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sábado, novembro 22, 2025

Maria Bonomi e o gesto de pensar – Revista Cult

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Há artistas cuja obra é movida pela intuição e outros cuja criação se ancora no pensamento. Maria Bonomi pertence à categoria mais rara: aquela em que o gesto e a ideia se tornam indissociáveis. A grande retrospectiva A arte de amar, a arte de resistir, em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, não é apenas um percurso estético — é uma demonstração de que a arte pode ser forma de conhecimento, ética e linguagem do tempo.

Nascida em 1935, em Meina, na Itália, e chegada ao Brasil ainda menina, Bonomi formou-se entre mestres que marcaram a modernidade artística do país — Yolanda Mohalyi e Livio Abramo —, mas sua gravura jamais foi apenas técnica ou tradição. Desde cedo, compreendeu que o ato de gravar implica um confronto: o corpo da artista em relação à matéria, a madeira resistindo ao gesto, o pensamento abrindo caminho na superfície do mundo. Daí a definição que ela mesma cunhou: a gravura como fenômeno perene mutante. Nada mais preciso — a imagem, em sua obra, nunca se cristaliza; pulsa, vibra, transmuta-se.

Cada corte é uma inscrição na história. Cada impressão, uma tentativa de permanência. Bonomi encontrou na gravura o que o filósofo Didi-Huberman chamaria de “a sobrevivência das imagens”: nelas, o tempo não se apaga, mas se sedimenta em camadas de sentido. Sua juventude coincidiu com uma época em que a xilogravura servia também de instrumento político — nas revoluções e nas resistências. Essa dimensão pública e comunicativa da arte permaneceu como marca fundante de sua trajetória.

Com o passar dos anos, o gesto da gravura expandiu-se até ocupar o espaço urbano. Murais e painéis monumentais transformaram a cidade em matriz. Obras como as da Estação da Luz, do Memorial da América Latina e de tantas fachadas paulistanas constituem uma verdadeira topografia da convivência. Em Bonomi, o espaço público não é apenas cenário: é campo de experiência estética compartilhada. A cidade é a página em que a artista grava o sentido da coletividade.

Entre essas obras, há uma que ocupa lugar particular: Propulsão (2023), o monumental painel criado para o Colégio Bandeirantes — sua única obra concebida para uma escola e inteiramente dedicada ao tema da educação. Com mais de seis metros de altura por sete de largura, domina o hall de entrada e transforma o espaço de passagem em território de pensamento. Inspirada pela ideia de que a arte é uma forma específica de conhecimento, Propulsão faz dialogar instrumentos de cálculo e escrita com signos da imaginação contemporânea. O resultado é uma síntese da inteligência criadora: a fusão entre o rigor da ciência e a liberdade da arte. É frequente ver os alunos reunidos aos pés da obra, estudando, desenhando, absorvendo seu magnetismo silencioso. Poucas criações exprimem com tamanha clareza o vínculo entre arte, educação e democracia.

A exposição no Paço Imperial, com curadoria de Paulo Herkenhoff e Maria Helena Peres Oliveira, percorre mais de 250 obras distribuídas em onze salas. Gravuras, relevos, esculturas e instalações configuram um pensamento contínuo: o da artista que faz da forma uma investigação sobre o tempo. Amar e resistir, como sugere o título, são verbos de uma mesma gramática. Amar é reconhecer no outro a potência do encontro; resistir é insistir na criação como ato civilizatório.

Aos 90 anos, Maria Bonomi mantém intacta a lucidez de quem concebe a arte como gesto político — não panfletário, mas existencial. Sua obra nasce de uma ética do fazer e da responsabilidade do olhar. Nela, o pensamento não está fora do corpo, mas inscrito nos sulcos da madeira, nas dobras do espaço, na textura da cidade.

Revisitar Bonomi é reencontrar uma concepção de arte como forma de mundo. Suas matrizes, suas superfícies e seus murais nos recordam que toda criação verdadeira é um modo de pensar e de agir. Em um tempo saturado de ruído e distração, sua gravura nos devolve o silêncio essencial do trabalho, o sentido da continuidade e a crença na inteligência humana.

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Serviço

Maria Bonomi: A arte de amar, a arte de resistir

Local: Paço Imperial — Praça XV de Novembro, 48, Centro, Rio de Janeiro

Período: até 16 de novembro de 2025

Curadoria: Paulo Herkenhoff e Maria Helena Peres Oliveira

Visitação: terça a domingo, das 12h às 18h — entrada gratuita

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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro.

 



[Fonte Original]

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