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- Author, Redação
- Role, BBC News Mundo
Podia ser pessoalmente ou por telefone, na calma da sua casa ou durante um ato político. Ouvir o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica sempre deixava algo para se refletir.
“Uma das desgraças da política é que ela abandonou o campo da filosofia e se transformou demais em um receituário meramente econômico”, declarou ele em 2014, quando ainda era presidente, em sessão plenária da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
“Não é que a economia não tenha importância”, prosseguiu ele. “Mas o homem, em algum momento [precisa fazer] estas perguntas: ‘Para onde vai a humanidade?’; ‘Qual é o futuro?’; e ‘Qual é a responsabilidade com a vida?'”
“A vida humana é quase um milagre no enorme silêncio mineral do universo.”
Mujica reunia a política e a filosofia. O resultado é o que ele mesmo reconhecia como o “dom da palavra”.
Ele empregava “a potência do discurso, do relato, para mover as vontades, a partir da emotividade e do pensamento, ‘da razão e do coração’, através da coerência entre o proclamado e o vivido”, como explica o livro José Mujica: Otros Mundos Posibles (“José Mujica: outros mundos possíveis”, em tradução livre), coordenado pelo historiador uruguaio Gerardo Caetano e publicado em 2024.
“Seu estilo de discurso derrubou fronteiras físicas, ideológicas, culturais e geracionais”, afirma o livro em seguida. “Mujica excede a categoria de viral.”
Selecionamos abaixo 10 frases deixadas por Mujica em entrevistas concedidas à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) e em outras ocasiões. Elas o definem como um líder político especial.
1. ‘Pobres são os que mais querem, porque nada chega para eles. Estes são pobres porque eles se metem em uma corrida infinita. Para eles, o tempo de vida não chega’
Entrevista à BBC News Mundo, em novembro de 2012.
Quando foi chefe de Estado do Uruguai, entre 2010 e 2015, Mujica era frequentemente chamado de “o presidente mais pobre do mundo”, devido à simplicidade com que vivia e por doar grande parte do seu salário.
Mas ele rejeitava este rótulo.
“O que chama a atenção do mundo? Que vivo com pouca coisa, uma casa simples, que ando em um carrinho velho, estas são as novidades?”
“Então, este mundo está louco, pois fica surpreso com o normal”, declarou Mujica em outra entrevista à BBC News Mundo, em dezembro de 2014.
Ele morou na sua chácara perto da capital uruguaia, Montevidéu, mesmo enquanto era presidente. Em também continuou dirigindo seu Fusca azul-celeste fabricado em 1987, que se transformou em um símbolo da sua figura política.
Tanto é verdade que ele chegou a ser recebido em carros parecidos, quando viajou para países como a Guatemala ou a Turquia.

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Em uma extensa entrevista concedida à BBC News Mundo em 2024, Mujica também explicou este tema.
“O grosso das nossas sociedades está submetido a uma autoexploração, pois o que ganha não costuma ser suficiente, porque tudo é feito para que nunca seja suficiente.”
“E precisa conseguir mais, e trabalha mais e cada vez mais, porque gasta cada vez mais. E paga com o quê? Com o seu tempo de vida, que gasta para produzir valor para poder pagar”.
“Quando sou livre? Quando escapo da lei da necessidade”, concluiu ele.
2. ‘Sei que sou um velho meio louco, porque filosoficamente sou estoico, pela minha forma de viver e pelos valores que defendo. E isso não se encaixa no mundo de hoje’
Entrevista à BBC News Mundo, novembro de 2024.
“Alguns me dizem: ‘Você é marxista’.”
“Não, o estoicismo é mais antigo que o cristianismo, não brinque comigo. É uma antiga corrente filosófica, uma concepção da vida. Daí vem a sobriedade com que vivo”, declarou Mujica, na mesma entrevista de 2024.
Desafiador como era, ele acrescentou: “E, como fui presidente, eles vêm aqui, veem esta casinha e me admiram. Mas não me copiam nem um pouquinho.”
Em janeiro de 2025, Mujica deixou público que o câncer de esôfago de que ele sofria havia se espalhado pelo corpo. Ele pediu que, nos seus últimos dias de vida, se permitisse que ele ficasse tranquilo, na sua chácara, trabalhando na terra.
Não por acaso, um dos princípios básicos do estoicismo é viver em harmonia com a natureza, acreditando que os seres humanos fazem parte de um todo maior.
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Neste sentido, em 2013, quando era presidente do Uruguai, ele deu um discurso ante a Assembleia Geral das Nações Unidas.
Mujica começou dizendo: “Me angustia, e de que maneira, o porvir que não verei e pelo qual me comprometo.”
“Prometemos uma vida de esbanjamento e desperdício e, no fundo, ela constitui uma conta regressiva contra a natureza e contra a humanidade como futuro”, prosseguiu ele. “Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.”
3. ‘Estes anos de solidão provavelmente foram os que mais me ensinaram (…). Precise repensar tudo e aprender a galopar para dentro por alguns momentos, para não ficar louco’
Entrevista à BBC News Mundo, novembro de 2012.
Na década de 1960, “Pepe” Mujica participou da fundação do Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros (MLN-T), uma guerrilha urbana de esquerda que tentou tomar o poder pelas armas.
Ele foi preso quatro vezes e passou, ao todo, 14 anos na prisão. Naquele período, foi submetido a torturas e isolado em cisternas ou caixas de cimento.
“Quando fiquei preso, passei quase sete anos sem livros, em um quarto menor do que este”, contou ele à BBC em 2024.
“Eles me transportavam de um quartel para outro. Então, acabei contraindo o vício da misantropia, de falar comigo mesmo.”
“Aquilo foi como uma autodefesa, nas condições em que eu estava, para não perder o juízo. Mas acabou incorporado. Se transformou em um costume.”

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Mujica foi libertado em março de 1985, com a volta da democracia ao Uruguai. Ele conta que aquele dia era a recordação mais feliz da sua vida.
Em um discurso, dois dias depois da libertação, ele afirmou: “Aprendemos, também, sem livros, um modo de olhar […] um tanto panteísta.”
“Gostávamos das aranhas, gostávamos das formigas, porque eram a única coisa viva que tínhamos na solidão dos nossos calabouços. Somos da natureza e com ela estamos.”
4. ‘No meu jardim, há décadas não cultivo o ódio. Porque aprendi uma dura lição imposta pela vida: que o ódio acaba estupidizando, porque nos faz perder a objetividade frente às coisas’
Discurso de renúncia ao cargo de senador uruguaio, outubro de 2020.
Como outros líderes latino-americanos, “Pepe” Mujica despertou paixões favoráveis e contrárias. Mas governou mais com pragmatismo do que com ideologia.
Depois de deixar a presidência com larga popularidade, ele evitou voltar ao cargo e passou a ser senador.
Em outubro de 2020, Mujica renunciou devido ao risco representado pela sua idade avançada durante a pandemia de covid-19. Ele, então, alertou contra o “ódio” e se abraçou ao ex-presidente uruguaio Julio María Sanguinetti, de quem havia sido adversário político.
Estas palavras vão de encontro ao seu discurso de 1985, logo após sua libertação da prisão.
“Não acompanho o caminho do ódio, nem mesmo contra aqueles que cometeram baixezas contra nós. O ódio não constrói.”
“Não se trata de uma postura demagógica, não é questão de evitar os problemas, não se trata de colocar uma feição bonita; estes são princípios, coisas que não podemos penhorar.”

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5. ‘Vocês vão envelhecer, vão ter rugas e, algum dia, vão se olhar no espelho e terão que se perguntar, naquele dia, se vocês traíram a criança que tinham dentro de si’
Discurso no Brasil, durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes, julho de 2023.
Quando era presidente, “Pepe” Mujica usava um velho celular dobrável, que amarrava com uma fita elástica.
Dizia que, “por ser velho”, não era adepto das novidades tecnológicas. E também evitava as redes sociais.
Ainda assim, muitas das suas frases e discursos viralizaram, principalmente entre os jovens. Foi o que ocorreu quando discursou durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes, no Brasil.
Sobre seu lado viral, ele declarou para o livro José Mujica: Otros Mundos Posibles:
“Acredito que o mundo está tão cheio de lugares comuns que causa uma certa surpresa um sujeito que diz coisas um pouco diferentes.”
“Existe uma crise de avôs”, disse Mujica. “Nas sociedades modernas, não existem avôs.”
“Há um vazio. E eles se agarram a mim como a um avô, principalmente os jovens.”

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Semanas depois de deixar a presidência, em abril de 2015, Mujica aceitou participar de uma conversa virtual com o público da BBC News Mundo.
Ele respondeu perguntas que chegaram por correio eletrônico e pelas redes sociais de todas as partes do planeta – do Irã à Indonésia, da Rússia ao Azerbaijão e, é claro, da América Latina.
Na ocasião, ele declarou: “O que não posso aceitar é ver um casalzinho em um café e, em vez de eles se darem as mãos, ficam olhando seus telefones. Não entendo.”
6. ‘O que me assusta é o narcotráfico, não a droga. E, pela via repressiva, é uma guerra perdida. Está sendo perdida em todos os lugares’
Entrevista à BBC News Mundo, novembro de 2012.
Outro motivo que chamou a atenção do mundo para Mujica quando era presidente foi seu apoio a reformas jurídicas e sociais no Uruguai, como a descriminalização do aborto, o reconhecimento do matrimônio de casais do mesmo sexo e a legalização da maconha.
Mujica sancionou uma lei aprovada pelo parlamento nacional em 2013, que transformou o Uruguai no primeiro país do mundo a colocar nas mãos do Estado a produção, distribuição e venda de maconha.
Ele nunca defendeu o consumo de drogas, mas justificou este caminho como uma forma de retirar clientes do narcotráfico. Era uma alternativa à estratégia de proibição, que Mujica considerava um fracasso.
Outra das reformas que despertou o reconhecimento internacional do então presidente foi a transformação da matriz energética uruguaia, impulsionando as fontes renováveis de energia.

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7. ‘Triunfar na vida não é ganhar. Triunfar na vida é se levantar e começar de novo cada vez que se cai’
Discurso de renúncia ao cargo de senador, outubro de 2020.
A própria vida de “Pepe” Mujica foi repleta de queda e retornos.
Quando era guerrilheiro, ele foi capturado quatro vezes pelas forças de segurança uruguaias. E, em uma dessas ocasiões, ele levou seis tiros que colocaram sua vida em perigo.
Mujica fugiu duas vezes da prisão – uma delas, por um túnel com mais 105 presos tupamaros – e foi novamente detido nas duas ocasiões.
Na época, ninguém imaginava que ele acabaria sendo presidente do Uruguai, eleito pelo voto democrático.
No livro Una Oveja Negra al Poder (“Uma ovelha negra no poder”, em tradução livre), dos jornalistas uruguaios Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz, Mujica falou de seus erros com um tom menos envergonhado.
“Posso estar errado, mas sempre tive meus sonhos, que são grandes. Eles não podem dizer que não tenho estratégia; pode ser uma bobagem, mas tenho.”
“Para sonhar, ainda tenho pernas”, contou ele.
8. ‘Foi criada uma literatura falsa contra o Estado. Mas o Estado é como a caixa de ferramentas, não tem consciência. A falha é nossa, dos seres humanos que administram o Estado.’
Entrevista à BBC News Mundo, novembro de 2024.
Além dos elogios, o governo de Mujica também recebeu críticas por vários motivos.
Um deles foi o aumento dos gastos e o déficit fiscal do país em tempos de bonança. A economia uruguaia cresceu, em média, 5,4% ao ano durante o mandato de Mujica.
O país reduziu a pobreza naqueles anos, mas Mujica se criticava por não ter conseguido eliminá-la.
“É inconcebível que, no Uruguai, haja tantas pessoas com dificuldades para comer”, declarou ele à BBC em 2024.
“E eu também tenho responsabilidade por isso. Pude e devia ter feito mais.”
Mujica também não atingiu seu propósito declarado de reverter a deterioração da educação uruguaia.

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Em 2015, em diálogo com um público da BBC News Mundo, ele declarou:
“O poder do presidente é relativo, porque todos dizem ‘Sim, senhor’. Mas, para que isso aconteça, para que o que você que aconteça se torne realidade, falta muito.”
Ainda assim, no seu discurso durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes do Brasil, em 2023, Mujica disse que “a democracia não é perfeita”.
“A democracia está cheia de defeitos porque são nossos defeitos humanos, mas não encontramos nada melhor até hoje. Por isso, é fácil perdê-la e difícil voltar a ganhar. É preciso cuidar dela.”
Outra diferença entre Mujica e outros líderes políticos da região é que ele nunca foi acusado diretamente por denúncias de corrupção durante o exercício do governo.
Discurso no Brasil, durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes, julho de 2023.
“Precisamos construir um novo relato da nossa própria história”, declarou Mujica neste discurso de 2023.
Ele criticou em várias oportunidades a expressão “América Latina”, mas era um profundo defensor da região.
Em março de 2010, no seu discurso ao Parlamento uruguaio na cerimônia de posse na presidência, Mujica disse:
“Fizemos, talvez, muitos países bonitos, mas continuamos fracassando ao fazer a Pátria Grande; pelo menos até agora. Nós não perdemos a esperança, pois os sentimentos ainda estão vivos.”
“Do rio Bravo até as Malvinas, vive uma só nação: a nação latino-americana.”

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Mujica acreditava que a política externa é “a política nacional mais importante”.
Em 2012, ele afirmou sobre os dois países limítrofes do Uruguai que “os países não se mudam [de lugar].”
“Cabe a nós viver entre o Brasil e a Argentina […] Não há equilíbrio porque somos muito pequenos. Por isso, precisamos ser duplamente inteligentes.”
10. ‘Todas as coisas vivas são feitas para lutar para viver, desde uma planta ou uma rã até nós. Chegamos à conclusão: isso é colocado para dar sabor à vida.’
Entrevista à BBC News Mundo, novembro de 2024.
Em suas palestras e discursos, Mujica costumava misturar temas políticos com reflexões sobre o amor, a vida e a morte, que sempre declarou ver com naturalidade.
“Sou um ancião que está muito perto de empreender a retirada da qual não se volta”, disse ele, em um ato em outubro de 2024. Sua declaração comoveu muitas pessoas, que chegaram às lágrimas.
“Mas estou feliz porque vocês estão aqui, porque, quando meus braços se forem, haverá milhares de braços substituindo a luta”, prosseguiu ele. “E, por toda a minha vida, eu disse que os melhores dirigentes são os que deixam um grupo que os supera com vantagem.”
Na entrevista de 2024 à BBC News Mundo, Mujica contou que “deveria ser um crente fanático. Porque a morte andou rondando a cama onde eu estava por várias vezes. E consegui chegar até hoje.”
“E, apesar de todos os pesares, fiquei anos preso, aconteceu de tudo comigo e, depois, fui presidente. Então, preciso gritar ‘obrigado à vida’.”