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O grande apagão que deixou milhões de pessoas na Espanha e em Portugal sem energia na segunda-feira (28/04) destacou a situação única de seus sistemas elétricos.
Os dois países da Península Ibérica formam o que os especialistas chamam de “ilha energética”, com pouca conexão com o resto da Europa.
Na segunda-feira, a rede elétrica na Espanha e em Portugal entrou em colapso por motivos ainda sob investigação, privando moradores de energia e outros serviços essenciais, como transporte ferroviário, telecomunicações e atividades comerciais por horas.
Embora a energia já tenha sido restaurada, o incidente serviu para destacar as especificidades do sistema elétrico da Península Ibérica, cuja autonomia tem implicações positivas e negativas.
Como funciona a ‘ilha energética’ ibérica?
Espanha e Portugal compartilham um sistema elétrico altamente integrado que forma uma “ilha energética”. Embora ambos os países não estejam geograficamente isolados, eles têm capacidade muito limitada de importar ou exportar eletricidade para seus vizinhos.

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A taxa de interconexão da Península Ibérica com os demais países é de aproximadamente 2%, segundo a operadora espanhola Redeia, bem abaixo dos 10% recomendados pela União Europeia para 2022 e da meta de 15% para 2030.
Este baixo nível de conectividade deve-se, em parte, à sua localização geográfica no canto sudoeste da Europa, com a cordilheira dos Pireneus servindo de barreira natural entre Espanha e França, além dos obstáculos técnicos e políticos ao aumento da capacidade das ligações com a França ou com o Marrocos, por mar no sul.
“Temos conexões muito limitadas com o Marrocos. A única conexão significativa que temos é com a França, e ela é recente. Nesse sentido, somos uma ilha energética”, explica Carlos Gutiérrez Hita, professor do Centro de Pesquisa Operacional da Universidade Miguel Hernández, na Espanha.
Apesar deste isolamento, a península tem uma vasta rede interna compartilhada, permitindo uma estreita coordenação entre os dois países, gerida pelo Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL), onde portugueses e espanhóis compram e vendem eletricidade diariamente.
Gutiérrez Hita descreve o MIBEL como “uma plataforma gigantesca com todas as informações de licitações para usinas e empresas”.
“A plataforma classifica essas ofertas para criar a função de fornecimento e também coleta previsões de demanda dos distribuidores, muitos dos quais também são geradores”, explica ele.

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Graças a esse modelo conjunto, a energia flui livremente entre Espanha e Portugal, e o preço é quase sempre o mesmo em todas as regiões de ambos os países: “Se em algum momento o preço estiver muito alto em Portugal, ele é um pouco flexibilizado com as interligações de energia da Espanha”, diz o professor.
Este sistema tem limitações quando ocorrem eventos extremos, como o apagão de grandes proporções da última segunda-feira, já que, em caso de emergência, a capacidade limitada de importação de energia elétrica obriga os dois vizinhos a recorrerem a recursos próprios para resolver a situação.
Mas o sistema também tem certas vantagens.

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As vantagens
O fato de Espanha e Portugal formarem uma “ilha energética” trouxe benefícios nos últimos anos, especialmente em tempos de crise.
Um exemplo claro foi o chamado “mecanismo ibérico”, aprovado pela União Europeia em 2022 após o início da guerra na Ucrânia e a interrupção do fornecimento de gás russo.
Graças ao seu status excepcional como um sistema mal interconectado, a Península Ibérica recebeu aprovação para limitar temporariamente o preço do gás usado na geração de eletricidade, o que ajudou a conter os preços do mercado atacadista e a proteger tanto os consumidores quanto as indústrias com uso intensivo de eletricidade.
Além disso, embora a insularidade energética limite a capacidade de receber ajuda externa em momentos críticos, ela também promoveu um modelo mais autossuficiente, eficiente e resiliente, pelo menos em condições normais de operação.
No momento do apagão de 28 de abril, mais de 75% do consumo de eletricidade da Espanha veio de fontes renováveis, segundo dados da Redeia, que classifica o sistema ibérico como um dos mais verdes do mundo.
Carlos Gutiérrez Hita enfatiza que, devido à sua autonomia, Espanha e Portugal foram forçados a desenvolver um sistema mais versátil, variado e poderoso.
“Temos mais usinas de combustíveis fósseis, usinas de ciclo combinado, algumas usinas a carvão, embora ainda existam muito poucas, usinas eólicas e fotovoltaicas mais versáteis espalhadas pelo país, e algumas usinas nucleares. Tudo isso permite mais opções”, ressalta o especialista.
Gutiérrez Hita destaca que a Península Ibérica tem capacidade para gerar muito mais energia do que consome, “especialmente energia renovável, que inclusive foi injetada a preços negativos”.

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Além disso, a coordenação entre Espanha e Portugal permite a otimização do uso dos recursos energéticos com base no preço e na procura.
“Se o mercado for menor, você terá menos espaço para distribuir energia. Nessa perspectiva, ter um sistema conjunto é muito melhor”, acrescenta.
Olhando para o futuro, essa configuração também abre as portas para que Espanha e Portugal se tornem exportadores de energia limpa, desde que a capacidade de suas interconexões com a Europa seja aumentada.
As desvantagens
O apagão de segunda-feira evidenciou um dos maiores riscos de Espanha e Portugal se tornarem uma ilha energética: a dificuldade de receber apoio externo em caso de emergência.
Quando o colapso ocorreu, as interconexões com a França foram automaticamente interrompidas como precaução, e o sistema ibérico teve que ser amplamente restaurado por seus próprios meios.
“Assim que a França detectou que havia transferências de energia muito grandes, ela as interrompeu por precaução”, explica o professor Carlos Gutiérrez Hita.
Com quase nenhuma importação de eletricidade da França e do Marrocos, o sistema ficou sem reserva, embora, após o apagão, ambos os países tenham enviado eletricidade para a península para ajudar a restaurar o fornecimento.
“Em um momento difícil, essas coisas podem acontecer: você pode ter uma queda de energia porque ninguém pode tomar o seu lugar”, diz o especialista.

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Outro fator de vulnerabilidade é a intermitência das energias renováveis: embora sejam limpas e abundantes, sua produção depende de fatores meteorológicos, o que exige tecnologias capazes de compensar picos e quedas bruscas.
Por outro lado, as tentativas de fortalecer a interconexão elétrica com a Europa enfrentam há anos a oposição da França, que possui uma grande rede de usinas nucleares e, segundo alguns analistas, teme que o aumento das conexões com a Península afete sua posição no mercado.
Embora existam planos em andamento para novas ligações entre os Pireneus e o Golfo da Biscaia, sua construção tem sido lenta e dificultada pela oposição de certos setores.
Diante dessa situação, especialistas como Gutiérrez Hita insistem na necessidade urgente de investir em baterias, redes inteligentes e sistemas de armazenamento que permitam uma melhor gestão do grande excedente de energia renovável na Península Ibérica.
“É viável, mas a um custo alto. O grande desafio tecnológico é fazer baterias mais baratas, que durem mais e poluam menos ao final da vida útil”, afirma.
Isso permitiria que famílias e comunidades com seus próprios sistemas de energia solar reduzissem sua dependência do sistema centralizado, o que aliviaria a pressão na rede geral e aumentaria o excedente para consumo e exportação.
No entanto, o especialista ressalta que, para isso, é essencial que Espanha e Portugal superem o isolamento elétrico e que a União Europeia considere esta questão uma prioridade estratégica.