O Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB), entidade que representa os oficiais de registro de imóveis em nível institucional, divulgou recentemente um parecer técnico contestando a segurança jurídica e a eficiência da tokenização imobiliária. O documento aponta que a criação de um sistema paralelo de direitos reais sobre bens imóveis pode gerar “opacidade”, “inconsistências de informação”, “evasão fiscal” e um “alto potencial de anulações em massa de transações.”
O parecer do IRIB argumenta que a tecnologia, isoladamente, não substitui a necessária análise jurídica da manifestação de vontade e da conformidade legal. Em alguns casos, alega o documento, a natureza imutável das redes blockchain pode colidir com a capacidade do Poder Judiciário de rever atos.
Além disso, o IRIB alerta para um possível retrocesso na segurança jurídica estabelecida no mercado imobiliário brasileiro e o risco de evasão fiscal, visto que a negociação de imóveis tokenizados poderia permitir o exercício das faculdades do domínio sem o pagamento dos impostos territoriais e de transmissão.
Em depoimento ao Cointelegraph Brasil, Fernando Lopes, advogado especialista em tokenização e DeFi (finanças descentralizadas), diz que o parecer é pertinente ao criticar modelos que buscam substituir a confiança no tabelião, pela confiança em plataformas privadas de tokenização, independentemente do uso da blockchain como infraestrutura.
No entanto, “ao desconsiderar a tokenização imobiliária em redes públicas, mediante uso de contratos inteligentes para automação das negociações, bem como a blockchain como livro de registro global, o parecer ignora não só a negociação de trilhões de dólares em protocolos DeFi, com máxima segurança jurídica, mas também a busca de integração com a rede Ethereum por sistemas como o Swift, ou até mesmo pelo Banco Central do Brasil”, argumenta o advogado.
Os avanços na tokenização de ativos reais (RWA) e da própria digitalização de registros públicos e processos judiciais estão criando um novo paradigma, afirma Arthur Coelho, CEO da Tokeniza, em entrevista ao Cointelegraph Brasil. Para o executivo, as críticas do IRIB baseiam-se em uma lógica superada:
“A crítica do IRIB faz sentido dentro do modelo atual, em que os cartórios centralizam a produção de efeitos jurídicos. No entanto, a tokenização propõe justamente substituir essa lógica, não operar em paralelo. Quando um imóvel já nasce tokenizado, com todo o histórico registrado em blockchain, há um ganho substancial em segurança, rastreabilidade e integridade.”
Coelho refuta as alegações do IRIB de que a imutabilidade de redes blockchain é prejudicial à segurança dos registros de imóveis por não atender às necessidades do ordenamento jurídico. O executivo afirma que a tecnologia permite “a criação de novos lançamentos que anulam ou modificam juridicamente os anteriores.”
Coelho acrescenta que, ao contrário do que sugere o parecer, ao garantir que os registros sejam publicamente acessíveis e auditáveis há um incremento na segurança do sistema com a tokenização.
Contestações do IRIB: Riscos e Insegurança Jurídica na Tokenização Imobiliária
O parecer do IRIB analisa as supostas vantagens da tokenização imobiliária, confrontando-as com a realidade do sistema legado. Para a entidade, a criação de um sistema paralelo de direitos reais sobre bens imóveis não apenas não traz as melhorias esperadas, mas introduz riscos significativos e desnecessários ao mercado imobiliário.
Como precedente negativo, o parecer cita o caso do “Mortgage Electronic Registration System (MERS) nos Estados Unidos. Durante a crise de 2008, o sistema evidenciou como a descentralização de informações pode dificultar a identificação da titularidade de direitos, provocando uma enxurrada de disputas judiciais.
No Brasil, onde a consulta à matrícula imobiliária já é suficiente para identificar a situação do imóvel, a tokenização introduziria um “risco oculto de demandas judiciais.”
Lopes argumenta que o sistema de registro de imóveis brasileiro baseia-se na “confiança no Tabelião”, que por si só apresenta-se como “inseguro e ineficiente.”
“A Lei não pode mudar os problemas que justificam o modelo baseado na confiança no tabelião; já a tecnologia das redes públicas, cotejada com a arquitetura jurídica adequada, pode”, afirma o advogado.
Em um mercado imobiliário tokenizado, “o cartório deixa de ser um ente centralizador para atuar como validador em um ecossistema distribuído, mais transparente e eficiente”, acrescenta Coelho.
O executivo da Tokeniza afirma que a segurança jurídica e operacional da tokenização não depende exclusivamente da tecnologia, mas sim de sua integração com os princípios do Direito:
“Quando bem estruturada, a tokenização assegura confiabilidade por meio de contratos inteligentes autoexecutáveis, registros imutáveis, trilhas auditáveis e governança validada por operadores jurídicos.”
O IRIB reconhece que a tokenização poderia conferir maior agilidade às transações. No entanto, isso implicaria a flexibilização das verificações legais. A regulação do mercado imobiliário em vigor assume que transações que envolvem imóveis exigem cautelas especiais, como a identificação das partes, a manifestação de vontade compreendida e a análise jurídica de validade.
Remover esses mecanismos de controle, substituindo-os por verificações puramente tecnológicas (como chaves criptográficas ou biometria), não garante que a vontade formalizada seja a vontade real, abrindo precedente para anulações posteriores, afirma o parecer.
A qualificação registral hoje implica a devolução de 16% a 50% das transações para regularização; sem ela, o percentual de transações defeituosas poderia levar a “anulações em massa” e uma crise imobiliária de grandes proporções, de acordo com o parecer.
Coelho desconsidera tal hipótese, ressaltando que “a manifestação de vontade pode ser registrada com múltiplas camadas de verificação, como assinatura eletrônica qualificada, biometria, KYC e validação por entes com fé pública digital.”
Sistemas paralelos ou integrados? Eis a questão
O parecer do IRIB pressupõe a coexistência de dois sistemas paralelos, o registral e o tokenizado. Segundo o documento, a duplicação de repositórios geraria “inconsistências nas informações”, dificultando procedimentos essenciais como a notificação de litigantes em processos de regularização fundiária ou usucapião. Como efeito colateral, os processos judiciais poderiam ser submetidos a constantes travamentos, comprometendo a integridade do mercado.
Coelho rejeita a ideia dos sistemas paralelos. Segundo ele, o desafio que se impõe ao mercado e aos reguladores é integrar a nova infraestrutura digital e descentralizada ao sistema legado por meio de uma transição segura e gradual, com respaldo jurídico.
“Para imóveis que ainda não estão no ambiente digital, o caminho é semelhante ao da digitalização dos processos judiciais: converter o acervo analógico em registros digitais auditáveis, seja por esforço conjunto dos cartórios, seja no momento da transação, quando o histórico é validado e registrado em blockchain como novo fato jurídico”, afirma o executivo.
Coelho entende que, atualmente, as barreiras à incorporação da tokenização ao sistema de registro de imóveis é fundamentalmente uma questão institucional – e não tecnológica.
Ao afirmar que a tokenização faria ressurgir problemas que foram superados há mais de um século pelo sistema registral brasileiro, o parecer do IRIB revela uma resistência à inovação, além de garantir que não haja uma redistribuição do controle sobre as atividades do mercado imobiliário.
Para que a tokenização imobiliária seja plenamente integrada à economia e deixe de ser vista como um sistema paralelo e alternativo, três pilares precisam ser estabelecidos, conclui Coelho:
“Reconhecimento legal da blockchain como infraestrutura registral com efeitos jurídicos plenos; estruturas híbridas de governança, com operadores jurídicos atuando como validadores dos atos na rede; adoção de normas específicas de interoperabilidade com o sistema atual, assegurando a migração segura e rastreável de imóveis ‘analógicos’ para o ambiente tokenizado.”
A despeito das objeções à tokenização, o Brasil acaba de ganhar a primeira bolsa de tokens RWA atrelados a imóveis do mundo, conforme noticiado pelo Cointelegraph Brasil.
Fruto de uma joint venture entre a Netspaces e a CF Inovação, a bolsa de imóveis tokenizados entrou em operação neste mês, com 100 incorporadoras, 10.000 corretores e presença em diversas cidades do Brasil.