Belinha tem onze anos. Seus seios começam a despontar e doem. A menstruação chegou há seis meses e ela não entendeu muito. A mãe explicou que todo mês ela ia sangrar. Continuava a brincar de bonecas e às vezes usava uma maquiagem, surrupiada da mãe. Belinha estava ali bem no entremeio entre ser adolescente e criança.
Foi com alegria que recebeu a chegada do tio e da prima − que regulava a mesma idade dela. Filha única, sempre foi sua própria companhia nas brincadeiras durante tardes longuíssimas. Agora tinha uma parceira para mimetizar uma boneca numa aventura fantasiosa. O tio, com aquela barriga enorme, era muito carinhoso e lhe trouxe uma Barbie Sereia de presente. Sua mão grossa se demorou em seu cabelo trançado. Achou que o tio estava com muita saudade.
Duas noites bastaram para que ele entrasse em seu quarto de madrugada. E lhe chupasse os seios minúsculos, e passasse o polegar grosso em sua pequena vagina. Bela acordou de supetão. Ele pôs o dedo em sua boca e lhe disse baixinho: “Esse é o nosso segredo”. Bela ficou confusa porque não sabia bem o que estava acontecendo ali. Era seu tio, afinal. Irmão mais velho de seu pai. Engraçado e querido por todos.
Tão querido que fora convidado para passar um mês em sua casa, nas férias. Depois da primeira madrugada (Belinha não compreendeu o líquido viscoso que grudava em sua barriga), as visitas noturnas se tornaram frequentes. Bela aceitou aquilo como se aceita uma queda. Bela não elaborava aquilo como algo ruim ou mau, era seu tio querido!, mas era incômodo e lhe doeu muito quando ele enfiou seu membro rijo na sua pequena vagina. O grito foi abafado pelo travesseiro. Mais uma vez ele sibilou: “Shhh! Esse é o nosso segredo”.
No outro dia teve dificuldade para caminhar. Doía muito entre as pernas, era como se estivesse rasgada por dentro. Não quis brincar com a prima e uma expressão de adulta varreu seu rosto bonito.
O mês passou lentamente e o tio e a prima foram embora. Bela não entendeu por que sentiu um alívio. Não entendeu por que seus seios estavam tão maiores e mais duros. O sangue parou de vir.
Foram dar conta da gravidez lá pelo quinto mês. Bela quieta. A mãe desesperada no ginecologista. A criança não pôde ser informada de que poderia fazer um aborto legal. A mãe da criança não pôde ser informada de que sua pequena filha, que outro dia usava chupetas, podia fazer um aborto legal.
A cabeça da mãe de Bela girava. Ainda não contara ao pai. “E se a gente comprar um remédio? Como que chama? Cito… Citotec. Algo assim. Onde compra esse remédio? Mas a gravidez já está tão avançada. É um menino. Como minha filha engravidou? Por que ela não fala nada? Quem foi esse desgraçado que fez isso com meu bebê?” A mãe não teve respostas, mas quando viu leu nas notícias as palavras “Direito ao nascituro” seu coração travou por longos segundos.
No país em que a mãe de Bela vive uma criança morre a cada semana dando luz à outra criança. A mãe de Bela leu a matéria completa que explicava a ofensiva do Congresso contra o aborto. “A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (5) o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/25, que revoga uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) sobre o acesso de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual ao aborto legal.”
Agora, se ela quiser fazer um aborto na filha o caminho vai ser muito mais dificultoso. ONGS duvidosas acolherão sua filha como se ela fosse uma incubadora. Aliciarão sua família para que a gestação continue. A mãe de Bela segue lendo a notícia, sente um gosto ruim na boca. “Em 2023, apenas 154 meninas em todo o país conseguiram acessar o direito ao aborto. A gestação forçada é a maior causa de evasão escolar feminina.”
A mãe de Bela abaixa a tela do computador. O dia está sumindo. Sua filha com seios enormes e uma barriga mediana sob o vestido da Princesa Ariel lhe pede um leite com chocolate.
Passa pela cabeça pesada da mãe da Bela, enquanto ela prontamente vai esquentar o leite para a filha, a capa de uma antiga revista Veja. Várias famosas como Hebe, Ciça Guimarães, Cássia Kis, Marília Gabriela e Elba Ramalho estampam a capa com a manchete: EU FIZ ABORTO. A mãe de Bela lembra da melhor amiga que nos anos 1990 conseguiu comprar uma caixa de Citotec e sangrou de dor escondida em sua casa, longe dos pais. Lembra da prima que usou uma agulha de tricô e não deu certo. Hoje seu filho parece seu irmão e a prima precisou parar de estudar para cuidar da criança, depois de levar uma surra. Trinta anos se passaram e o corpo de uma mulher ou de uma criança ainda não pode ser dela. Trinta anos se passaram e a vida de uma mulher ou de uma criança não pode ser dela.
“Quem mexeu na minha filha?”, a cabeça da mãe da Bela grita. Urra. Ela quer enfiar a cara na chama acesa do fogão. Engoliu seco e fez o leito com chocolate para filha. Suas mãos tremiam ao entregar a xícara dos Cento e um Dálmatas. “O texto ainda vai tramitar no Senado, mas, por ser um PDL, dispensa a sanção presidencial.” Presidencial. Presidencial. AL. AL. AL. Um eco vertiginoso ressoa em sua cabeça difusa. O seu corpo inteiro dói. Se forem pegas fazendo um aborto ilegal, a filha sofrerá sanções mais graves do que o estuprador. Os responsáveis também? Ela não sabe.
Puxa uma cadeira. Observa a filha sugando o leite marrom na xícara. O ódio espraiando em suas veias. A primeira lágrima bojuda finalmente cai.