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- Author, Gerardo Lissardy
- Role, Da BBC News Mundo
Vestido com jaqueta de couro preta, o presidente argentino Javier Milei cantou músicas de Charly García e Los Ratones Paranoicos diante de milhares de pessoas. Pulou, ergueu os braços em um palco em meio a fogos de artifício e encerrou dizendo: “Vou tomar banho e me vestir de presidente”.
A Argentina tem uma longa história de shows de rock para todos os gostos, mas o protagonizado na noite de segunda-feira (06/10) pelo presidente foi diferente: um ato político com efeitos incertos.
O mais recente desses casos polêmicos foi a renúncia, no domingo, do candidato governista a deputado por Buenos Aires, José Luis Espert, por supostos vínculos com um empresário acusado de tráfico de drogas nos Estados Unidos.
É por isso que o show apresentado por Milei nesta semana é considerado algo inusitado até por especialistas.
“Para a Argentina, neste momento tão difícil, (…) não parece seguir os padrões de como deve ser conduzida uma política nacional”, disse Lara Goyburu, cientista política argentina que dirige a empresa de consultoria Management & Fit, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Mas o que o presidente libertário buscava com um ato desse porte?
‘Foi estranho’
O show serviu de prévia para o lançamento de seu livro La Construcción del Milagro (A Construção do Milagre, em tradução livre), que reúne de ensaios pessoais a anotações sobre o início de seu governo, em dezembro de 2023.

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De fato, depois de cantar e em seguida se vestir “como presidente” de terno e gravata, Milei retornou ao palco para transmitir diversas mensagens políticas.
Ele relembrou o início de sua carreira política alguns anos antes, destacou algumas conquistas de seu governo, como a redução da pobreza, e pediu confiança de que conseguirá “acabar com a inflação” no país.
Também houve mensagens durante o show que ele fez com a Banda Presidencial, da qual faz parte junto com outros membros de seu partido, La Libertad Avanza, interpretando clássicos do rock argentino.
Durante o show, o presidente também fez ataques à oposição. Ele se referiu ao movimento kirchnerista, liderado pela ex-presidente Cristina Kirchner, com uma mensagem: “Eles ganharam um round, mas não a batalha”.
No mês passado, La Libertad Avanza sofreu sua pior derrota eleitoral, perdendo para a oposição peronista nas eleições legislativas da província de Buenos Aires, a mais populosa do país.
Desde então, o governo enfrenta novos desafios.

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As dificuldades financeiras e monetárias da Argentina levaram o presidente dos EUA, Donald Trump, a oferecer apoio do Tesouro americano ao aliado Milei.
O ministro da Economia argentino, Luis Caputo, esteve em Washington na segunda-feira (06/10) para negociar o pacote de assistência financeira, ainda indefinido. Por isso, não participou do ato político-musical em Buenos Aires.
Também esteve ausente José Luis Espert, que renunciou na véspera à principal candidatura a deputado do governo após suspeitas de ter recebido financiamento de Federico “Fred” Machado, empresário cuja extradição para os EUA, por acusações de narcotráfico, foi aprovada na terça-feira (07/10) pelos poderes Judiciário e Executivo argentinos.
O episódio se soma ao vazamento de áudios de um ex-diretor da Agência Nacional para a Deficiência (Andis, na sigla em espanhol), que sugerem pagamento de propina a Karina Milei, irmã do presidente e secretária-geral da Presidência.
No início deste ano, o próprio Milei foi citado em outra polêmica ao promover a criptomoeda $Libra, investigada pela Justiça como um possível esquema de fraude. Ele nega ter cometido qualquer irregularidade.

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A corrupção passou a liderar, em agosto e setembro, as menções nas pesquisas da consultoria Management & Fit sobre os problemas que mais afetam os argentinos, superando a insegurança e a inflação.
“Além do descontentamento com a situação atual, começa a surgir uma desconfiança acerca de uma futura melhora”, afirma Goyburu, analista político da Management & Fit.
Segundo Goyburu, Milei buscou com o ato musical inusitado “recuperar a mística” que mobilizou sua base eleitoral em 2023, especialmente entre jovens que o veem como distante da classe política tradicional.
“Diante da fuga dos eleitores moderados, procurou-se reforçar o núcleo duro”, explica. “Foi algo incomum, disruptivo e inovador para a prática política nacional, sem dúvida. Mas é assim que Milei tem se mostrado como figura da vida pública argentina, e ele conseguiu chegar até aqui.”
Para Goyburu, “é uma incógnita o que pode acontecer depois das eleições do dia 26”.
‘Retorno ao planeta Terra’
Especialistas afirmam que, com o show, Milei correu o risco de alienar ainda mais setores da população que nunca votaram nele ou que o apoiaram apenas no segundo turno de 2023.
O show presidencial recebeu críticas de opositores e até de políticos que tiveram relação próxima com Milei no passado, como o ex-ministro da Economia Ricardo López Murphy.
“Volte ao planeta Terra, presidente. O país precisa do senhor aqui”, escreveu Murphy, atualmente deputado, na rede social X (antigo Twitter). “As imagens transmitem uma mistura de constrangimento, raiva e dor.”

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Marina Acosta, doutora em ciências sociais e responsável pela comunicação da consultoria argentina Analogías, afirma que o governo de Milei atravessa “seu pior momento”, com queda nos índices de aprovação da gestão e na imagem do presidente.
Sinal disso é uma pesquisa recente da Bloomberg/AtlasIntel, realizada entre os dias 10 e 14 de setembro: 53,7% dos entrevistados afirmaram “desaprovar” o presidente argentino, enquanto 42,4% afirmaram que o “aprovam”. O restante (3,8%) não sabe.
Esta é a pior avaliação de Milei desde que ele tomou posse. Sobre o governo, na mesma pesquisa, 49,5% dos entrevistados o definem como “ruim ou muito ruim” enquanto 33,4% o consideram “bom ou excelente”.
A analista Shila Vilker, da empresa de pesquisas e opinião pública Trespuntozero, diz que nos dois meses anteriores às eleições legislativas na província de Buenos Aires, o apoio ao governo e ao presidente Milei caiu cerca de 10 pontos percentuais, ficando em 39,9%.
No ano passado, estes percentuais estavam entre 50% e 52%.
Segundo Acosta, Milei prometeu ajustar a “casta” política, combater a corrupção e melhorar a economia, mas muitos argentinos percebem que o ajuste recai sobre a população em geral. Além disso, surgem novos escândalos e o preço do dólar voltou a subir.
“O governo enfrenta um problema sério: ficou sem bandeiras para defender”, disse Acosta à BBC News Mundo. “O ato buscava reafirmar a identidade de um espaço que tem poucos resultados para mostrar à população.”
Preocupações além da inflação
De acordo com a analista Shila Vilker, da empresa de pesquisas e opinião pública Trespuntozero, a percepção dos argentinos sobre a economia pesou na queda recente na popularidade de Milei.
Dados oficiais mostram que a economia tem dado sinais de estagnação e alguns especialistas especulam sobre riscos de recessão — o que Milei e sua equipe descartam.
Recentemente, Milei reconheceu, em entrevista a um canal de televisão local, que a economia está “paralisada” e atribuiu o fato à oposição no Congresso.
Segundo algumas pesquisas, a própria derrota em Buenos Aires foi influenciada pela desaceleração da economia e a dificuldade das pessoas de adquirir produtos básicos e pagar suas contas.
A preocupação dos argentinos já não é tanto com a inflação, que caiu no governo Milei.
Em 2023, o índice anual chegou a 211,4%. Em 2024, foi de de 117,8%. Para 2025, a expectativa é que a inflação anual seja de 28,2%, segundo o Levantamento de Expectativas do Mercado (REM) divulgado pelo Banco Central.
Economistas atribuem a queda inflacionária ao forte ajuste fiscal e monetário implementado pelo governo Milei.
Mas, segundo analisa o economista Enrique Szewach, reduzir a inflação “não está sendo suficiente” para convencer a população.
O custo de vida continua alto e faltam políticas de geração de empregos, ele aponta.
Nos últimos tempos, os salários não acompanharam o ritmo dos preços. O salário mínimo, por exemplo, teve perda de 30% no poder de compra durante o governo Milei, segundo dados do Centro de Pesquisa e Formação da República Argentina (CIFRA), divulgados no início de setembro pelo jornal Clarín.
“Nas diferentes pesquisas que realizamos, nos últimos meses, baseadas em focus groups [grupos focais], as classes média e baixa, não pobre, e que representam cerca de 24 milhões de pessoas, responderam que ‘comprar é um estresse’ e ‘o dinheiro acaba muito antes do fim do mês'”, aponta Guillermo Olivetto, especialista em consumo.
“Até pouco tempo, muitos diziam que o esforço valia a pena e apoiavam [as medidas de Milei].”
Há preocupações também com o acesso a empregos, inclusive os formais.
Dados do Instituto de Estatísticas e Censos (Indec) divulgados em 18 de setembro mostram que, no segundo trimestre deste ano, o desemprego foi de 7,6% — levemente inferior aos três meses anteriores, quando o indicador foi de 7,9%, e igual ao último trimestre de 2024.
Mas, segundo dados da Secretaria do Trabalho divulgados pela imprensa local, entre novembro de 2023 e abril deste ano caiu o total de empregos registrados, tanto privados quanto públicos. A redução foi de 258.300 postos de trabalho.
E, de acordo com o Indec, os trabalhadores informais chegaram a 43,2% da população ativa no segundo trimestre deste ano. Este índice é levemente superior aos 41,6% do trimestre anterior.
Além disso, os preços de serviços públicos como transporte, água, luz e telefonia aumentaram porque o governo Milei reduziu ou eliminou os subsídios que eram aplicados pelos governos anteriores.
Para completar, a alta de investimentos estrangeiros que o governo esperava atrair não ocorreu, observam os economistas.
Em um comunicado no mês passado, a União Industrial Argentina (UIA) elogiou a “organização macroeconômica, a queda na inflação e o equilíbrio fiscal” do governo Milei, mas criticou o custo de produção e as taxas de juros.
Em seu levantamento mensal, a UIA informou, nesta semana, que a atividade industrial caiu 3% em agosto em relação ao mesmo mês do ano passado.
O Banco Central da República Argentina (BCRA) fixou, em janeiro deste ano, em 29% a taxa básica de juros, chamada de Taxa Normal Nominal (TNA). Porém, este índice pode variar de acordo com o banco ou segmento econômico.
Entre julho e agosto, por exemplo, os juros para as pequenas e médias empresas saltaram de 44% para mais de 60%, segundo reportagem do jornal Clarín.