugares míticos. Em uma carta náutica de 1424 de Zuane Pizzigano, por exemplo, ela está a norte de Satanazes, esta possivelmente inspirada em lendas da mitologia nórdica, e de Antilia, que vai dali para a frente aparecer em mapas por um século e meio, mas não corresponde a nenhum arquipélago conhecido.

Crédito, Library of Congress
Da tradição oral celta a James Joyce
A lenda da ilha Brasil foi transmitida durante séculos pela tradição oral que marcou a Irlanda antes da chegada do cristianismo — ou seja, mais de dois mil anos atrás — e posteriormente eternizada em contos, poemas, canções e nas artes visuais.
“Achei dezenas de poemas só sobre Hy Brasil, todos com essa carga emotiva, como um lugar de coisas boas, de música, de alegria”, diz Cantarino.
Em um país frio, pouco ensolarado e onde chove muito, a ilha passa a representar “um sonho e um desejo”, completa o autor.
Entre os poemas que o pesquisador encontrou está o de um escritor bastante popular na Irlanda no século 19, Gerald Griffin, intitulado Hy-Brazil – The Isle of the Blest, em que ela é descrita como uma “terra enigmática”, “de luz e descanso”, a “ilha dos bem-aventurados”.
Joyce a menciona em referência a São Brandão, o monge irlandês que no século 6º saiu em busca da ilha acreditando que ela era uma espécie de terra prometida e acabou se tornando ele mesmo uma espécie de lenda, nesse caso, do cristianismo.
Além das artes, “Brasil” também teve uma influência mais mundana na Irlanda e aparece até hoje em uma lista de sobrenomes comuns no país — Brassil, Brassill, Brazier, Brazil, Brazill e Brazzill. Cantarino encontrou vários deles em listas telefônicas durante sua pesquisa, no fim dos anos 1990.

Crédito, Australian National Maritime Museum
Pau-brasil ou ilha Brasil?
A história milenar do mito e suas diferentes manifestações — especialmente a apropriação pelo cristianismo, com a versão da lenda de São Brandão, e sua reprodução em centenas de mapas — levaram alguns autores a argumentar que a ilha também teria influenciado o batismo do país que hoje compartilha o nome com ela — o Brasil, no caso.
“Na área de estudos irlandeses, é muito comum se discutir essa hipótese”, diz Mariana Bolfarine, professora do curso de Letras-Língua e Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR).
No doutorado em estudos linguísticos, ela se debruçou sobre o personagem que foi uma das vozes mais ativas entre os que argumentaram que o Brasil devia seu nome à mitologia celta: Roger Casement, um diplomata britânico que no início do século 20 foi cônsul em Santos (SP), em Belém (PA) e no Rio de Janeiro.
Na capital paraense, ele chegou a apresentar um artigo que intitulou Irish Origins of Brazil, em que defendia que, “por mais estranho que possa parecer, o Brasil deve o seu nome não à abundância de um certo pau-de-tinta, mas à Irlanda”.
“A distinção em nomear o grande país da América do Sul, eu acredito, pertence seguramente à Irlanda e a uma antiga crença irlandesa tão remota como a própria mente celta”, ele escreveu.
Casement argumentava que o nome Brasil habitou o imaginário dos europeus séculos antes da colonização das Américas, que continuava vivo na época em que eles se lançaram ao Atlântico, como mostram os mapas da época, e que histórias como a de São Brandão haviam inclusive inspirado muitas viagens marítimas.
“Pelo próprio tráfego dos comerciantes marítimos de Portugal e Espanha, o nome da ilha também teria chegado lá [na Península Ibérica] e eventualmente no Brasil”, conta Bolfarine.
Na visão do diplomata, o apagamento da relação entre a Irlanda e o nome do Brasil teria acontecido por conta do desprezo cultural que acadêmicos ingleses sentiam em relação ao país.
“Para eles, a Irlanda era um nome associado a uma terra assolada em pobreza e ignorância — a roça da Europa, uma vergonha na visão da Inglaterra e com um povo sem nada a oferecer aos acadêmicos”, diz no texto.
A ilha Brasil chegou a ser mencionada por historiadores brasileiros como Capistrano de Abreu e Laura de Mello e Souza, diz o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Renato de Mattos, “sempre na perspectiva de que essa era uma imagem medieval que persistia na mentalidade” dos primeiros europeus que chegaram à América e poderia ter influenciado na escolha do nome.
“A ideia é que esses homens teriam tentado decodificar o Novo Mundo a partir de parâmetros da época deles”, observa o historiador. “Esses são homens medievais”, completa.
A hipótese, contudo, não chegou a ir além de alguns autores. O que talvez explique por que maioria dos brasileiros não saiba sequer que ela existe.
Assista
A versão repetida nas escolas e nos livros didáticos é a de que o país foi assim batizado por conta da árvore de madeira vermelha explorada por Portugal nos primeiros anos de colonização, o pau-brasil.
A palavra Brasil seria derivada de “brasa”, uma referência à coloração da madeira.
O primeiro diretor do Museu Histórico Nacional, o historiador Gustavo Barroso, que chegou a resgatar na década de 1940 a história da ilha Brasil em O Brasil na Lenda e na Cartografia Antiga, conjectura no livro que talvez tenham sido “a tradição e o hábito” que acabaram solidificando a hipótese que se popularizou no país, a do pau-brasil.
Mas ela é a correta? Mattos acredita que essa pergunta deve continuar sem resposta. Uma das razões, ele argumenta, seria o fato de que o tema não foi e nem é uma prioridade da historiografia brasileira.
“Eu diria que sequer chega a ser um objeto de controvérsia”, ele comenta.
“A história produzida por acadêmicos cada vez mais não se importa com essas questões mais ‘curiosas’. Mais importante do que quem descobriu tal lugar, por exemplo, é o processo de colonização”, completa o historiador.
Outro motivo, na visão de Cantarino, seria o próprio mistério sobre quem deu nome ao nosso país. Pedro Álvares Cabral chamou-o de Ilha de Vera Cruz. Na sequência veio Terra de Santa Cruz, Ilha dos Papagaios… e só depois Brasil.
“Quando se olha para a discussão entre os historiadores no passado, tem sempre um debate sobre a raiz da palavra, do que veio primeiro, o que vem depois”, ele pontua.
“O curioso é que, 500 anos depois, a gente não sabe quem que deu esse nome para o nosso país. Uma coisa bem… Brasil, né?”