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sexta-feira, novembro 22, 2024

Dar lugar à loucura – Revista Cult

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“Quando a gente anda pelo mundo, o que importa não é a cabeça, mas os pés! É preciso saber onde colocar os pés. São eles os leitores do mapa do mundo, da geografia. Não é sobre a cabeça que você anda! (…) é com os pés que se chega lá, não com a cabeça.”
Tosquelles

A história do que se chamou de psicoterapia institucional francesa começa na Catalunha na guerra contra o franquismo. Há uma história da luta comunista e anarquista contra o fascismo na Espanha que antecipa a segunda guerra e se prolonga até a década de 70 na Espanha e em Portugal, pelo menos, para ficar na Europa central. Quer dizer, mesmo na Europa, o nazi-fascismo não foi derrotado quando Hitler caiu. (Seus protocolos psiquiátricos continuavam a vigorar na Alemanha, muito depois do fim do seu governo, como denunciou o SPK).

A história política da Europa e das suas formas de resistência se confunde com a da psicoterapia institucional. Da mesma maneira, a influência de Freud foi determinante para essa transformação no interior da psiquiatria. A invenção da psicanálise, a ideia freudiana de inconsciente, fez muitos psiquiatras sonharem com o fim dos manicômios. Mas as transformações no campo da psiquiatria também tiveram como base a política e suas práticas. O interessante no trabalho de Tosquelles como no trabalho de Félix Guattari é justamente esse encontro de mundos e práticas.

O termo psicoterapia institucional não foi criado por Tosquelles, ele não escolheria a palavra “institucional”, que dá a ideia de um grupo fechado, porque sua clínica era justamente o oposto disso. De qualquer forma, instituição aqui significa tudo que faz grupo (um espaço frequentado com uma certa regularidade por esse grupo) e aqui é ela quem analisa.

O campo da fala não emerge de um indivíduo abstrato e solitário, de um indivíduo que não seja um produto social, histórico, não articulável com os outros. Delimitar campos de fala com os outros talvez seja o principal da psicoterapia institucional e, evidentemente, não pode ser obra apenas do terapeuta, a quem cabe, no máximo, simplesmente, talvez, preparar o terreno ou disponibilizar vias não coercitivas, vias que a psicoterapia poderá percorrer. (Tosquelles, 2024, p. 140)

O descentramento do analista e do lugar do analista na análise é uma verdadeira batalha guattariana. Pensar o analista como um grupo e não uma única pessoa é a decorrência de uma ideia de clínica baseada no inconsciente e na esquizofrenia. Porque personalizar o que não conhece a lógica da identidade, da dualidade e não respeita contradições?

E Tosquelles foi um dos pioneiros nessa reflexão. Nesse sentido, é quase como se a clínica lacaniana e freudiana estivessem largamente pensadas a partir da neurose e portanto, de um modelo de subjetividade cindida entre ego e ideal de eu, desejo inconsciente “pessoal”,/ Outro, norma social, etc. Como se o conflito psíquico fosse uma representação do conflito social no neoliberalismo, o indivíduo contra a sociedade, porque não há mais sociedade, só os indivíduos e suas famílias. Quando a questão da instituição é outra. E a da análise, é justamente desenvolver conceitos para pensar esse problema:

Na fala, nunca se é dois; há pelo menos uma referência a um terceiro, a um mediador e, em última instância, àquilo que, com razão, devemos chamar de instituição, em oposição precisamente a tudo o que, nas instituições, é ocultado em benefício do estabelecido, quer seja o estabelecimento ou o Estado: nada menos do o sujeito do desejo. P. 140

É da sua experiência na psicoterapia institucional que Guattari baseia a sua crítica à psicanálise. Ela não teria conceitos para pensar a economia libidinal da sociedade, das massas, sua análise é sempre centrada no sujeito e nas suas divisões.

Jean Oury entendia que o objeto a do esquizofrênico era fragmentado, sim, era um corpo fragmentado, ele acrescentava. E essa dimensão era também fundamental para Tosquelles, que entendia a esquizofrenia como uma experiência vivida de fim de mundo. Me parece que é exatamente o que estamos enfrentando coletivamente nos últimos 50 anos.

A esquizofrenia não é apenas uma experiência vivida por um sujeito, mas, acrescentará Guattari mais tarde, mas a forma mesma de ser do corpo social capitalista.

Se o desejo é fragmentado e múltiplo, podemos pensar que essa ideia começa com Bataille e sua teoria do erotismo, responsável pela produção de seres descontínuos. O que temos dificuldade de atravessar em nossas experiências e relações é essa diferença que parece se instaurar em nós em nosso nascimento, que nos constitui e não cessa de nos separar dos outros.

Se o desejo é fragmentado e múltiplo, a clínica também deve ser concebida dessa forma, descentrada e descentralizada. Na psicoterapia institucional a transferência pode circular entre todos aqueles que frequentam o espaço, e todo espaço é considerado de análise. Por isso, ela é também um espaço de invenção de outras práticas clínicas, que acolheu, por exemplo, Deligny, e sua crítica absolutamente descentrada da linguagem e da fala.

o que conta, o que nos permite contar, são os efeitos dos cortes na vida cotidiana, a partir daí diversificado e apto – mediante o jogo das oposições significativas que se revelam – às permutações que permitem a dialetizarão do desejo. (Tosquelles, 2023, p. 138)

O desejo não circula apenas por cadeias significantes abstratas, gravadas como traço na história do nosso inconsciente, na nossa memória, o desejo circula entre pessoas, coisas e objetos quaisquer e se organiza e se transforma nos cortes da vida quotidiana. Assim, trata-se de levar em conta a linguagem e a fala, tanto do ponto de vista do inconsciente, de uma teoria, portanto, quanto da clínica, mas também de reconhecer os limites dessa teoria no que diz respeito à vida prática e as situações limites que nela estão em jogo.

A psicanálise lacaniana insiste muito no ato clínico (ver Badiou), como se a questão da análise fosse sair da inação, não é inteiramente equivocado, esse pode ser um sintoma, uma demanda, um desejo, mas é falando que se age? É preciso elaborar com a cabeça para ser capaz de agir? Não seria mais interessante pensar a vida em suas ambiguidades e contradições, como uma mistura de ação e inação? Atentar, como diz Suely Rolnik, para o que está germinando? Não seria mais interessante se fossemos capazes de pensar a subjetividade a partir não apenas da família e das relações amorosas, mas do ponto de vista econômico, social, político, racial, de classe, enfim, todos os elementos e camadas que constituem a vida social?

O conceito, por exemplo, de agenciamento, visa justamente pensar ao mesmo tempo uma modificação ou uma produção tanto da subjetividade quanto da realidade.

Levar em consideração na clínica não apenas a produção de subjetividade, mas também a produção de realidade implica pensar a subjetividade em seus territórios existenciais, o que significa fazer da clínica o espaço mesmo de criação desses territórios. E essa atividade, a meu ver, não tem outro nome a não ser: política.

o homem é sempre um peregrino, um sujeito que vai para outro lugar. O trajeto é o que realmente importa. O Clube, por sua vez, era um espaço em que as pessoas das diferentes alas do hospital podiam se encontrar e estabelecer relações com o desconhecido, o incomum, o inabitual e o surpreendente. (Tosquelles, 2024, p. 66)

A clínica começa com os pés ou refazer-se corpo

A clínica começa com os pés, nela se pratica a vagabundagem porque o objetivo da clínica é proporcionar encontros. Tosquelles foi parar no jornal porque forneceu aos seus pacientes picaretas para que destruíssem uma ala inteira do hospital que os abrigaria porque ela parecia uma prisão, quartos que se estendiam por corredores imensos, nenhum espaço para interação. As atividades da clínica não são quaisquer atividades para tomar o tempo, são resultado da iniciativa, da demanda e da vontade dos “pacientes”, que participam da vida coletiva, da organização das atividades e das decisões. Imaginem uma gestão verdadeiramente democrática de espaços públicos, feita pelos próprios “usuários” desse “serviço”. Isso nada mais é do que construir a vida coletiva do espaço e entender que clínica é esse espaço onde se vive junto.

Como Guattari e Jean Oury, Tosquelles foi profundamente marcado por Lacan, e eu queria destacar um conceito lacaniano pouco explorado por aqui, o “moi”, frequentemente ele é traduzido por “eu”, mas “moi” não é um pronome reto, não conjuga verbo como o pronome “eu”, sua tradução seria “mim”. “Moi” designa, portanto, outra coisa, não é o que eu desejo, mais o que deseja em mim. Uma verdade, diz Tosquelles, que é preciso encarar.

O que, na verdade, é esse “eu” [moi] autônomo”, essa identificação de si consigo mesmo ou com as imagos parentais, essa personalidade em situação de fracasso a propósito da qual nos deleitamos nas reflexões do saber psiquiátrico – ou psicanalítico – o que seria, se não, desde o início e dialeticamente, a posição do sujeito diante do desejo?

Seria assim, como nos versos de Camões: “não tenho mais o que desejar, pois em mim tenho a parte desejada”. Um paradoxo surpreendente, e ao mesmo tempo, quase uma repetição de palavras que não faz exatamente uma rima. Sempre achei esse verso estranho. Sempre desconfiei que aí residia uma certa loucura pra qual talvez fosse o caso de dizer, porque não?

Notas sobre o amor e o ódio

Registro aqui algumas das ideias mais originais de Tosquelles e que derivam diretamente da sua experiência na guerra civil. Penso que elas podem ser úteis no contexto em que vivemos. Elas também decorrem de uma reavaliação do mito freudiano de Totem e Tatu. Tosquelles prefere pensar que o que está em questão no desejo que move os homens a matarem o pai, não é o gozo do qual são privados ou o possível gozo com o qual serão recompensados, mas simplesmente o desejo de matar, ele seria anterior ao desejo incestuoso, isso porque, o ódio, nos diz Tosquelles, funciona muito melhor para produzir união dentro da vida social:

Se a função poética da linguagem joga nas formulações estéticas da singularidade, por outro lado, quando se trata de jogar com e nos vastos espaços públicos indeterminados e muitas vezes anônimos – os das grandes assembleias sociais-, o que cria vínculo e se dirige à multidão anônima nunca é o amor, mas a própria violência. (Tosquelles, 2024, p. 45)

E ele continua afirmando que pensa no encantamento mútuo e no calor afetivo e emocional em torno de certos líderes, sedentos de amor e muito hábeis com seus cantos de sereia. O amor, diz Tosquelles, não é fascinação nem fusão com o outro. O amor personifica o outro. Por isso mesmo, ele pode se tornar uma prisão.

Afinal, Tosquelles gostava bastante dessas analogias com a guerra civil, o ser humano é múltiplo e conflituoso em si e em sua relação com os outros, a unidade de cada indivíduo é apenas aparente e enganosa.

O problema é temos que lidar constantemente com uma vida social que insiste em nos fazer acreditar no contrário, na paz social, na unidade da pessoa, no caráter onipotente da unidade dessa pessoa incarnada nos líderes e grandes homens. Além de tudo, temos que lidar com essa outra loucura que consiste em sustentar enganos e aparências.



[Fonte Original]

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