Responsável por cerca de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, com vendas anuais na casa de US$ 27 bilhões, aproximadamente, a indústria de higiene, beleza e cosméticos passa – no Brasil e no mundo – por mudanças na forma de produção e no pós-uso de seus produtos. A pressão regulatória e dos consumidores, têm feito as marcas apostarem em produtos mais naturais, reduzirem a necessidade de água na produção e lidarem com seu lixo.
Uma estimativa da Zero Waste, organização britânica, de 2018, aponta que, todos os anos, as empresas colocam no mercado cerca de 120 bilhões de embalagens de produtos de beleza no mundo. Não é apenas o volume que preocupa, mas o fato de boa parte delas serem feitas de plástico – material que pode levar mais de 400 anos para se decompor -, mas também porque a parcela que é reciclada ou reutilizada é ínfima perto do problema. Se o mercado global de cosméticos crescer de para US$ 580 bilhões até 2027, como estima a consultoria McKinsey, o problema só aumentará, caso nada for feito.
Ao mesmo tempo em que o Brasil se orgulha de ser o terceiro maior mercado do mundo em cosméticos e cuidados pessoais, atrás apenas da China e dos Estados Unidos (em alguns momentos, fica em quarto, atrás também do Japão), e o segundo no mundo em lançamento de novidades, é também um relevante poluidor.
Segundo levantamento de 2019 da WWF, organização de proteção à natureza, o Brasil amargurava o status de maior produtor e poluidor de plástico da América Latina e o quarto no mundo, com 11,3 milhões de toneladas e cerca de 500 bilhões de itens plásticos descartáveis todos os anos. Desse volume, 87% era de embalagens e 13% utensílios descartáveis, como talheres e sacolas. A indústria cosmética e de higiene representa uma boa parte do mercado consumidor dessas embalagens. Geralmente, os produtos de beleza vêm em potes, frascos, garrafas e tubos, feitos de plástico ou vidro. Além do plástico, a logística reversa do vidro é outro grande desafio no Brasil.
Para tentar driblar o problema, diversas indústrias têm se organizado para investir em logística reversa de embalagens. Um dos maiores programas, e que mostra números relevantes, é o “Mãos Pro Futuro”, gerenciado pela Associação Brasileira das Indústrias de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC).
Criado em 2006, o programa oferece apoio técnico e financeiro a cooperativas de reciclagem em todo o Brasil. Segundo a entidade, ele abrange seis mil profissionais da reciclagem em 156 cidades em todo o Brasil e, em seus quase 19 anos, já recuperou mais de 1 milhão de toneladas de resíduos sólidos. Entre os resultados ambientais também está o de emissões de gases de efeito estufa (GEE) evitadas, uma vez que esse resíduo deixa de ir para aterros sanitários. Entre 2013 e 2023, cerca de 3,8 milhões de toneladas de GEE deixaram de ser emitidas com o volume de materiais recuperado pelo programa.
“Naquela época, ele foi criado para dar uma segurança para as empresas associadas e ajudá-las a lidar com o desafio do descarte de embalagens”, conta Fábio Brasiliano, diretor de desenvolvimento sustentável da ABIHPEC, ao Prática ESG. “A ideia era que fosse dado um direcionamento centralizado para que as empresas não precisassem, cada uma, fazer de forma individual”, diz.
Em 2023 (dado consolidado mais atualizado), o Mãos Pro Futuro reciclou quase 160 mil toneladas de resíduos sólidos, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima divulgados recentemente. O volume está acima da meta estabelecida para o período, de 115 mil toneladas, o que representa 22% do volume total de embalagens que as empresas associadas colocam no mercado (523,5 mil toneladas).
Hoje, entre os membros da ABIHPEC, 144 empresas aderiram ao programa de logística reversa, sendo que algumas delas estão desde o início como L’Oreal, Boticário e Natura. Segundo Brasiliano, isso representa quase 70% do setor. Há alguns anos, duas outras entidades se juntaram à iniciativa, a Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Limpeza e Afins (ABIPLA) e a Associação Brasileira das Indústrias de Massas Alimentícias (ABIMAPI). Somando as três, são quase 200 empresas no Mãos Pro Futuro. Mais recentemente, a Associação Brasileira dos Fabricantes de Tintas (Abrafati) também entrou no projeto, o que deve ampliar para 230 o número de membros.
O resultado de 2023 deu ao Mãos Pro Futuro o título de maior sistema de logística reversa de embalagens do Brasil na categoria “estruturante”, título dado àqueles programas de recuperação de materiais recicláveis de longo prazo do país e com investimentos consistentes. Atrás dele, de acordo com o relatório do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, estão o Pragma – Programa Recupera, com coleta de 106,7 mil toneladas, Ambipar, com 45,3 mil toneladas, e Pólen, com 9 mil toneladas.
Na categoria “não-estruturante“, de projetos que atuam por meio da aquisição de Certificado de Crédito de Reciclagem de Logística Reversa (CCRL) rastreadas por notas fiscais, o Instituto Giro é o maior, com 178 mil toneladas recuperadas. Já na categoria “massa futura”, projetos que podem ser estruturantes, mas cuja contabilização é feita pela antecipação de coletas futuras de materiais, nos anos seguintes, o Recicleiros se destaca, com 35 mil toneladas.
“Nós fazemos investimento direto em cooperativas, primeiro com compra de maquinário, expansão da capacidade produtiva e educação ambiental dos catadores e da sociedade”, explica Brasiliano. Nos últimos 10 anos, a média de investimento anual do Mãos Pro Futuro foi de R$ 30 milhões, sendo que 80% dos recursos são investidos diretamente nas cooperativas e 20% na manutenção de operação, pagamento de salários, sistemas e no que for necessário na operação da logística reversa.
As cooperativas recebem um montante financeiro do programa a cada trimestre. No início, o projeto fazia a transferência de recursos uma vez por ano, mas, com o passar do tempo, o intervalo diminuiu e agora recebem quatro vezes ao ano, uma adaptação necessária ao entenderem que as cooperativas estão sujeitas a muitos imprevistos, como incêndios, e precisam de um fluxo de recursos constante para se manter.
Hoje, 80% do material coletado é oriundo das cooperativas que estão no programa. O restante vem de parcerias com outros programas e compra de créditos, especialmente em regiões onde o número de cooperativas é baixo. “Por isso, temos um plano para aumentar o número de cooperativas que apoiamos para 300 até o fim de 2026”, conta Brasiliano ao Prática ESG.
Apesar de o plástico ser um dos materiais mais lançados no mercado pela indústria de beleza e higiene, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), legislação atualmente vigente, que foi publicada em 2010, não exige percentuais específicos de coleta para cada tipo de material, com exceção do vidro. Por isso, qualquer embalagem reciclável recuperada pode ser contabilizada para a meta das empresas.
Além de fazer parte de iniciativas setoriais, como o Mãos Pro Futuro e outras, para atingir suas metas e compromissos individuais de gestão de resíduos, algumas empresas também rodam programas paralelos de conscientização do cliente para retornar embalagens a pontos de coleta. Este é o caso do Boticário e da Natura, por exemplo.
No caso do Boticário, o Boti Recicla já existe desde 2006 e conta com mais de 4 mil pontos de coleta de produtos pós-consumo de beleza, higiene pessoal e cosméticos distribuídos pelo país, sem distinção de marcas. Para incentivar os clientes, a cada três embalagens devolvidas, o cliente recebe R$ 15 de desconto em compras acima de R$150.
Segundo o Boticário explicou ao Prática ESG, as embalagens recolhidas são encaminhadas para 14 cooperativas parceiras, onde são recicladas e transformadas em novos produtos, como chapas sustentáveis que substituem o MDF no mobiliário das lojas da própria marca e a construção de espaços educacionais em escolas públicas a partir de materiais reciclados.

Por ser um dos principais vendedores de perfumes do país, a logística reversa do vidro é um dos desafios. Além da coleta em si, a empresa faz estudos para reduzir a gramatura do vidro das embalagens e, com isso, diminuir suas emissões de gases de efeito estufa. Estas ações contribuem para o compromisso assumido pelo Grupo Boticário, de reduzir em 45% o volume de resíduos gerados por unidade vendida e utilizar 30% de material reciclado em suas embalagens até 2030.
No caso da Natura, o Recicle com a Natura, lançado em 2022, conta com mais de 900 lojas no Brasil e já coletou mais de 70 toneladas de embalagens, que foram repassados a cooperativas de reciclagem para serem reintroduzidas na economia ou terem uma destinação final adequada.
“Um dos maiores desafios que enfrentamos para conscientizar a população sobre a coleta seletiva é o pouco conhecimento sobre a importância e os benefícios desta ação”, diz ao Prática ESG Sergio Talocchi, Gerente Sênior de Cadeias Sustentáveis da Natura. “Muitas pessoas ainda não compreendem como a destinação adequada dos resíduos pode impactar positivamente o meio ambiente e a sociedade, além de não identificar os prejuízos causados pela destinação incorreta”, acrescenta.
Outro exemplo é o Benevides Recicla, projeto que desenvolvemos no município de Benevides, no Pará, em parceria com a prefeitura, cooperativa ReciclaBen e a ONG Espaço Urbano. O programa atua em diversas frentes, desde a conscientização e mobilização da população para o descarte correto de resíduos, até o apoio a catadores e cooperativas, com capacitação e estrutura de coleta. Em um ano, 81 toneladas de resíduos recicláveis foram corretamente destinadas, sendo um quarto vindo dos pontos de coleta e outras 61 toneladas encaminhadas pela Natura.
Para estimular a educação ambiental e engajar a população na separação dos resíduos recicláveis, Talocchi explica que cada embalagem entregue pela população gera ‘moedas humanitárias’, que podem ser trocadas por alimentos, itens de higiene, roupas ou produtos culturais, turísticos e esportivos. “Esta abordagem redefine o valor dos resíduos, transformando-os em recurso econômico para a comunidade local, incentivando a coleta seletiva e reduzindo o descarte inadequado”, afirma Talochhi.
Gestão de resíduos não é só uma problemática ambiental
A logística reversa não pode, contudo, se restringir a resolver o impacto ambiental. A inclusão e até integração das pautas sociais nas ambientais é uma tendência em vários segmentos. No caso da reciclagem, os catadores de materiais recicláveis são a figura central para o ciclo ser bem-sucedido.
“Não existe reciclagem sem cooperativas e catadores”, comenta Brasiliano, ABIHPEC. O executivo explica que no programa de logística reversa do setor, o Mãos Pro Futuro, a inclusão produtiva e melhora de vida e renda dos profissionais é um dos pilares. “O programa foi desenhado desde o início junto com cooperativas de catadores formalizadas”, comenta.
Hoje, no Brasil, estima-se que existam 800 mil profissionais de reciclagem, sendo que boa parte trabalha como autônomo, ou seja, não participa de cooperativas. Segundo o último Atlas Brasileiro da Reciclagem, publicado em 2023 pela ANCAT, associação nacional da categoria, em 2022, a remuneração média dos catadores associados e cooperados foi de R$ 1.478,82, cerca de 22% acima do salário-mínimo vigente no Brasil à época. As condições, em muitos casos, insalubres e jornadas exaustivas são algumas das críticas feitas à falta de atenção à profissão.
No ano passado, o governo federal prometeu R$ 425,5 milhões para iniciativas que beneficiem os catadores, mas a iniciativa privada também é um elo importante da cadeia. A ABIHPEC, em parceria com a produtora de papel e celulose Suzano, estabeleceu a meta de retirar cerca de 660 catadores da condição de extrema pobreza – aqueles que têm renda mensal per capita de até R$ 665,00 por mês, de acordo com o Banco Mundial Considerando familiares, espera alcançar mais de 2 mil pessoas. A iniciativa conta com investimentos de R$ 3 milhões para investir por três anos, principalmente em contratação de assessorias técnicas, capacitação e treinamentos com foco no aumento da renda dos catadores. Até o momento, a iniciativa chegou a 17 cooperativas de 15 municípios de cinco estados (SP, RJ, PA, BA e CE).
Talocchi, da Natura, conta que o Programa Elos promove, desde 2017, busca assegurar que a cadeia de reciclagem, que, além da empresa, inclui as cooperativas, recicladores e fabricantes, estão seguindo requisitos desejáveis de gestão organizacional, responsabilidade social e ambiental, transparência na gestão de recursos, respeito aos direitos humanos, condições de segurança na operação de máquinas, legislação ambiental, salubridade e conforto no ambiente de trabalho. Para isso, são feitas auditorias em fornecedores.
“Em 2024, investimos R$ 1 milhão no Elos, sendo R$ 633 mil em apoio direto e R$ 381 mil em indireto”, diz o executivo. Os investimentos diretos, explicam, contemplam a reconstrução de cooperativas afetadas por incêndios, a inclusão digna de catadores individuais na cadeia produtiva e a melhoria estrutural das unidades para aumentar a produtividade. “Foram ainda implementados mecanismos de incentivo financeiro para aprimorar a triagem e profissionalização da cadeia de PET”, conta. A Natura almeja tornar suas embalagens totalmente recicláveis até 2030.